O Movimento Hare Krishna no Brasil:
uma interpretação da cultura védica na sociedade ocidental

Silas Guerriero

A ISKCON chegou ao Brasil em 1974 e até hoje permanece como uma das mais sólida instituição religiosa de cunho orientalista não vinculada a grupos étnicos. Se nos primeiros momentos aparecia como possibilidade de uma vivência exótica de uma espiritualidade oriental, hoje compõe o cenário religioso brasileiro mais amplo disputando espaço com outras denominações. Esta transformação fez com que a ISKCON se adaptasse ao modo de ser ocidental e também contribuísse com seus traços culturais para a composição do quadro cultural religioso da sociedade brasileira.

O presente trabalho é uma tentativa de interpretação do Movimento Hare Krishna no Brasil. Certamente não há quem não tenha visto um grupo de devotos Hare Krishna cantando e dançando em algum lugar da cidade. Com suas roupas exóticas, alaranjadas e com as cabeças raspadas, eles inegavelmente chamam a nossa atenção. Quando começamos a ouvir suas pregações, o espanto aumenta ao vermos que dedicam toda a vida à adoração de um Deus em forma de menino, pastor de vacas e de cor azulada. Nossa primeira pergunta é, sem duvida, como é possível uma religião védica de cinco mil anos atrás, ser vivida aqui, no alvorecer do século vinte e um por pessoas que não têm nenhuma tradição oriental? Por que será que essas pessoas abandonam suas origens, largam valores, famílias, empregos, e vão dedicar-se a uma religião exótica e distante? Quais são os significados atribuídos pelos devotos dessa religião "estranha" na vivência de suas experiências cotidianas e no interior desse novo universo?

1. A ISKCON e o Hinduísmo

Antes de abordar especialmente o Movimento Hare Krishna no Brasil, convém localizar esta religião no seu país de origem, a Índia. A ISKCON, ou Internacional Society for Krishna Consciousness, denominação oficial do Movimento Hare Krishna, é uma dentre as inúmeras vertentes religiosas do hinduísmo.

O hinduísmo não pode ser considerado uma religião única, visto que apresenta peculiaridades conforme a localização e as pessoas que a praticam. O hinduísmo se confunde com o bramanismo, nome que advém de Brahman, manifestação impessoal do Ser Supremo, a essência do ideal e a alma do todo. Porém, Brahmam é inatingível para os indianos, que procuram adorar a personificação de suas ramificações. Dentro da tradição védica surgem uma infinidade de deuses e semi-deuses que são adorados por diferentes correntes. Todas elas conservam algumas características básicas do bramanismo, como por exemplo a questão da salvação. Cada entidade viva é um atman originário de Brahmam, que um dia, após atingida a perfeição, deve retornar e se fundir novamente a ele. O atman deve vencer a tentação da matéria. Para isso são necessários muitas vidas. É no transcurso de repetição nascimento-morte, denominado de samsara, que as pessoas procuram chegar à perfeição e salvação através do exercício de rígidas disciplinas espirituais. O objetivo maior é atingir moksa, a libertação do ciclo de nascimentos e mortes do mundo material. A partir dessa regra básica, os caminhos encontrados pelas diferentes correntes são vários.

O Movimento Hare Krishna se caracteriza por considerar Krishna como a suprema Personalidade de Deus. Krishna é o personagem que aparece na batalha de Kuruksetra, relatada no MahaBharata, grande poema épico que conta a história da Índia. É do MahaBharata (sexto canto) que sai o Bhagavad Gita, o livro sagrado do Movimento.

Os devotos do Movimento Hare Krishna crêem que todo conhecimento da ISKCON vem dos Vedas e é passado de mestre a discípulo, até hoje, através da sucessão discipular. Por acreditarem tanto na orientação do Guru, e não aceitarem o caminho individual, os seguidores de Krishna depositam todas as suas crenças na sucessão discipular. A verdade sendo uma só, deve vir de fontes autorizadas. Não é permitida nenhuma especulação a esse respeito.

A tradição hindu determina que cada Guru transmite os ensinamentos a seus discípulos. Quando o Guru falece são esses discípulos que se tornam os novos Gurus, seguindo cada qual um caminho. Essa é uma das causas de grande fragmentação religiosa no interior do hinduísmo.

