TERRIN, Aldo Natale
Antropologia e horizontes do sagrado. Cultura e religiões, São Paulo: Paulus, 2004. 420p. ISBN 85-349-2064-8.

por Joachim Andrade[*] []

O Livro de Aldo Natale Terrin é composto por 19 ensaios divididos em duas grandes partes que, segundo o autor, se propõem a uma dupla tarefa: "rever as teses dos antropólogos do ponto de vista metodológico e [...] recuperar significados religiosos em nível antropológico voltando a atenção à 'simbologia' do outro." (p. 10/11). Em ambas as partes, percebemos uma preocupação em repensar as manifestações religiosas, principalmente as do mundo cristão. Uma preocupação que permeia quase todos os ensaios é a referente ao diálogo religioso; em muitos momentos, o autor questiona a capacidade das religiões de conviverem com concepções religiosas e visões do sagrado diferentes da sua. Após a leitura completa do volume, não percebemos o porquê dessa divisão, uma vez que os textos nele reunidos foram anteriormente publicados em revistas da área de religião e não encontramos unidade que justifique esses dois conjuntos de textos.

O primeiro ensaio, "A parábola da antropologia e o seu movimento para o simbólico", o mais extenso e teórico de todo o livro, faz uma revisão de diferentes teorias antropológicas, considerando a pouca abertura que muitas delas têm em relação à inclusão do estudo da religião do ponto de vista da cultura e a falta de metodologias adequadas que consigam uma abordagem satisfatória das manifestações do sagrado. As reflexões do autor se baseiam em duas premissas: 1) - a Antropologia deve estar aberta a contribuições e vantagens "globais" do ponto de vista simbólico e não permanecer fechada metodologicamente no círculo vicioso de um funcionalismo sócio-cultural; 2) - deve-se demonstrar que o mundo do ritual é um campo privilegiado para o estudo da religião e do homo religiosus. Para isso, o autor faz um panorama da História da Antropologia (de Frazer e Tylor até Geertz e Turner), sempre considerando a capacidade/incapacidade de cada teórico de incluir ou excluir o estudo da religião em suas análises. Terrin ilustra muito precisamente os erros e acertos das diversas escolas antropológicas no que diz respeito ao estudo da religião. Segundo o panorama apresentado, a corrente interpretativa que apresenta melhores condições de realizar uma análise mais eficiente da religião é a da Antropologia Interpretativa.

A preocupação principal de Terrin é o estudo dos ritos como manifestação do sagrado; nesse contexto, a ausência da Antropologia Estrutural e de Lévi-Strauss no panorama apresentado é muito significativa. Por um lado, essa ausência, ao ser coerente com a preocupação do autor, de privilegiar a dimensão simbólica do mito, se exime de entrar em duas discussões muito complexas, sobre o mundo dos mitos e a relação deste com os rituais. Por outro lado, a exclusão dos mitos de seu campo de análise implica em desconsiderar a linguagem, uma dimensão simbólica que também está presente no ritual. Em suma, percebemos que o homo religiosus de Terrin é predominantemente ritualístico mas, para quem a linguagem e a dimensão mítica não têm tanta importância. De certo modo, podemos deduzir que o mundo ritualístico imaginado por Terrin é predominantemente visual.

Em "A relação entre culturas e o diálogo entre as religiões", o que deveria ser o ponto principal, isto é, uma comparação entre as diferentes formas de diálogo (cultural e religioso) acaba dando espaço para uma revisão a respeito de como consagrados autores da Antropologia vêem a relação entre culturas, que é aqui considerada apenas de forma bastante teórica e abstrata. O que deveria ser uma introdução ao problema, ou apenas uma parte da comparação (como as culturas dialogam) acaba ocupando boa parte do ensaio; apenas na última seção o autor se refere a diálogo religioso, que é utilizado como mera ilustração do diálogo intercultural. O autor conclui, superficialmente, que "Concretamente as culturas se encaminham para a ´interculturalidade´, as religiões convergem para o ecumenismo" (p. 87). Ora, a simplificação aqui é bastante evidente, uma vez que confunde ecumenismo com diálogo religioso. A conclusão, de caráter evidentemente prescritivo, parece destoar do restante do texto, uma vez que não se apóia em nenhuma das teses apresentadas até aquele ponto:

Num tempo em que as culturas se fragmentam e se entrecruzam, se constroem e se dissolvem, as religiões têm o dever de tentar um caminho paralelo de ecumenismo e de globalização de forças, caminho indicado pelo próprio mundo atual, mas têm também o dever de realizar esse percurso em sentido unitário e convergente para ainda servirem de ponto de referência e de farol de luz para a humanidade (p. 87).

