ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L.:
Os estabelecidos e os Outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade, Rio de Janeiro, Zahar 2000

Em fins do ano 2000, o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos do Brasil) organizou no sul do Brasil um Seminário Nacional sobre "A questão do poder no cotidiano da Bíblia". Solicitaram-me que eu falasse sobre o tema na perspectiva da psicologia, o que de fato fiz, publicando o resultado de minha reflexão no Caderno Especial do Seminário. Um tanto paradoxalmente o estudo que me veio imediatamente à mente quando me fizeram o convite não foi um livro de psicologia e sim o trabalho de um sociólogo alemão-britânico de clara fama -- Norbert Elias -- que juntamente com um colega seu, inglês, havia realizado uma minuciosa e original investigação sobre o cotidiano de uma pequena aldeia operária da Inglaterra de hoje. Os biblistas aos quais se destinava meu texto devem ter coçado a cabeça e se perguntado, primeiro, porque um psicólogo, como eu, vai buscar apoio em um trabalho de natureza sociológica e, segundo, o que as relações sociais que se estabelecem em uma comunidade inglesa do século XX têm a ver com as relações de poder e as tensões grupais acontecidas em lugarejos tão distantes de nós, no tempo e no espaço, na mentalidade e no estilo de vida, quanto os lugares da Galiléia pelos quais Jesus transitava?

O surpreendente neste livro notável é que o levantado e analisado pelo dois sociólogos, tem tudo a ver com os muitos episódios e reações psicológicas que o Novo Testamento narra a respeito das relações de Jesus com os grupos religiosos de seu tempo. Parece até que Elias e Scotson estavam tentando descrever Nazaré, Cafarnaum ou Caná da Galiléia e perguntando, como os biblistas do CEBI, porque tantas discórdias e tensões religiosas não apenas dentro do pequeno grupo dos que seguiam Jesus, como, mais ainda, nas relações desse grupo com o dividido mundo do judaísmo de então, fragmentado em vários sub-grupos que porfiavam entre si pela hegemonia, sob o manto piedoso das distintas tradições religiosas que guardavam havia séculos.

O livro que passo a comentar é fruto de uma minuciosíssima "pesquisa de comunidade". Investiga o dia a dia de um pequeno povoado inglês chamado Winston Parva (nome fictício). O estudo, aparentemente despretensioso, está revolucionando os rumos da teoria social inglesa contemporânea (como estamos longe das grandes teorias!). Tem um notável respiro teórico[1], exatamente no tocante ao tema que nos ocupa aqui: o das desigualdades sociais verdadeiras ou presumidas e das relações microssociais de poder dela decorrentes. Ao lê-lo com mais atenção tive a certeza de que este é um livro que vai ter influência teórica e prática sobre a psicossociologia do futuro. Ele tem muito a dizer a quem se interessa pelas Ciências da Religião, seja ele cientista social, teólogo ou psicólogo. Tanto é assim que Elias e Scotson me serviram como referência para minha palestra aos biblistas e todos perceberam a importância de estudos daquela natureza para a compreensão do mundo religioso característico das comunidades judaicas e cristãs do início da era cristã. A partir das inúmeras dicas que a análise de Winston Parva fornece, o público especializado que compareceu ao Seminário do CEBI foi capaz de apontar para vários aspectos relevantes que lhe escapavam em sua anterior leitura sociológica de vários episódios narrados na Bíblia. Mas, o assunto aqui não é esse do interesse pluridisciplinar da pesquisa ou das aproximações possíveis entre as comunidades da Palestina do tempo de Jesus e as de um lugarejo como Winston Parva, tão igual a tantas outras pequenas aldeias da Inglaterra moderna. O que quero é quero apresentar brevemente aos leitores de "REVER: Revista Eletrônica de Ciências da Religião" esse livro original e criativo.

O título do livro nos dá uma idéia precisa de seu conteúdo. Trata-se de ver como o grupo "estabelecido" na aldeia havia mais tempo se relacionava com o grupo dos que chegaram mais tarde e eram vistos pelos antigos moradores do lugar como "outsiders", isto é, como gente de fora e, por essa razão, sem direitos de plena cidadania na vida local.

