TEIXEIRA, Evilásio Borges
Aventura Pós-Moderna e sua Sombra, Editora Paulus, 2005, São Paulo, ISBN 85-349-2416-3, 118 p.

por Maria Aparecida dos Reis Pereira[*]

Neste livro, o autor elabora uma contextualização da modernidade e seu processo de secularização, no intuito de compreender a filosofia contemporânea, dita pós-moderna, procurando estabelecer um diálogo entre elas. Em seu itinerário, serve-se de uma metodologia polifônica, apresentando-nos, entre outros, o pensamento de estudiosos da questão, como F.D.E. Schleiermacher, J. Baudrillard, J. Habermas, J.F Lyotard, P. Ricoeur, L. Feuerbach, P. Gilbert, C. Dotolo, U. Perone, G. Guest, W. Kasper e , principalmente, G. Vattimo. E evidencia a filosofia de R. Descartes, F. Nietzsche e M. Heidegger, considerados o primeiro o fundador da filosofia moderna e os últimos os precursores da filosofia pós-moderna.

Se a modernidade foi marcada pela racionalidade e a subjetividade, tendo ainda como fundamento a metafísica, a pós-modernidade aponta para uma indeterminação, para uma crise de fundamentos, para uma mudança na imagem da racionalidade, pois se trata, agora, de “uma razão que não pretende fundar algo, mas somente tornar-se razão da provisoriedade da humana conditio” (p. 8). E, nesse salto sem rede em que se lança o pensamento, ciente de que é “produto e produtor de luz e de sombras”, temos a importância da hermenêutica que se apresenta como teoria filosófica com a proposta de reconstruir e interpretar o processo histórico da filosofia moderna e, segundo a concepção vattimiana,”dar razão às diversas imagens do mundo” (p. 108).

A argumentação do autor é desenvolvida em quatro capítulos, que passamos a expor, em breve síntese:

Capítulo I: Uma leitura filosófica da realidade contemporânea

  1. A modernidade em crise
  2. Modernidade: eficácia técnica
  3. A emergência da subjetividade
  4. A questão do sujeito

Os grandes eventos do século XVI, quais sejam, o Renascimento, o desenvolvimento das ciências, as grandes descobertas, a Reforma e a construção de novas ordens sociais instauraram uma crise, pois as soluções do pensamento filosófico precedente não eram satisfatórias, tornando-se necessária uma mudança de paradigma na explicação da realidade. A distinção entre a teologia e a filosofia se acentua, passando esta a ter primazia sobre aquela.

Verifica-se um acento antropológico na filosofia e, dentro dessa perspectiva surge René Descartes (1596-1650), considerado o fundador da filosofia moderna, que criou um método para fundar uma nova metafísica que estivesse aberta a esse novo mundo que se construía, tendo como ponto de partida o eu, o sujeito como critério do conhecimento da realidade. Para ele, tudo o que no universo está fora do sujeito (res extensa: matéria/espaço) torna-se objeto de sua análise e pode ser explicado pelas leis matemáticas. Tudo o mais (sensações, significados, fins, valores) reside no sujeito (res cogitans). Contra o objetivismo da auctoritas o homem toma a si a tarefa de assumir a própria verdade cognoscitiva . Mas, em vista da incapacidade do sujeito de responder a todas as questões e anseios de seu espírito, ele se remete a Deus, entendido como “arquétipo e fundamento da auto consciência e da liberdade humana” (p.24). A metafísica ainda funda a filosofia do Cogito.

A filosofia cartesiana, fundada na confiança do pensamento como fonte de conhecimento, foi responsável pela fundação e desenvolvimento das ciências modernas da natureza. Mas, em seu desenvolvimento, a ciência não busca mais somente compreender o mundo, mas transformá-lo. O homem moderno erige o próprio mundo através da manipulação das coisas, procurando a eficácia técnica de todas as formas.

O século XVII, ou das Luzes, se caracteriza pela crença nos poderes ilimitados da razão e no progresso indefinido do homem.

A questão do sujeito desenvolveu-se em duas linhas de pensamento na tradição: 1) a “analítica” ou kantiana, que trata das condições transcendentais de possibilidade do conhecimento e tem a ver com as filosofias contemporâneas que se concentram sobre a lógica, a epistemologia e a ética, enfatizando seu aspecto estável e universal; e 2) a “continental” ou hegeliana., que tem seu foco no ser humano concreto, na “história-destino” do ser e conduz a Heidegger e seus seguidores. Coloca-se na linha continental a problemática cartesiana do eu, do homem, da mente.