O ensaio dedicado ao profetismo nos dias atuais, "Profecias hoje. Anseios, desejos e expectativa", é um grande questionamento sobre as possibilidades da profecia em um ambiente pós-moderno. A reflexão segue um caminho que considera unicamente o aspecto histórico da manifestação profética. Ora, embora a dimensão histórica seja um fator que determina e mesmo condiciona a profecia, não é sua única componente. Ao privilegiar o aspecto histórico, o autor parece enfatizar demais a importância de uma crise de consciência histórica por que passa a nossa civilização. E aqui duas coisas devem ser consideradas: por um lado, a crise é justamente um dos fatores que favorecem - e mesmo exigem - uma resposta profética, é o momento no qual uma concepção de história se depara com suas limitações e se mostra incapaz de analisar o momento presente e nos indicar um futuro, seja ele qual for; por outro lado, a idéia de "fim da história" coloca para a Teologia profética uma questão de resposta apenas aparentemente fácil: o fim do tempo, que pode ser entendido como o fim dos tempos ou como o kairós, o não-tempo.

Terrin parece esquecer que a profecia também é uma manifestação da palavra, o que equivale a lembrar seu aspecto comunicativo. Uma maneira de considerar a questão profética é o questionamento sobre as possibilidades de comunicação em um ambiente onde a linguagem parece estar saturada. Em outras palavras, quais são as possibilidades da profecia em meio à atual "Babel pós-moderna", onde, conforme reconhece o autor, "o significado da verdade mudou de registro: ela não é mais a correspondência entre o fato entendido e a proposição, como na filosofia analítica, mas é a correspondência do mundo ao meu sentir e perceber o mundo" (p. 102). São mencionadas algumas manifestações proféticas surgidas a partir do século XIX, principalmente em países africanos e países emergentes. Essa enumeração parece mais uma inserção apócrifa e dispensável em meio a uma reflexão teórica, uma vez que os dados apresentados não são retomados na argumentação e na conclusão.

Percebe-se, aí, um erro conceitual: a inclusão dos cultos afro-brasileiros como manifestação "profética". Ora, no Candomblé, a divindade, usando o corpo dos médiuns, manifesta-se no mundo dos homens através da dança, do gesto, mas não através da palavra. Os deuses do Candomblé não falam, dançam. O ritual e a teoria do Candomblé desconhecem a noção de tempo histórico. Nesses cultos, o médium não possui aquilo que Terrin denomina de "características clássicas do profeta": 1) - pertencer a um contexto sócio-religioso e, ao mesmo tempo, contestar a ordem estabelecida; e 2) - tentar abolir as estruturas sócio-políticas existentes para criar outras.

Outro aspecto da cultura contemporânea considerada é a espiritualidade da Nova Era, definida pelo autor como "profecia mística difusa" (p. 97). Aqui, o autor parece confundir o misticismo de caráter holista da Nova Era com profecia. Ora, o caráter heterogêneo do discurso da Nova Era parece confirmar a constatação de que a comunicação do novo, do diferente, é muito difícil nos dias atuais. Essa manifestação de espiritualidade enfatiza uma pertença mística do mundo que não é apenas uma repetição de diversas tradições místicas (da mística oriental e também ocidental) e enfatiza o subjetivismo individualista. Considerando esses aspectos, nos parece desarticulada a conclusão final do ensaio: "A profecia não tem mais utilidade, tem utilidade a expansão do espírito hic et nunc" (p. 106). Ora, é exatamente a expansão, leia-se a manifestação do espírito no hic et nunc, que passa por uma grande crise. O subjetivismo individualista transfere a expansão do espírito para uma dimensão subjetiva que é desarticulada com o ambiente sócio-cultural no qual o indivíduo está inserido. Em outras palavras, é uma espiritualidade que valoriza o bem-estar individual e não assume nenhum compromisso com a transformação da sociedade, pois estão convencidos de que "meu reino não é deste mundo".

