Os principais temas de “Caritas in veritate” são discutidos pelo economista Stefano Zamagni, um dos colaboradores que auxiliaram o Papa na redação da encíclica.
Professor, toda encíclica procura ajudar a entender os “sinais dos tempos”. Quais são os desafios de hoje que o “Caritas in veritate” quer ajudar a responder?
Esta é uma encíclica muito inovadora, porque não se limita, a uma leitura dos “sinais dos tempos”, mas vai mais adiante: indica por onde devemos nos mover se queremos ver resolvidos os problemas que ela denuncia. “Rerum novarum” e “Centesimus annus” são encíclicas que se colcoavam em defensiva: a Igreja expressava dúvidas e dúvidas e convidava os homens de boa vontade a corrigir os erros do sistema. Mas a atual encíclica me parece mais propositiva.
O qual é, no seu modo de ver, o verdadeiro centro da encíclica?
A crítica e o convite a superar a dicotomia entre a esfera econômica e a esfera social, característica dos dois sistemas doutrinários e ideológicos que dominaram o século XX: o “liberalismo anárquico” e o socialismo. Para ambos, o econômico, rejeitado ou aceito, era uma esfera “ruim”, que se reduzia à maximização dos lucros em detrimento dos direitos do outro. Em oposição estava o social, entendido como âmbito no qual se tentava contrabalançar o que havia acontecido de doente e perverso no econômico. Daqui nasceu a idéia do “Estado do bem-estar social” (welfare state): o Estado intervém na sociedade para redistribuir os bens derivados dos erros do mercado.
E os católicos?
O papel dos católicos no plano social foi retalhado até ser visto apenas como o de mitigar as situações problemáticas. Na encíclica, o Papa diz “não” a essa posição, porque muitos elementos necessários à vida social, como solidariedade e fraternidade, devem entrar na economia e não ficar do lado de fora. É a superação da lógica dos dois momentos: primeiro se acumula a riqueza e depois se pensa como redistribuí-la. Essa lógica está errada, porque quando se começa a redistribuição já é muito tarde. Se eu, para obter aquela riqueza, atingi a dignidade das pessoas, a redistribuição sempre virá tarde demais, porque eu não posso compensar a dignidade ferida.
O princípio de fraternidade assume um papel central na encíclica. Por que?
Porque a sociedade fraterna também é solidária, mas não o oposto pode não acontecer. Pensemos numa sociedade sob o socialismo real: pode ser solidária, mas não é fraterna. A fraternidade é o princípio de organização social que permite que os semelhantes sejam diferentes. A pessoa deve poder ser livre para manifestar-se dentro da esfera econômica ou expressar a própria convicção em certos valores ou numa visão da sociedade. Sem que isto seja visto como concessão do Estado.
O conceito de justiça, abordado desde a introdução, está ligado ao desenvolvimento da pessoa?
Sim. A encíclica apresenta um forte conceito de justiça, que vai além da mera execução de leis. A justiça é permitir a cada um, e a cada grupo social, a plena expressão de seu potencial e de seus recursos. E é nesse aspecto que o Papa encontra a justificativa para o princípio da subsidiariedade. Porque é: aplicando o princípio de subsidiariedade que se pode construir uma sociedade fraterna. Uma solidariedade sem subsidiariedade, acrescenta o Papa, caí no assistencialismo e no dogmatismo do Estado.
Na encíclica, a subsidiariedade é compreendida para além dos limites do Estado. Por quê?
Hoje o princípio de subsidiariedade não pode ser limitado ao âmbito nacional, mas aplicado a nível global. Por isso, o Papa fala de uma governança global de tipo subsidiário. Global mas de tipo poliárquico, isto é, fundado sobre uma pluralidade de centros de poder, porque o poder não pode estar em mãos de um só, mesmo que essa fosse a pessoa mais iluminada do mundo. E as modalidades por meio das quais se deve normatizar as relações deve ser subsidiária.
Qual é a resposta da “Caritas in veritate” para a crise econômica?