Capítulo II - A perda do fundamento

  1. A crise do conceito do ser
  2. O homem como projeto jogado no mundo - ser aí
  3. Secularização: metáfora da modernidade?
  4. Modernidade: ruptura com a tradição
  5. Metafísica e história do ser

Ao lado da racionalidade e da subjetividade, temos também a secularização como característica da modernidade. Trata-se de um processo pelo qual as diferentes esferas institucionais funcionam segundo uma lógica própria, emancipando-se da tutela religiosa. A passagem do sacro ao secular tem a ver com a auto-afirmação do sujeito, que rejeita as velhas respostas do universo teológico medieval, buscando outras mais adequadas à nova realidade. O sujeito rompe com a tradição metafísica.

Mas “a determinação da razão como autoconsciência começa a mostrar os sinais de uma razão não muito segura dos seus fundamentos” (p. 32). Nietzsche (1844-1900), em O nascimento da tragédia, denuncia a superficialidade da consciência ao tratar da distinção que faz entre o seu lado apolíneo e dionisíaco; à medida que aquele (da racionalidade) se afasta deste (das pulsões), perde consistência e vitalidade, tornando-se decadente. O desmascaramento da superficialidade da consciência resulta na impossibilidade de pensar o ser como fundamento último da realidade. A crise da subjetividade em Nietzsche é o anúncio da “morte de Deus”, que será formulada na Gaia Ciência.

Heidegger (1889-1976) critica a metafísica tradicional que vê o ente como uma substância que se identifica com sua própria essência (ser) e se apresenta como simples presença no mundo (o ser no mesmo plano do ente). Para ele, o ser humano deve ser pensado como ser-no-mundo (Dasein) e ser de projeto, aberto a horizontes e possibilidades. E está colocado no mundo como ser-jogado e ser-para-a-morte, diante da tarefa temporal de ser. O Dasein é convocado a ser presença ativa na história e na construção de sua subjetividade Para Heidegger, o ser não é, mas acontece, é evento que se realiza nos caminhos da existência humana.

Capítulo III - Metamorfose da razão

  1. O eclipse do paradigma da razão clássica
  2. O sujeito e a máscara
  3. Uma nova perspectiva hermenêutica: a dança de Dionísio
  4. Uma nova koiné hermenêutica

A teoria do conhecimento da razão clássica vivencia uma certa crise com a quebra da relação história-sujeito, linguagem e mundo. O modelo clássico da razão é colocado em questão por se tratar de uma “racionalidade que busca uma hierarquia dos eventos na organização do real, através de uma seqüência lógica de “causa-efeitos”, garantindo assim uma normatividade que se expressa por meio de leis de relação” (p. 64). Sua grande pretensão é a adequação entre saber e realidade.

A “crise é conseqüência de um mal-estar ontológico” (p. 65) e diz respeito à emergência de uma racionalidade que não leve a uma regressão ao arbitrário, tal como um “neopositivismo redutivo” ou um tipo de “anti-racionalismo místico”.

Para ler a crítica feita por Nietzsche ao pensamento ocidental, Vattimo, que o considera um dos precursores da hermenêutica, se vale do conceito de máscara: “a máscara representa o rosto de uma realidade e uma verdade que se fundam numa co-relação essencialista e sobre um equilíbrio entre ser e aparecer” (p. 66). Nietzsche propõe a superação das máscaras que revestiram a história ocidental de uma metafísica historicista e glorificaram o “mundo das aparências”. O eu, racionalidade e consciência manifesta nas relações sociais, se coloca como um produto social que compartilha os condicionamentos transmitidos pelo meio para garantir a sua estabilidade. A natureza dos motivos sociais mascara a vida e a verdade e anula qualquer possibilidade de criatividade.

Na mimetização dos comportamentos sociais, a moral se organiza pela necessidade de segurança e na justificação teórica da segurança existencial aparece a metafísica. O sujeito necessita de um referimento às noções últimas, para superar uma situação originária de precariedade e indigência.

Nietzsche considera que a pretensão do conhecimento da totalidade da realidade é uma patologia do homem metafísico e propõe uma outra dimensão do saber em que se assuma a condição de provisoriedade.

