A Doutrina Social da Igreja pode não ter respostas prontas para a crise econômica internacional, mas tem muito a dizer sobre ela e sobre as formas de superá-la. Ela não é um moralismo, não é uma série de desejos éticos ou de expectativas edificantes projetadas sobre a realidade social e econômica. Ela nasce do encontro da luz da fé cristã com a razão, e ilumina a realidade da crise econômica.
Não há dúvidas: esta crise econômica e financeira nos interpela em profundidade e, ao mesmo tempo em que faz com que nos sintamos mais vulneráveis, solicita nossa responsabilidade. Todos percebemos que é muito mais que uma crise econômica e que pede uma mudança de rota. Mas as mudanças de rota sempre implicam em muito mais que simples políticas econômicas.
O próprio Santo Padre se deixou interpelar pela crise econômica, se posicionando sobre ela muitas vezes. A última vez foi no encontro com os padres da diocese de Roma, no início da Quaresma, quando disse que “Devemos denunciar esta idolatria que vai contra o verdadeiro Deus e a falsificação da imagem de Deus com outro deus "dinheiro". Devemos fazê-lo com coragem, mas também concretamente. Pois os grandes moralismos não ajudam se não forem substanciados com conhecimentos da realidade”. Por isso, ele vem se dando um tempo para examinar a crise econômica antes de lançar sua nova encíclica social, para não incorrer em um moralismo não substanciado pelo conhecimento da realidade.
A Doutrina Social da Igreja não é um moralismo, não é uma série de desejos éticos ou de expectativas edificantes projetadas sobre a realidade social e econômica. Ela nasce do encontro da luz da fé cristã com a razão, como disse Bento XVI na encíclica “Deus caritas est”. A fé aceita aquilo que a razão diz em seu campo específico, mas a purifica e a torna capaz de responder melhor a sua tarefa original.
Isso vale também para a atual crise econômica: as ciências econômicas e políticas fazem a sua parte, mas ela, por si só, é insuficiente = como mostra o fato de que não conseguiram evitar a crise atual. Centenas de centros de pesquisa voltados exclusivamente ao estudo dos fluxos financeiros e econômicos não foram capazes de lançar um lampejo de terapias preventivas, de modo que hoje o mundo inteiro sofre com uma crise que pegou a todos de surpresa. Evidentemente é necessário recorrer a uma outra luz, que novamente nos ilumine sobre a natureza da economia e a que ela serve.
Isso, por sua vez, requer que se ilumine, primeiro, a natureza da pessoa e o sentido ético e religioso – e não somente técnico – de seu agir. Bento XVI, numa outra colocação que também suscitou muito debate, feita durante a inauguração do Sínodo sobre a Palavra de Deus, disse que só a Palavra de Deus permanece para sempre, enquanto todas as outras riquezas passam, como mostra a crise financeira em ato. Não se tratava de retórica religiosa. A crise mostra que a economia não é capaz de reger-se por si só, sem ser sustentada por um sistema de valores de referência que a transcenda, ou seja, que não sejam valores apenas econômicos. E quando esse sistema entra em colapso, a economia, por si só, não é capaz de reconstruí-lo. A economia não se salva por si mesma, como pensaram por muito tempo os defensores da “mão invisível”. Mas não pode também ser salva também apenas pela política, como pensam os defensores de uma nova intervenção estatal. Mas voltaremos a isso mais tarde...
A crise nos interpela. Deve ser vista como uma ocasião, mas temos que nos entender bem sobre esse termo. Muitos consideram bem-vinda essa crise econômica – pois nos obrigaria a rever muitos de nossos comportamentos excessivamente voltados ao crescimento, ou seja, á produção e ao consumo, e não à sobriedade e à preservação dos recursos. Como condenam o crescimento enquanto tal, vêem na crise a derrota do modelo de crescimento e a ocasião para inverter a rota, em direção a uma redução.
Não é neste sentido que considero a crise como uma “ocasião”. Não nego que a crise abre um interessante espaço para racionalizar os nossos comportamentos econômicos, mas não posso aplaudir uma crise que coloca os trabalhadores e suas famílias de joelhos e impede que os países pobres sejam verdadeiramente ajudados. Uma espécie de cinismo ideológico pode fazer-nos pensar que é melhor que o sistema caía, porque ele seria a origem verdadeira de todos os males.
A Doutrina Social da Igreja sabe que existem “estruturas de pecado” e dinâmicas sociais que muitas vezes parecem impor-se às pessoas, mas não crê que exista “o sistema”, impessoal e mecânico, pois a história permanece nas mãos dos homens. Não existe aqui nenhum pessimismo antropológico, mas um realismo esperançoso que nos deve guiar.
Creio que a crise é uma ocasião para reapropriarmos-nos de modo responsável do crescimento. A crise nos obriga a pensar e projetar, a darmos-nos novas regras e novas formas de empenho, a pautarmos-nos pelas experiências positivas e abandonarmos aquelas negativas. A crise é ocasião de discernimento e de uma nova capacidade de projetar. Nessa perspectiva, mais confiante que resignada, penso que possa haver realmente aqui uma ocasião, se desejarmos realmente que assim seja. E, nessa ocasião, a Doutrina Social da Igreja tem um papel fundamental a desempenhar.
Uma chave de leitura muito importante me vem do princípio da subsidiariedade. Vendo bem, percebemos que a crise financeira veio exatamente da negação desse princípio. As finanças deveriam ser subsidiárias (estar a serviço) à economia real e não vice-versa. Os bancos e as bolsas deveriam ser subsidiários (estar a serviço) ao sistema produtivo e não vice-versa. Os sistemas de financiamento imobiliário deveriam ser subsidiários (estar a serviço) às famílias e não vice-versa. As regras e os controles deveriam existir para que se garantissem todas essas coisas, ao invés de fazer com que essas coisas fossem instrumentalizadas.