Dois ensaios - "O sentimento do bem e do mal no mundo da Nova Era" e "A ecologia da profundidade. Como vencer o mal na vida" - são dedicados à Nova Era . Nesses artigos, a Nova Era é referida de maneira bastante genérica. O autor não se concentra em um ou, no máximo, em dois de seus aspectos. Por tentar uma simplificação de um objeto tão multifacetado e heterogêneo, o texto às vezes parece apresentar contradições no que diz respeito a essa manifestação da espiritualidade. O primeiro artigo, por exemplo, inicia afirmando que a Nova Era é uma manifestação que nasce e tenta superar a atual crise espiritual do mundo ocidental (p.107). No final, adverte para o que seria um perigo da Nova Era: a "incapacidade de caminhar na história, com os pequenos problemas concretos de cada dia" (p. 122). O autor afirma que a Nova Era "se serve de uma ecologia de caráter imanentista" (p.114), mas, em seguida, realça seu caráter subjetivo e individualista: "Como tudo está no espírito, tudo acaba sendo 'subjetivo' e 'individual'" [p. 119]).

Por outro lado, quando investiga a maneira como são concebidos o Bem e o Mal, o autor consegue demonstrar, embora apresentando pouca documentação e argumentação, a grande simplificação desses dois conceitos propostos pela Nova Era. Essa manifestação de espiritualidade propõe uma síntese de diversas tradições místicas e religiosas, mas é notória a ausência de uma definição mais profunda do problema do Bem e do Mal, que estão muito presentes no Budismo e no Cristianismo. A Nova Era se apropria de valores dessas duas tradições, mas de forma "pasteurizada" pelo filtro do subjetivismo e do pensamento positivo. Sendo assim, o amor budista assume apenas "a face de uma profunda piedade e compaixão por todos os que sofrem" (p. 119). Do Cristianismo, apenas o "Cristo Cósmico" é realçado, não havendo lugar para o "Cristo Crucificado".

A grande aporia da Nova Era é não poder dar uma resposta convincente para a existência do Mal no mundo contemporâneo, ao passo que, tanto o Budismo quanto o Cristianismo, oferecem reflexões bastante profundas a respeito. O misticismo heterogêneo da Nova Era é uma versão simplificada de tradições místicas de diversas culturas (cultura védica, Budismo Zen, mística judaica) que são adaptadas ao subjetivismo individualista da sociedade ocidental moderna.

Dois ensaios são dedicados à cultura contemporânea. Percebemos, em "O corpo e o sexo na cultura contemporânea", uma simplificação muito grande no tratamento do tema corpo e sexualidade. O que se observa é apenas uma repetição de lugares-comuns já consagrados. Uma metáfora utilizada por Terrin – do sacrifício de Cristo como um grande potlach – parece estar aqui fora de contexto. O texto que trata da morte, "Violência e morte na sociedade secularizada", demonstra como a sociedade procura "domesticar' a morte", esvaziando o seu simbolismo social e religioso. Aqui, Terrin parece preocupado apenas em confirmar a tese de René Girard sobre as relações entre a violência e o sagrado e a falta de rituais na vida moderna. No Cristianismo, percebemos que a morte recebe não apenas um tratamento ritual, mas que também ocupa um lugar central do ponto de vista simbólico. Um dos pontos principais da fé cristã é a morte e ressurreição de Cristo e a tradição católica enfatiza a morte como o caminho para "ver a face de Deus". Portanto, a "domesticação da morte", mencionada por Terrin, implica em uma discussão teológica com um dos pontos principais da fé cristã. Essa "pasteurização" da morte é, de certo modo, sinônimo de repressão de sentimentos, que agora estão desprovidos de mecanismos simbólicos para se expressarem ou para serem sublimados. Também há uma implicação teológica, pois essa sociedade que enfatiza apenas a temporalidade e a "impermanência" provoca a extinção da dimensão da eternidade. Uma conseqüência desta falta de eternidade talvez seja a descrença na própria vida, ou seja, da "vida nos séculos futuros". (Credo Niceno).