A metafísica e a moral vigentes (cultura apolínea), como interpretadas por Nietzsche, imobilizaram o princípio do prazer, tornando-se necessário libertar-se dos “tiranos do espírito” para tornar-se “aeronautas do espírito”, liberando o dionisíaco. Coloca o método genealógico como “evento decisivo da passagem para uma nova forma de vida”, que se caracteriza pela “paixão da consciência”. Esta “é uma forma de conhecimento que orienta o homem na sua aventura em busca da verdade e na aceitação prazerosa da vida, apesar de sua tragicidade” (p. 71). Ao contrário da concepção platônico-cristã do sofrimento, em Nietzsche “a dor é doação de sentido e portadora de inocência, sinal de um ateísmo que libera o sofrimento e o trágico da super-estrutura moral-religiosa da culpa” (p.71).

A alegoria profética de Zarathustra, homem cujo pensamento é livre e genealógico, mostra uma nova perspectiva de interpretação de eventos, ausentes de regras, como que uma antecipação da forma hermenêutica que tem como peculiaridade a leitura do niilismo como provisória instituição do eterno retorno e a “progressiva negação de todos os valores, significados, critérios, sobre os quais a metafísica e a moral tradicional se fundavam” (p. 73). A vontade de potência se expressa na decisão pelo instante, cuja intensidade produz “uma humanidade capaz de querer a repetição, capaz de não viver mais o tempo de modo angustiado, como tensão em direção a um cumprimento sempre por vir” (p. 73).

Vattimo situa no pensamento de F. Schleiermacher (1768-1834) um momento importante na passagem da simples técnica da compreensão a uma concepção filosófica da hermenêutica, pois ele “entrevê no exercício hermenêutico um envio ao próprio movimento do existir onde 'compreender' é entendido como 'interpretação'...” (p.74), “...uma vez que o ser e o mundo implicam necessariamente a interpretação e a pergunta pelo compreender” (p. 75).

Capítulo IV - Aventura pós-moderna

  1. A pós-modernidade como fratura e distância da modernidade
  2. Pós-modernidade e o problema do sentido
  3. A pergunta pelo sentido da história
  4. Existência como interpretação

O fim da modernidade revela uma crise de certezas: na autonomia da razão e na idéia de um tempo histórico progressivo.

Os processos de racionalização e de secularização favoreceram o “desencantamento” do mundo, conforme observam tanto Nietzsche quanto Weber. Não há mais um referimento ao transcendente. O não saber responder ao problema de sentido é a marca dessa nova condição, dita pós-moderna.

Para Heidegger, é inadequada a noção de verdade como conformidade, porque ela implica na concepção de ser como princípio primeiro, e busca uma descrição mais apropriada do sentido do ser e da experiência da verdade como eles efetivamente acontecem. Superando a concepção metafísica, ele coloca a concepção do ser como acontecimento e verdade como abertura histórico-cultural. Para ele, ao nascer herdamos um universo cultural, um a priori que torna possível nossa experiência no mundo, mas “não como rígido esquema determinado e determinante” e sim como possibilidades.

Segundo Lyotard, falta na pós-modernidade a legitimação dos valores de verdade e justiça que, na modernidade, estavam ancorados nos grandes relatos históricos e científicos. Resulta do processo de desconstrução da metafísica estarmos numa “sociedade sem pai”, sendo necessário buscar outra legitimidade para a sociedade do futuro.

Vattimo considera a hermenêutica uma teoria filosófica “capaz de dar razão às diversas imagens do mundo”, mais precisamente a hermenêutica da escuta, um novo método no exercício de interpretar, que convida o homem a deixar a estrutura fechada das proposições e se voltar ao plano ôntico da existência, disponível para “escutar a palavra não mais como sinal ou voz do ente, mas como apelo do ser” (p. 109).

O autor, nesta obra de relevante valor acadêmico, descreve um quadro da crise do pensamento moderno e expõe as idéias transformadoras dos “pais” do pensamento pós-moderno, Nietzsche e Heidegger, de forma a situar o leitor no paradoxo do pensamento contemporâneo: de um lado a crise da modernidade e a impossibilidade de desconsiderar suas conquistas (racionalidade e subjetividade) e, de outro, o surgimento do pensamento pós-moderno que segue em aberto, num processo de metamorfose não-concluído. E aí temos a hermenêutica da escuta que se apresenta como história do ser.

Notas

[*] Maria Aparecida dos Reis Pereira, pós-graduada em Filosofia pela PUC-SP e integrante do Grupo de Pesquisa Pós-Religare, da PUC-SP.