2. Uma cultura oriental no Ocidente

A história da ISKCON nasce com um mestre hindu, Bhaktivedanta Swami Prabhupada, que, instruído por seu antigo mestre espiritual, deixa a Índia em 1965 e vai se fixar nos EUA. Encontra entre os jovens do movimento de contracultura o meio necessário para a propagação de suas idéias e a formação do Movimento Hare Krishna no Ocidente.

Prabhupada colocava como elemento primordial de sua pregação a publicação de livros. Autor de várias obras, tradutor e comentador dos grades livros védicos, Prahhupada é seguindo atentamente dentro do Movimento através de tudo aquilo que deixou por escrito. É considerado até hoje, mais de vinte anos após sua morte, como o grande mestre da ISKCON. Fica clara aqui a diferença na transmissão de conhecimento em relação à tradição védica. Não haveria, dadas as diferenças culturais, a possibilidade da permanência da antiga tradição oral da convivência mestre-discípulo. Devido principalmente ao não contato direto entre o mestre Praphupada e seus novos discípulos, somente através de livros é que esse conhecimento consegue penetrar e fazer efeito aos ocidentais. É evidente que o grande eixo da estrutura, não só intelectual mas também financeira da ISKCON se deve aos livros de Prabhupada. Além do mais, é ele quem dá a legitimação aos símbolos védicos aqui no Ocidente, foi ele quem traduziu, comentou e adaptou ao nosso modo de viver as grandes sabedorias védicas.

Não só a maneira pela qual é transmitido o conhecimento é diferente, mas toda a realidade vivenciada pelos devotos de Krishna aqui no Brasil não é a mesma da Índia Antiga, por mais que desejem e assim pensem seus agentes. É, sem dúvida, uma nova realidade que precisa ser conhecida e interpretada.

O surgimento do Movimento Hare Krishna no Brasil está relacionado a outros fenômenos urbanos do gênero de década de setenta e início dos anos oitenta. Trata-se de movimentos formados basicamente por jovens das camadas médias urbanas, na tentativa de buscar alternativas de vida.

A construção de comunidade ecológicas, principalmente rurais, e a busca espiritualista das mais diversas fazem parte dessas manifestações. Esse "reencantamento" representava uma tentativa de encontrar uma vida plenamente significativa, contrastando com o aparente mundo sem sentido da sociedade industrial. Ele se dá, basicamente, por vias não tradicionais de relação com o sagrado, em muitos casos através de religiões orientais.

Os movimentos alternativos e as correntes de cunho orientalista atingiram uma clientela não acostumada às religiões tradicionais. Essa clientela específica, à procura de novas maneiras de viver, foi, então, colocada diante de várias opções. Compõem esse universo todas as religiões orientais que surgiram após a década de sessenta; os grupos esotéricas; as práticas oraculares; os misticismos das mais variadas matrizes; o uso de drogas; as terapias de cura natural; a medicina alternativa; a macrobiótica; o vegetarianismo; a valorização da vida no campo; a "volta" à natureza etc. Apesar de muitos desses movimentos estarem afastados do mundo do sagrado, a maioria acabou por desenvolver laços religiosos e místicos muito fortes.

Percebemos que o grande maioria dos devotos, consumidores desse determinado tipo de bem religioso, é integrada por jovens que tiveram uma formação religiosa precária e praticamente nenhuma vivência. Eliade chama a atenção para o fato de que a nova explosão e interesse pelo ocultismo e pelas novas religiões se dá no interior das camadas urbanas e que "a maior parte dos membros dos novos cultos ignora quase completamente sua herança religiosa, mas sente-se insatisfeita com o que viu, ouviu ou leu sobre o cristianismo"[1]. Isso nos leva à indagação de quais são as características culturais dessa camada social que respondem pela busca de saídas religiosas não convencionais?

A tão anunciada "morte de Deus" na sociedade pragmática moderna não aconteceu. É justamente no interior das grandes cidades que surge um movimento de renovação religiosa. Para uma significativa camada da população e, no nosso caso, principalmente para aqueles que habitualmente não tinham contato com formas tradicionais do sagrado, Deus está sobejamente presente. Podemos pensar, então, em secularização não como morte de Deus, mas sim enquanto transfiguração da velha ordem. Cria-se uma situação de mercado em que os fiéis encontram sempre várias opções religiosas. Dentro desse leque de ofertas existe sempre a possibilidade de uma ruptura mais radical com a realidade vivida. A conversão a uma determinada seita exótica oriental representa, em termos do imaginário, uma ruptura com o real.