O objetivo primeiro da investigação de Elias era o de estudar o jogo de poder que as relações cotidianas entre os dois grupos escondia. Os dois segmentos viviam às turras, cada um sentindo-se e julgando-se diferente do outro. O segmento "estabelecido" contava já três gerações de ascendentes e se julgava senhor de direitos especiais. Tinha dificuldades em aceitar o segundo grupo que chegara à região em uma fase recente da industrialização. Mesmo após um bom número de anos esse grupo continuava sendo visto e tratado pelos primeiros -- os "da terra" -- como sendo estrangeiro e intruso. Como resultado desse tipo de atitudes preconceituosas existiam no lugarejo desigualdades marcantes que de modo algum podiam ser atribuídas aos indicadores que a sociologia costuma usar para explicar as desigualdades e as disputas entre grupos e indivíduos. Os dois pesquisadores sentiram logo que essas não eram explicáveis a partir dos indicadores usualmente vistos como elucidativos das relações em comunidades comunidades daquele nível sócio-econômico e cultural.

Sergio Micelli[2], sociólogo da USP, faz um bom resumo do que acontecia ao dizer que "embora Winston Parva fosse uma comunidade relativamente homogênea segundo indicadores sociológicos correntes – renda, educação, ocupação, religião, língua e nacionalidade, ascendência "étnica" ou "racial"—sua população estava cindida entre, de um lado, o grupo residente no bairro denominado "aldeia", que se enxergava e era reconhecido pelos demais como o ‘establishment’ local e, de outro, as famílias moradoras no relegado "loteamento", que se viam e eram considerados como ‘outsiders’ (forasteiros). A despeito de serem uns e outros trabalhadores, portanto pertencentes à mesma classe social, os primeiros justificavam sua "superioridade" e poder com base num princípio de antigüidade, pois estavam aí instalados havia duas ou três gerações, enquanto os demais eram recém-chegados à comunidade"

De suas numerosas observações, os autores concluíram que em grupos sociais muito próximos e homogêneos, como é o caso dos dois estudados, se criam diferenças, largamente idealizadas, que os dividem internamente e os colocam em luta pelo controle social, gerando, no plano das relações, estereótipos e preconceitos sociais recíprocos. Por mais que sejam "iguais", quando vistos desde os critérios da sociologia mais clássica funcionalista ou dialética, eles não logram explicar de maneira satisfatória o que acontece no plano das imagens sociais que modelam as reais relações de dominação/subordinação que se fundam de fato nas representações, crenças e valores que cada grupo julga possuir, diferentemente do outro, sentido como de nível inferior. Penso não ser difícil se perceber a importância dessa constatação para o estudo dos conflitos religiosos e dos fundamentalismos que, cada vez mais, – para lá do discurso politicamente correto do ecumenismo -- caracterizam algumas religiões e igrejas em suas tendências doutrinais, rituais, crenças e objetivos de ação pastoral e política.

O trabalho de Elias e Scotson traz muitas novidades. Depois de uma detalhada descrição dos estilos de vida dos dois "bairros", das estruturas familiares, das instituições comunitárias e redes de apoio, do modo de viver dos jovens, dos conflitos entre as gerações quanto à autoridade, da sexualidade e da religião -- em tudo muito parecidos -- eles mostram que as relações de poder não estavam ancoradas em diferenças sociais gritantes como as que seriam provavelmente buscadas e discutidas por um teólogo, um filósofo, um psicólogo ou um sociólogo interessado só em categorias analíticas omni-explicativas e, por isto, pouco atento ao cotidiano real da vida das pessoas. A atenção dos nossos dois pesquisadores não esquece o nível macro-teórico, mas se volta em especial àquele micro, das relações entre as pessoas e grupos. Esse é para eles o ‘ubi’ gerador da subjetividade, especialmente em culturas de corte fortemente individualista como as da sociedade neo-liberal globalizada. O comportamento e a vivência das pessoas nasce é aí, embora – evidentemente ! -- possam sofrer e sofram as influências de outras matrizes contextualizadoras.