Como se vê, o princípio da subsidiariedade não foi respeitado no processo que causou a crise. Mas nem sempre se respeita o princípio da subsidiariedade também ao se tentar responder à crise. A intervenção do Estado no capital dos grandes bancos e das grandes empresas pode ser ditada por razões de urgência. Contudo, em teoria, continua sendo melhor dar auxílios indiretos que auxílios diretos. De qualquer forma, os auxílios dados de forma direta devem ser pensados em caráter suplementar e temporário, e não se constituírem numa intervenção permanente do Estado na economia. A crise, enfim, é uma ocasião para se repensar os fundamentos das finanças, tornando-as novamente funcionais à produção – como o Pontifício Conselho Justiça e Paz afirmou na Nota produzida por ocasião da Conferência de Doha sobre financiamento ao desenvolvimento, em dezembro de 2008.
Vejamos ainda outros dois âmbitos de aplicação do princípio da subsidiariedade. O primeiro é aquele da sociedade civil, o segundo é aquele do Estado. [...]
Em tempos de crise, as diferenças entre setor público, setor privado e Terceiro Setor se fazem sentir de modo particularmente agudo [...] Quando a economia de uma nação está em crise, é necessário se perguntar seriamente sobre a eficiência dos serviços dos entes públicos [...] Já se diz há algum tempo que a reforma do “Estado do bem estar social” (Welfare State) havia se tornado obrigatória em função da concorrência internacional, que obrigava a cortes nos custos. Hoje, com maior razão, se deve dizer que tal reforma se torna obrigatória em função da crise internacional, que não diminuí, mas acirra a concorrência. Por exemplo, um sistema educacional caro e ineficiente, especialmente hoje, em tempos de crise, não é aceitável. Por outro lado, muitos serviços de saúde e assistência podem ser oferecidos por entes sociais a custos inferiores.
Um estudo recente sobre economia social na União Européia mostrou que o Terceiro Setor está crescendo por toda parte e que hoje na Europa existem cerca de dois milhões de empresas com fins não-lucrativos. As cooperativas sociais passaram de 2.403.245 usuários em 2003 a 3.302.551 em 2005 – quase um milhão a mais. Como se vê, trata-se de uma estrada obrigatória, mas que provavelmente só será trilhada por necessidade, em função dos problemas financeiros e sem um plano. É necessário ampliar esse setor, ao invés de descarregar sobre ele as omissões da administração pública. [NOTA DA EDIÇÃO BRASILEIRA: duas observações devem ser feitas para adequar essa discussão ao contexto latino-americano: (1) se critica um sistema de assistência social que atinge majoritariamente a sociedade e que agora enfrenta problemas de sustentabilidade e não de universalização dos serviços: (2) não se está defendendo a proposta de Estado mínimo neoliberal, mas se diz que diante da necessidade objetiva de redução de custos do Estado, o Terceiro Setor se apresenta como uma possibilidade viável de manutenção da qualidade dos serviços].
[...] Nesses tempos de crise, o Terceiro Setor e especialmente os empreendimentos sociais reduzem custos, incentivam o voluntariado, racionalizam o uso dos recursos internos, criam novos serviços e ocupações, acabam financiando os entes públicos – devido aos freqüentes atrasos nos pagamentos e liberações de recursos, contratam trabalhadores... Desenvolvem, enfim, um importante serviço de coesão social. Limita-las a isso, contudo, significa dar-lhes uma função residual. A crise pode ser ocasião de aumentar a colaboração entre os entes econômicos da sociedade civil e de elaborar projetos nos quais tanto os parceiros públicos quanto os privados possam reduzir custos e aumentar a eficiência, através da colaboração entre o Terceiro Setor, o setor privado e o setor público – como há mais de vinte anos já pedia a encíclica “Centesimus annus”.
A crise é ocasião de um novo protagonismo do Terceiro Setor por um outro motivo muito importante. Dissemos antes que o mercado necessita de pressupostos que não é capaz de reconstruir caso venham a faltar. Esses pressupostos são os valores imateriais dos quais o mercado tem uma enorme necessidade, mas que não podem ser produzidos como qualquer outro bem material. A confiança, o respeito às regras, atitudes solidárias e de ajuda recíproca, a capacidade de desenvolver não só relações comerciais, mas também de amizade e reciprocidade, a idéia de que mesmo em relações econômicas pode-se dar sem se esperar receber... Tudo isso não é econômico, mas é como que um oxigênio do qual a economia tem necessidade. O mundo dos empreendimentos sem fins lucrativos representa o âmbito privilegiado para a maturação dessas atitudes, e portanto para criar o capital social de uma comunidade.
Não que as posturas listadas acima não possam nascer no setor privado ou no público. Nesses dois âmbitos, contudo, a primeira motivação para a ação é o dever. As coisas são feitas pelo dever gerado por um pagamento ou por uma lei. É aqui que as duas lógicas, aparentemente diversas, do mercado e do Estado se identificam. Bem sei que elas não são encontradas assim, em estado puro, na realidade. Mas isso não elimina o fato de que, sem essas duas lógicas, nem o mercado nem o Estado poderiam se constituir. Depois dessas motivações ligadas ao dever, outras podem surgir, mas são secundárias em relação àquelas.
No Terceiro Setor, mesmo que se respeite o mercado e as leis, é a gratuidade, uma motivação original que não pede nada em troca, que emerge com maior força e originalidade – mesmo que com as dificuldades cotidianas que todos nós conhecemos. Esse é um patrimônio para toda a sociedade, especialmente nesses tempos difíceis, um dos principais motivos de resistência e capacidade de retomada.
|