GEBARA, Ivone.
Trindade, palavra sobre coisas velhas e novas. Uma perspectiva ecofeminista. São Paulo: Paulinas, 1994, pp.71. ISBN 85-7311-062-7

por Ênio José da Costa Brito

Numa dessas arrumações de livros, que periodicamente somos obrigados a fazer, para não entrarmos em desespero toda vez que precisamos de um, encontrei o sugestivo livro de Ivone Gebara intitulado, Trindade, palavra sobre coisas velhas e novas. Uma perspectiva ecofeminista[1]

A releitura confirmou sua atualidade e importância.,predicados que vão aparecendo aos poucos durante a leitura. A proposta de Gebara é repensar a Trindade em estreita ligação com a experiência humana, com um objetivo de ordem prática, pastoral e sobretudo, ecofeminista. "Quero, com vocês, me interrogar sobre aquilo que experimentamos hoje e que nos leva a falar da Trindade". (p.24) Trindade, palavra sobre coisas velhas e novas está organizado em três capítulos, escritos numa perspectiva dialogal. No primeiro, a autora coloca já no título sua preocupação nodal: A que experiência humana corresponde o discurso sobre a Trindade (p.11-30)

Começa relembrando a maravilha que é o ser humano, fruto e expressão criativa da vida. O rico processo de aprendizado vital fez com que ele abandonasse o mundo sólido da natureza e empreendesse a aventura cultural. Como ser necessitado de sentido e criativo, lentamente, construiu significados religiosos, sociais, políticos que o ajudasse a viver. A experiência humana em relação a Deus, por exemplo, é de uma amplitude extraordinária e não pode ser reduzida à elaboração teológica da Trindade,que apropriou símbolos trinitários de modo indevido e exclusivo. "Se as palavras Pai, Filho e Espírito Santo são símbolos, precisam ser compreendidos sempre de novo para que sua extraordinária riqueza apareça".(p.19) Tarefa nada fácil para as culturas ocidentais construídas em torno de visões hierárquicas e patriarcais do mundo e em torno da figura monoteísta masculina de Deus.

Para a autora, a questão da Trindade está intimamente relacionada com a experiência humana da multiforme multiplicidade. A partir desta experiência de multiplicidade, o ser humano pensa Deus como Diferente, como Superior a essa relatividade que o constitui, como Uno. O fio da nossa experiência trinitária e da linguagem que tenta expressá-la nasce, pois, de nossas entranhas como o fio de aranha

A Trindade comporta, pois, ao mesmo tempo, a multiplicidade e o desejo de unidade. "Trindade é o nome que damos a nós mesmas(os), nome que é síntese da percepção da nossa própria existência. É uma linguagem que construímos para tentar exprimir essa consciência de ser multidão e ao mesmo tempo unidade".(p.27) Esta redescoberta do nosso ser profundo pode levar-nos "a renascermos de novo em Deus, renascermos para a Terra, para o Cosmo, para a história, para o serviço, para a construção de relações humanas fundadas na justiça e no respeito recíproco".(p30)

O segundo capítulo, A linguagem religiosa e sua cristalização nas instituições religiosas (p.31-37) começa retomando a idéia dominante do capítulo anterior:"a Trindade é uma maneira de exprimirmos nossa experiência interior e exterior da multiplicidade e unidade que nos caracterizam".(p.31)

Portanto, a Trindade é também uma linguagem, isto é, através dela exprimimos nossa experiência plural da Transcendência. Entretanto, o mundo da religião patriarcal ao apegar-se a conceitos definidos deu origem a um processo de cristalização que empobreceu tanto a linguagem simbólica, quanto a religiosa e atingiu a experiência trinitária, tirando-lhe todo o dinamismo.

Trindade é símbolo, é metáfora que remete para além daquilo que é dito."Pai, Filho e Espírito Santo são expressões simbólicas dentro da experiência cristã para falarmos dessa intuição profunda de que finalmente somos todos e todas com tudo o que existe, participantes do mesmo sopro de vida.(p.36)

Reconstruir o dinamismo trinitário, eis o trabalho empreendido por Gebara no terceiro capítulo intitulado, A reconstrução dos significados trinitários e a celebração da vida. (p.39-65)

Ao optar por um horizonte antropológico mais amplo, quer superar a formulação e sistematização trinitária cristã e revelar o quanto há em comum entre os grupos humanos e o conjunto de Terra e do Universo. Propõe, então, considerar a Trindade no cosmo, na Terra, nas relações entre povos e culturas, nas relações humanas e em cada pessoa.

Numa perspectiva simbólica, fala de uma estrutura trinitária cósmica que vem a ser a estrutura única e multiforme do Universo, marcada pela diferença e pela articulação e interdependência entre todas as coisas.