As crenças, valores e pattern de comportamento vigentes em Winston Parva não se devem seguramente a diferenças de classe social, salário ou religião ou à maior ou menor fatia de poder que cada um dos dois segmentos daquela população possui, reivindica ou se atribui. O determinante parecem ser as representações sociais de poder que os dois agrupamentos se fazem um do outro e de si próprios. A violência e a arbitrariedade dessas representações é que racham ao meio – não sem artificialismos – o povoado.

A prioridade na chegada ao lugar se tornou o principal fundamento – aceito pelas duas partes – da divisão e organização social da vida social do lugar. Ela serve de base tanto para a colaboração -- em alguns pontos bem delimitados -- quanto para a discriminação e a conflitividade, na maioria dos outros aspectos da convivência social. As famílias "antigas" cultivam o mito de seu passado e o têm como a diferença decisiva entre elas e os "outsiders". Guardam ciosamente um acervo enorme de lembranças, apegos e aversões quanto aos fatos e itinerários coletivos (reais e fantasiados) da vida da aldeia. Esse estoque de lembranças tem forte carga emocional no relativo à auto-estima e ao auto-conceito do grupo. Serve, além disto, como critério para a hierarquia interna e a ordem de precedência dentro do próprio segmento dos 'antigos'. O grupo estabelecido sente-se com isto mais seguro e garantido em sua coesão interna e valor. Os comportamentos de seus membros no dia a dia têm aí sua principal de referência para a convivência necessária com "os outros diferentes".

Elias e Scotson demonstram com acurado apuro um emaranhado de dependências e interdependências entre os indivíduos e as instituições do lugarejo. Mostram como as normas de atribuição de status e a distribuição de papéis e tarefas dentro das instituições sociais e políticas do lugarejo obedecem "a padrões díspares de união interna e controle comunitário". Esses padrões se traduzem "numa prática política que consiste, por exemplo, em reservar para as pessoas do grupo cargos prestigiosos em organismos locais – o conselho, a escola e o clube --, excluindo os moradores da outra área". Tudo está imbricado naquele emaranhado cuja lógica psicológica é compreensível só para quem está bem situado dentro do universo psicossocial da pequena aldeia. Um verdadeiro "out sider" teria dificuldade em entender o porque das distinções e argumentos daquela lógica de "in group". Sentir-se-ia como uma espécie de E.T., caído do céu em um mundo cujos metros e padrões lógicos não são os de quem pertence ao mundo externo. Não é intenção minha mostrar nexos entre o acima dito e o que acontece dentro de muitos grupos religiosos, de ontem e de hoje, mas creio que o leitor fará essas ilações sem grandes esforços.

A construção do sentido social do poder em Winston Parva obedece a dois critérios-chave. Primeiro, o da afirmação da superioridade e excelência "psicológica", "humana" e ‘social" dos que chegaram antes ao local. A esses caberia, sem mais, o primado natural quanto ao status, à dignidade grupal e à legitimidade dos direitos adquiridos. Eles são os cidadãos de primeira classe. No outro polo faz valer-se a estigmatização dos chegados por último, tidos como inferiores. Esses, naturalmente, no início não se conheciam, pois vinham de vários locais do país. Eram menos coesos e não dispunham de armas para se defenderem da maneira com que os nativos os etiquetavam em resposta à ameaça e ao desequilíbrio provocada por sua chegada a Winston Parva. Chama a atenção do psicólogo o fato de os recém-chegados aceitarem e passarem a se avaliar segundo o juízo dos presuntos detentores do poder local, interiorizando uma posição de subalternidade[3] nas relações com os mesmos. Isto ao menos nos primeiros anos.