Em "Para uma Fenomenologia do Amor Humano" Terrin introduz a questão do amor, mostrando que ele é um confronto constante com a vida. O amor é uma experiência de vida que não encontra correspondências adequadas nas palavras e não se move em troca de uma simples reflexão. O autor reafirma a tese de que o ser humano é naturalmente destinado a amar, pois o amor "nasce de um sentimento profundo, ele não aceita os compromissos e não teme a concorrência das motivações sócio-culturais de protocolo" (p. 149). Sendo assim, confirma-se a observação dos fenomenólogos, de que a pessoa é um "ser para", do mesmo modo que o nosso corpo está aberto para diversas experiências sensoriais. Portanto, essa pessoa é relacional e a necessidade de intersubjetividade um imperativo relacionado com a própria situação existencial. Tem uma necessidade de olhar a realidade com o olhar do outro. O autor lembra a etimologia de "existir", ex-sistere, que também pode ser traduzido como "sair de", elevar-se para fora de si. Assim, aponta para um movimento em direção ao outro que, ao mesmo tempo em que é diferente de mim, e talvez justamente por isso, fornece uma nova maneira de olhar para mim mesmo. "Para encontrar a si mesmo, o ser humano deve sair de si, deve encontrar o outro e deve de algum modo tornar-se diferente de si". (p. 153)

Na segunda parte do ensaio, Terrin apresenta as dificuldades de amar em nossos dias por conta do egocentrismo da cultura atual. Ao privilegiar a transitoriedade e a impermanência, essa cultura parece excluir as possibilidades de comprometimento com o outro. Nesse quadro de referências, o amor é considerado frustração, pois quanto mais forte o desejo de amar, maior será a frustração que nasce quando esse desejo encontra alguma interdição. Terrin conclui esse ensaio muito positiva citando Madinier: "amar significa construir um nós em que a consciência se ponha como relação de mim para ti e de ti para mim" (p. 160).

O texto "Matrimônio e ritos matrimoniais em algumas tribos do Quênia" esboça o início de uma discussão muito ampla: de que maneira o Catolicismo consegue assimilar e dialogar com as tradições do matrimônio em culturas não-ocidentais. Por um lado, esse confronto entre culturas obriga a Teologia Cristã a uma grande reavaliação de valores, pois fica evidente que a visão sacramental do casamento é, na verdade, a concepção de casamento do mundo ocidental. Por outro lado, toda a idealização do amor e do casamento do mundo ocidental é colocada em cheque. Em terceiro lugar, como a Igreja Católica pode continuar fiel a sua "verdade cristã" e estabelecer um diálogo produtivo com essas culturas.

Ao abordar a relação entre música e o sagrado (em "Música e experiência do sagrado"), Terrin considera a música em diversos aspectos - simbólico, comunicativo e como conhecimento – considerando-os, porém, superficialmente. Ao analisar a relação com o sagrado, enfatiza o aspecto "incomunicável" de sua experimentação e a compara com o caráter não-discursivo (entenda-se aparentemente não-retórico) da música. Termina o ensaio propondo o haicai como uma alternativa comunicativa para o Ocidente. Ora, até então não foi proposto nenhum paralelo Oriente/Ocidente ou Razão/música que justifique esse contraste, bastante inesperado.

A segunda parte do livro - "Horizontes do sagrado em perspectiva antropológica" - inicia com o ensaio "Mediações para o sagrado – antropologia e história comparada das religiões", um dos pontos altos do livro. Interessante não é apenas a questão colocada como ponto de partida, mas também o percurso percorrido pelo autor. Nesse ensaio, a abordagem das mediações para o sagrado limita-se àquelas de caráter sacerdotal. Em seguida, o autor propõe uma classificação dos tipos de sacerdotes baseada no conceito de "tipo-ideal" de Max Weber e analisa as religiões de acordo com o tipo-ideal que privilegiam. Nessa análise, Terrin parece esquecer que o sacerdote também é um participante da comunidade e, portanto, ao considerar se esse ou aquele tipo de "sacerdócio" é privilegiado, se está analisando o diálogo que se estabelece entre estrutura religiosa e estrutura social dentro de uma cultura. Terrin desconsidera esse fato e analisa o caráter dessa mediação apenas em comparação com a concepção do sagrado, uma vez que seu objetivo é, indiretamente, propor uma tipologia das religiões. A conclusão parece ser apenas uma esquematização bastante simplista baseada em Gordon Tylor, Przyluski e Victor Turner ("religiões do pai" x "religiões da mãe").