Uma observação puramente empírica do complexo processo vital revela não só a espantosa mutação da Terra, Terra Trinitária, mas também o surgimento de diferentes grupos humanos entre os quais vigora uma cidadania cósmica e terrícola. "A pluralidade que nos constitui como grupo humano é Trindade ou seja, é a expressão simbólica dessa realidade múltipla e uma que é realidade constitutiva de nosso tecido vital". (p.45)

Sendo a interação entre o eu e o tu uma marca registrada das relações humanas, podemos dizer que o mistério trinitário está presente tanto na solidão humana quanto na relação íntima, entre o eu e o tu. Pois, a nossa solidão é "solidão para além de nossa individualidade, solidão pessoal habitada pela multiplicidade".(p.46) e na nossa relação íntima "somos eu/tu e o mistério ou seja o mistério de nossa presença ao mundo, ao Universo, a nós mesmos(as)".(p.47)

A absoluta interdependência de nossa realidade pessoal de outros e do conjunto da Terra e do Cosmo deixa claro que nossa autonomia é sempre relacional, dependente de. Podemos, então afirmar que: " nossa própria estrutura pessoal é trinitária, ou seja, é misteriosamente múltipla e uma ao mesmo tempo".(p.48-49)

A segunda parte do capítulo, está orientada para a reconstrução da celebração, realizada à luz da reflexão feita sobre a Trindade. Celebrar é um momento simbólico, fundamental na vida humana, que nos incluí, nos abre para a bondade que habita em nós, colocando-nos em comunhão com todas as formas de vida, com todas as energias cósmicas. Daí, a necessidade de exprimirmos nela as coisas essenciais e de criarmos símbolos comuns que quebram particularismos religiosos.

Em seguida, tenta abrir pistas, para ajudar-nos a entender que celebramos não só o bem mas também o mal. A questão sempre atual do mal tem sido uma preocupação permanente dos sistemas morais que o distinguem do bem, buscam saneá-lo e evitá-lo.

A visão trinitária do Universo, ao distinguir os processos de criação e de destruição inerente à própria evolução da vida e o mal moral ou ético, ajuda-nos a compreender que o mal ético está em nós e que tem a sua origem na nossa própria fragilidade constitutiva. Ajuda-nos, também, a superar uma imagem patriarcal e hierárquica de Deus nascida, muitas vezes, de uma incorreta compreensão do mal. A autora descreve este mal de duplo aspecto, como falta de equilíbrio, negatividade, vazio presente em tudo que permite conflito e encerra possibilidade criativa.. Essa visão ao ampliar nossa compreensão da existência, da vida, da terra e de todos os seres viventes, permite superarmos um antropocentrismo dualista e excludente. "Celebrar o mal não jubilar porque o cometemos, mas é também uma forma de nos apropriarmos daquilo que também somos e tentarmos o caminho da vida em abundância". (p.64)

A densidade e a beleza da conclusão relembram, como num acorde final, as notas dominantes do texto. Trindade, palavras sobre coisas velhas e novas dá a impressão de ser um livro despretencioso,mas o leitor está diante de um texto intuitivo, instigante, desafiador e profundamente enraizado na experiência existencial.

Gebara ao optar pela perspectiva ecofeminista, não quer restringir o diálogo mas eleger a mulher como sua interlocutora privilegiada. "A perspectiva ecofeminista, articulação íntima entre uma linha feminista de pensar a vida e uma linha ecológica, nos abre não só para uma possibilidade real de igualdade entre mulheres e homens, de diferentes culturas, mas para um relacionamento diferente entre nós, com a Terra e com todo o Cosmo".(p.69)

O livro abre pistas de reflexão sobre temas nada fáceis no campo teológico. O desenvolvimento de alguns temas daria à autora a possibilidade de aprofundar e tirar todas as conseqüências de suas intuições presentes no texto. A própria autora, em algumas passagens, expressa o desejo de dar continuidade às suas reflexões. O capítulo segundo sobre a linguagem religiosa, por exemplo, poderia ser ampliado. Toda a discussão sobre a problemática do mal pede um diálogo interdisciplinar mais amplo, que a autora insinua, deixando transparecer o quanto já refletiu sobre o tema, mas não chega a estabelece-lo. Estas observações apontam para o caráter seminal do texto, não diminuindo em nada seus méritos.

Este livro de Ivone Gebara tem sido recebido com paixão pelas leitoras e leitores, pois, desperta o gosto pela reflexão e o prazer pela vida.. Gebara, por ser a profundamente atenta à vida, pensa para que a vida não escape e o faz muito bem . Vale a pena conferir!

Notas

[1] GEBARA, Ivone. Trindade, palavra sobre coisas velhas e novas. Uma perspectiva ecofeminista. São Paulo: Paulinas, 1994 .