A crise é a filha de dois erros ideológicos que dominaram os últimos trinta anos. O primeiro é o “ethos” da eficiência: a idéia de que os direitos da pessoa dependem do fato dela ser eficiente, dela ter valor segundo os critérios ditados por esse mesmo princípio de eficiência. Hoje, essa ideologia da eficiência reina soberana e vem brandida como espada para legitimar as mais diversas desigualdades: se você é mais pobre do que eu, é porque não é tão eficiente. Mas os super bem pagos executivos dos bancos, por exemplo, eram tão eficientes que fizeram seus bancos falir.
A crise tem raízes então, em um problema que pode ser mais humano que estritamente técnico?
Mas o “ethos” da eficiência é exatamente esse: um mito que afirma quando se recusa a centralidade da pessoa. O outro erro é a ideologia da empresa como mercadoria: uma mercadoria como qualquer outra, que pode ser comprada e vendida em função das conveniências do momento. Mas esta é uma novidade absoluta, porque durante séculos a empresa foi vista como uma instituição destinada a perdurar no tempo.
Sem contar as conseqüências para os trabalhadores.
Mais que de trabalhadores, eu falaria numa perda total de sentido do capital humano. Esse só tem significado enquanto aumenta o preço mercado da empresa. Deste modo se elimina o elemento relacional, o fato de que a pessoa humana é o verdadeiro fundamento de atividades da empresa.
A crise questionou os fundamentos do mercado…
A finalidade última do mercado é servir ao bem comum. Neste aspecto a encíclica acompanha a linha de pensamento da economia civil. Enquanto a economia capitalista é guiada pela maximização dos lucros, a economia civil é guiada pela maximização do bem comum. O seu bem deve estar de acordo com o meu bem, não pode prescindir nem dele nem daquele de um terceiro. O conceito de bem comum – um dos pontos fortes da encíclica - é anti-individualista, porque reconhece a dinâmica relacional característica da pessoa. Aqui aflora toda a riqueza do pensamento católico.
Por quê?
Porque o bem comum não é nenhum sacrifício, mas a harmonia entre os respectivos interesses: eu devo procurar satisfazer meu interesse, mas este – constitutivamente – não está em oposição ao seu. É a idéia que está na base de uma série de iniciativas solidárias desenvolvidas a partir de movimentos católicos, como Economia de Comunhão (nascida dos Focolare) e Companhia das Obras (nascida de comunhão e Libertação). Em suas atividades realizam concretamente a idéia de que a empresa, para ajudar a outros, não deve abandonar as regras do mercado e ter prejuízos, mas deve ser útil e permitir que outros também se desenvolvam.
Na encíclica está escrito que a Igreja não tem soluções técnicas para oferecer e nem pretende interferir na política dos Estados. Então, por que fala dessas coisas?
A Igreja não tem no coração uma fórmula política ou social, mas o bem do homem. Quando você vai este bem está em perigo por instituições e comportamentos egoístas e perversos, intervém para corrigir e ensinar. Depois, a tradução de seu ensinamento através de iniciativas concretas é deixada aos homens em sua vida social. Por isso, a Igreja não invade nenhum campo que não seja o seu
O senhor fez parte do grupo de trabalho que redigiu o documento. Comenta-se que teve uma longa e difícil gestação. Foi memso assim?
Não diria isso. Basta pensar que “Centesimus Annus” teve uma gestação de cinco ano, de 1986 a 1991, enquanto que “Caritas in veritate” foi preparada em dois anos e meio.
E explosão da crise econômica impôs uma revisão funda?
A crise foi um evento contingente que alongou os trabalhos em quatro ou cinco meses, porque o texto já estava pronto nos fins de setembro. Entre setembro e a data de saída, previsto inicialmente para 8 de dezembro, estourou a crise e então se pensou em uma complementação que a levasse em conta. Em alguns casos foram apresentados ao Papa algumas alternativas: a começar pelo título, por exemplo. Algum queriam “Caritas in veritate”, outros “Veritas in caritate”. Neste caso, o próprio Bento XVI escolheu sem reservas, abandonando uma possível leitura platônica para sublinhar a primazia do bem sobre o verdadeiro.
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