O ensaio "Monoteísmo, politeísmo, panenteismo" apresenta duas contribuições muito significativas. Por um lado, o autor aponta as concepções cristalizadas que dificultam que a discussão sobre o tema do monoteísmo e politeísmo seja aprofundada – por exemplo, através de um preconceito que geralmente tenta desqualificar o politeísmo - ou as idealizações de caráter romântico. Por outro lado, ao invés de repetir a questão monoteísmo x politeísmo através de lugares-comuns, o autor demonstra como o monoteísmo se apresenta em diversas tradições religiosas e como se articula com o politeísmo, ilustrando essa tese através do modo como diferentes culturas concebem a oração como veículo de comunicação com o mundo divino. Outra observação muito pertinente de Terrin se refere a como o atual ambiente pós-moderno parece esvaziar e mesmo obstruir todo e qualquer discurso religioso (p. 250); o autor chama a atenção para a necessidade de "construir, em especial, uma verdadeira fenomenologia da experiência religiosa que responda à sensibilidade da pós-modernidade" (p. 256).

A análise comparada dos ritos ("Os ritos 'se falam'") evidencia um problema de metodologia e perspectiva comparativa. O autor se propõe a comparar as manifestações da ritualidade no Cristianismo e nas diversas tradições religiosas. Ao invés de separar rito e sacramento, o autor pretende abordar esses dois conceitos em conjunto, às vezes tomando-os como sinônimos, o que implica em um grande problema metodológico. Ora, se, como o autor lembra na introdução da questão, sacramentum é uma manifestação característica do mundo cristão, incluí-lo como elemento de comparação implica, de início, em um grande problema para uma análise comparada: encontrar, em tradições não-cristãs, ritos que desempenhem papel de "sacramento". Grande parte do texto tenta resolver esse problema sem encontrar uma resposta. Sem querer, o autor demonstra que uma possível solução para essa comparação não poderá ser dada apenas levando-se em conta a comparação entre diferentes rituais; deve-se recorrer à tradição e à doutrina, e tal comparação demanda um elevado grau de conhecimento das religiões envolvidas. A leitura desse ensaio suscita algumas questões que parecem merecer um aprofundamento posterior: 1) - no universo cristão, é possível separar rito e sacramento? 2) - seria a dimensão sacramental uma característica do Cristianismo? Ora, não é demais lembrar que, mesmo dentro do universo cristão, o conceito de sacramento tem diferentes concepções.

Em "A sabedoria nas religiões", mais uma vez o autor propõe uma abordagem comparativa. Esse texto pode ser lido com um elaborado elogio à sabedoria. De fato, considerando-se uma afirmação de Wittgenstein sobre a limitação implícita em toda sistemática de pesquisa ("Todo método cria sua própria ignorância"), somos obrigados a concluir a deduzir a circularidade que certos modos "racionalistas" de pensamento e de apreensão da realidade nos impõem. O século XX foi abundante em demonstrar esse aspecto da pesquisa científica (Kuhn, Feyerabend, Cassirer, Popper). Em meio a essa discussão, as religiões apresentam como alternativa uma outra maneira de relação com o mundo do conhecimento - a sabedoria -, que Terrin apresenta como uma maior abertura simbólica do Homem na sua apreensão de conhecimento e contato com o mundo a seu redor. Durante a leitura desse ensaio, devemos ter presente a parte final do ensaio sobre a música, em que o autor apresenta o haicai como uma alternativa para a superação ao logocentrismo no qual o mundo moderno parece estar aprisionado.

As inusitadas conclusões de "A tolerância nas religiões do passado e do presente" destoam bastante do tom comparatista utilizado no restante do livro. Aqui, o autor parece assumir um ponto de vista que aparentemente parece ignora os esforços para o diálogo religioso e contradiz explicitamente o que foi afirmado no ensaio sobre o diálogo religioso ("A relação entre culturas e o diálogo entre religiões"). Percebemos nesse ensaio um tom conservador que parece por vezes sugerir o isolamento das religiões para preservar sua pureza, o que contrasta com uma afirmação anterior, quando, ao citar Van der Leeuw, o autor lembra que o caráter sincrético das religiões e que sua identidade em nível histórico não são absolutas.

Terrin relativiza e mesmo condena a tolerância ("A tolerância ultrapassou todos os limites e se tornou confusão das línguas e subjetivismo religioso desenfreado", p. 350). Conclui o ensaio propondo a auto-referencialidade de cada religião sugerindo um certo isolamento:

[...] toda religião necessita de uma identidade e de um mundo auto-referencial próprios. [...] Para defender a própria verdade, toda religião deve ser de algum modo intransigente. Para defender, porém, a sua natureza particular que a vê como o momento mais livre e responsável de encarar os problemas da vida e da morte". (p. 351).