Um dos assuntos mais interessantes abordados nessa pesquisa é o que se refere às fofocas, o recurso mais eficiente usado para estigmatizar e provar a inferioridade dos habitantes do "loteamento". É desnecessário frisar que a fofoca entra no quadro do "bullying" (podação) que parece ser uma tendência cultural em certos setores da agressiva sociedade anglo-saxônica. No caso de Winston Parva temos não pessoas e sim comunidades que entram, respectivamente, como "autoras" e como "vítimas" da podação. Com abundantes minúcias os dois sociólogos apontam quais os determinantes dos mexericos, piadas e comentários pouco lisonjeiros que "os antigos" se esmeram em fazer circular Mostram que a tentativa de desabonar o outro grupo, repetida à exaustão, giram em torno de brigas pelo poder e de pequenas intrigas que os membros das duas comunidades travam entre si, em busca de uma confirmação (os habitantes mais antigos) ou de uma mudança (os recém-chegados) do precário equilíbrio em que se sustenta a convivência entre os dois segmentos.

Eis uma conclusão que Elias julga insofismável e tem significado maior para o psicólogo da religião que estuda o senso de auto-suficiência de certos grupos religiosos e que na Bíblia pode ser visto na maneira como as facções religiosas existentes na aldeia estudada falam uma da outra. Elias pensa que as fofocas, gozações e aleivosias tão disseminadas em Winston Parva espelham muito mais os defeitos de quem as espalha do que os de seus desafetos. São, portanto, imagens sociais calcadas em inconsistências e frustrações dos emitentes e não necessariamente de suas vítimas. Outro dado psicológico detectado pelos autores é o de existir nessas fofocas um componente sádico, "uma funda capacidade de machucar que se reforça pela concordância silenciosa por parte dos atingidos, os quais, mesmo sem o desejar, contribuem para viabilizar a depreciação do grupo a que pertencem".

Termino com duas observações, que li em Micelli, sobre a novidade trazida por Elias e Scotson. Considero-as de grande relevância psicossociológica, teórica e analítica, para o estudioso das religiões. São observações que mostram claramente as limitações das grandes teorias gerais de que fazemos tanto uso em uma espécie de alibi do tipo "Freud explica" ou "Marx explica".

Primeiro: este livro mostra que muitos dos conceitos e teorias reinantes nas ciências humanas a respeito das comunidades são de sabor saudosísticamente rousseauniano. São calcados "em modelos idealizados do que seriam aldeias pré-industriais imaginárias, cujos integrantes estariam unidos por um tecido de coesão e estabilidade, num clima de integração propício a níveis de felicidade que só teriam existido no passado" Ora, diz Micelli, um instrumental assim capenga não é capaz de "destrinçar os fenômenos brutais de nosso cotidiano: estados crônicos de miséria e violência, episódios sinistros de preconceito e discriminação, discursos moralistas e conservadores em defesa dos direitos ‘humanos’, da liberdade’’ e, último flagelo, da ‘modernização’ capitalista.

A segunda observação vai no sentido de sublinhar que "mesmo na ausência de tensões raciais, étnicas ou de classe, ou de mescla de ingredientes derivados dessas clivagens, as figurações de "estabelecidos" e "outsiders" ilustram os esquemas estruturais pelos quais vão tomando feição desigualdades entre grupos. Elas estão na raiz da gestação coletiva de sentido por cujo intermédio os grupos processam suas trajetória, identidade, hierarquia interna e, ao mesmo tempo, medem forças e plasmam um sistema de poder".

Concluo incentivando o leitor a dedicar algumas horas à leitura deste livro que se destaca no morno da literatura sociológica de hoje.

Edênio Valle

Notas

[1] Por exemplo, no que toca à compaginação dos dados tão dia-a-dia da pesquisa com análises clássicas do poder como a marxista.

[2] Micelli, Sérgio, Mocinhos e bandidos, em: Jornal de Resenhas, 2000, No. 64, p. 1-2. As outras citações em itálico são do mesmo texto.

[3] Sobre o que pensam os brasileiros pobres dos detentores do poder é estudado por Caldeira, Tereza P.R., A política dos outros. Cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder dos poderosos, São Paulo, Brasiliense, 1984.