"O sacrifício: alimentar deus, comer deus" trata da refeição sagrada - elemento presente em diversas religiões - e das diferentes tentativas de estudo de tal elemento por parte dos antropólogos. Devido a uma ligação muito estreita com o sacrifício, é um tema de difícil abordagem e interpretação. Todo o artigo apresenta uma revisão de trabalhos de antropólogos e historiadores da religião que trataram do assunto e demonstra a pouca unanimidade dessas interpretações. O texto apresenta um levantamento de problemas que um pesquisador deve aprofundar. O primeiro, talvez o mais significativo, considerado sob o aspecto ritualístico, é o de estabelecimento de uma linha divisória relação entre alimento e rito, que implicitamente diz respeito aos limites entre natureza e cultura. Em seguida, apresenta três aspectos da "alimentação sagrada": a oferenda (manter os deuses vivos), a comunhão com o deus e a refeição como identidade mística com o deus ("comer deus").

"A peregrinação como fenômeno religioso" e "Passar a porta (símbolo cultual e especial de mudança e de transformação na história comparada das religiões)" são dois textos cuja leitura é muito mais produtiva a partir de uma perspectiva poética do que antropológica, apesar dos esforços do autor em se basear na História Comparada das Religiões. Uma possível explicação para isso seria o fato de que, em ambos os ensaios, nos deparamos com imagens muito presentes no imaginário religioso e que possuem um apelo bastante grande.

O ensaio "A peregrinação como fenômeno religioso", o mais breve do volume, ao contrário de outros textos, parece que se concentra mais no âmbito da peregrinação dentro do Cristianismo, embora também apresente informações sobre outras religiões. Apesar de fazer referências a obras de outros estudiosos, parece que o autor se concentra muito mais em uma imagem de peregrino do que nesses estudos. As intuições de Terrin, de que a peregrinação é uma escolha existencial que implica uma condição "liminar e de que o peregrino é um "marginalizado social" ilustram muito bem o quanto o autor está pensando no universo de referência cristão. Para Terrin, a peregrinação implica uma dimensão mística, da falta de Deus e de sua busca, que, às vezes, é interpretada em sua dimensão subjetiva.

Em "Passar a porta", a constatação de como a dimensão religiosa fornece uma alternativa para trabalharmos com o medo merece uma discussão à parte. Segundo Terrin, a religião fornece também um repertório de imagens com as quais podemos organizar o pensamento e, desse modo, a organizar o mundo ao nosso redor. Aparentemente, percebemos um forte parentesco entre religião e arte. Cumpriria então identificar o grau desse parentesco e, em um segundo momento, tentar identificar as características próprias da experiência religiosa. O elemento de comparação é, nos parece, a maneira como essas duas dimensões da experiência humana elabora e se relaciona com as imagens.

O ensaio "O credo e o ato de fé nas religiões" demonstra uma evidente simplificação do autor ao abordar o fenômeno da manifestação da fé através do ato de fala nas diversas religiões. Primeiramente, Terrin não atenta para o fato de este ser um fenômeno característico das religiões monoteístas, com diferentes nuances entre si. Para o cristão, o credo é um tipo de "mini-catecismo da fé", definido e acatado pela autoridade da Igreja, ao passo em que, no Islamismo, a própria definição da religião (os 5 pontos característicos) se confunde com a confissão da fé. Ao tentar estabelecer as raízes da palavra "crer", Terrin parece cair na armadilha da etimologia fácil e enganosa ao afirmar que a raiz sânscrita que contém as letras H, R e D é a mesma que indica coração e também o verbo crer. Ora, o sânscrito é uma língua indo-européia, e como tal as vogais (embora apresentando diferentes graus [em sânscrito, gunas]) são um fator distintivo das raízes etimológicas, ao contrário das línguas semíticas, que geralmente costumam não escrever as consoantes. E a conclusão que o autor tira daí parece ser bem ao gosto do subjetivismo individualista contemporâneo que ele tanto condena em outros ensaios desse volume: "'crer' é um ato do coração, é uma expressão interior" (p. 395). Em seguida, na segunda seção do mesmo ensaio, ao apresentar uma "Breve análise lingüístico-fenomenológica" do "credo como profissão de fé", o autor considera a manifestação do "credo" como um "performativo explícito", baseado nas análises de Wittgenstein e Austin. Em seguida – seguindo o estilo utilizado em todo o volume - o autor mostra como esse mesmo ponto está presente em diferentes tradições religiosas. Ora, essa discussão é muito mais profunda e implica uma comparação muito maior do que a que é apresentada aqui. Em primeiro lugar, devemos considerar a importância da manifestação da "palavra" dentro de uma religião, o que não é feito em nenhum momento. Em segundo lugar, como foi mencionado acima, estabelecer uma comparação entre as religiões de origem semítica e outras tradições religiosas. Um exemplo de como essa discussão não é tão simples como parece, é, em primeiro lugar, verificar o papel que a palavra tem na tradição judaico-cristã. Segundo o Gênesis, Deus criou o mundo e todas as coisas através da palavra. O evangelho de São João inicia fazendo uma paráfrase desse mito e reafirmando a importância da palavra (do logos), que cria o mundo e "dá testemunho da luz". Os primeiros séculos do Cristianismo são um diálogo - às vezes harmonioso, às vezes conflituoso – com a Filosofia grega e a apropriação do conceito de logos (que também pode ser traduzido como palavra). Ora, em outro extremo encontramos, por exemplo, o Budismo Zen, que parece se empenhar em liberar o espírito do jugo da palavra, desenvolvendo um misticismo não-intelectual e não-discursivo. E dentro da história do Cristianismo, não devemos esquecer das diversas escolas de misticismo, que parecem desconfiar da eficácia da palavra como um meio fiel para relatar o arrebatamento místico, e outras tradições baseadas na oração, nas quais a palavra estabelece uma ponte entre o homem e Deus.

Fazendo um balanço geral do livro, percebemos que alguns ensaios têm o mérito de apresentar uma vasta revisão bibliográfica que demonstra como determinados temas foram tratados por importantes autores da Antropologia e do estudo da religião, geralmente apresentados em ordem cronológica. Porém, essas diferentes abordagens são, na maioria das vezes, apenas esboçadas sem uma aprofundada discussão teórica por parte do autor, que se limita, em muitos casos, à citação e a paráfrase. Outro mérito é uma preocupação didática de incluir muitos relatos e resumos que ilustrem o tema abordado (por exemplo, quando são relatados os diferentes ritos matrimoniais no Quênia, as manifestações do profetismo em diversas culturas e os hinos religiosos nas diversas religiões). Os temas de todos os ensaios são muito relevantes no momento atual. Na maioria deles, percebemos que o autor tem um ponto de partida muito instigante e interessante, embora o desenvolvimento dado peque por falta de análises mais críticas e, após a revisão bibliográfica e os exemplos, muitas das conclusões propostas parecem mais inserções desarticuladas do restante do texto. Por mais que tente assumir uma perspectiva científica e objetiva, exigida pela antropologia, em diversas passagens percebemos um grande comprometimento do autor com o Catolicismo, por exemplo, quando se refere às heresias como "forças desagregadoras da história ocidental" (p. 393), ou quando parece sugerir o Cristianismo como a única tradição que pode fornecer uma resposta adequada ao sofrimento do homem moderno: "[...] por que ainda estamos cercados de tanto sofrimento, de tanto mal físico e moral? A pergunta constitui escândalo para a Nova Era e para todos nós. Resta a cruz de Cristo como solução de um problema que nenhuma gnose parece ter condições de resolver" (p. 122). Muitas vezes, o autor lança mão da História Comparada das religiões, e percebemos que essa abordagem poderia ser mais aprofundada. O autor se limita a um tratamento superficial, baseado na maioria das vezes em manuais de história das religiões, sem uma discussão mais consistente em nível teológico. Na edição brasileira encontramos alguns problemas de tradução. Algumas expressões em italiano são mantidas no texto (ideal-tipi [p.234], facente capo [p. 330]) e alguns termos são mal traduzidos, como, por exemplo, na página 155, a passagem "tanto maior é o sofrimento que está atrás do ângulo", onde o equivalente mais apropriado em português para o italiano angolo seria esquina. As obras referidas no corpo do texto são mantidas com o título em italiano, mesmo aquelas que já possuem tradução em língua portuguesa.

Notas

[*] Doutorando em Ciências da Religião, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião PUC-SP.