O fato de uma pessoa aderir a uma seita é explicado por Bourdieu pelo despertar que o seu capital religioso causa no indivíduo, sensibilizando-o[2].

Velhas utopias e religiões não fazem mais sentido para amplos setores, notadamente os jovens. Busca-se um "novo homem" numa projeção utópica de uma sociedade em que o sujeito seria o indivíduo plenamente realizado dentro de uma sociedade humanizada. Esta sociedade alternativa, de bases religiosas, permite que o indivíduo se realize na medida em que se integra à divindade, pois é "uma parte do todo, parte de um cosmos sagrado"[3].

Ao nosso ver, essa crise, que resulta numa crítica mais contundente da civilização ocidental e busca respostas orientais, toma forma mais claras no movimento de contestação político-cultural que ficou conhecido como Contracultura. Vários autores apontam as tendências orientalistas dos grupos formados no período da Contracultura[4]. O Oriente é o lugar do exótico, do misterioso, do totalmente diferente dos nosso padrões ocidentais. Se há necessidade de ruptura com o estilo de vida vigente, nada melhor do que buscar uma "outra" roupagem, com a aparência radicalmente diversa, travestindo essa vivência com novos símbolos. O Oriente atrai porque é aparentemente uma coisa "nova" para os ocidentais e antiga em termos de tradição e veracidade. Porém o "outro" oriental não é, evidentemente, a cultura "pura" e original hindu, já é uma adaptação ocidental feita sob medida aos anseios de seus consumidores, justificando suas maneiras particulares de existência.

A Contracultura acabou, ou foi, de certa maneira, absorvida pelo sistema. Mas o Movimento Hare Krishna não. Ao contrário, continua crescendo expandindo sua influência pelo mundo todo. Num primeiro momento é a contracultura que abre espaço para as religiões. Mas com o término desse movimento contestatório, outras razões sustentam a continuidade do Movimento Hare Krishna, assim como de outras manifestações alternativas, comunitárias e religiosas. Encontramos ainda hoje elementos que propiciam a mesma necessidade de ruptura existente antes. Eliade fala na busca de uma renovação que "implica numa iniciação e numa revelação de segredos veneráveis"[5]. O devoto sente-se eleito, escolhido no meio da multidão anônima e solitária.

É preciso compreender a opção por uma cultura védica, de milhares de anos, não como uma volta a um tempo mítico, perfeito e divino, nem tampouco uma projeção futura da plenitude prometida, alcançada aqui e agora. O Movimento Hare Krishna compete com outros grupos a preferência da clientela. E necessário estabelecer fronteiras entre elas. A utilização de vestimentas próprias, de marcas no corpo, de palavras em sânscrito, enfim, de traços culturais védicos dentro da sociedade brasileira, não representa uma simples opção pela cultura védica, mas muito mais um modo de afirmar uma maneira própria de existir em distinção aos demais grupos sociais.

Manuela Carneiro da Cunha, ao analisar a cultura residual, diz que em situações de conflito a cultura original de um grupo se torna cultura de contraste[6]. É evidente que não se trata aqui de um grupo étnico de hindus distantes de seu país de origem que procura se agarrar a esses traços como forma de não perder sua identidade. No nosso caso, encontramos um grupo de brasileiros que procuram ser mais hindus que os próprios hindus. Mas acreditamos que a lógica permanece a mesma apontada pela autora, ou seja, a necessidade de exacerbação em situação de contato com outros grupos. O discurso da ISKCON deve vir aos devotos com uma aura de autenticidade milenar, carregada com um profundo significado inerente a ele próprio. Seria como se esses símbolos védicos mantivessem os seus significados de origem não importando a ocasião e como são utilizados. Eles são "sempre" autênticos e verdadeiros.

Quando utilizam palavras em sânscrito, língua não utilizada na própria Índia há muito tempo, crêem serem fiéis às "origens divinas" da língua. Porém, o que não sabem, é que utilizam os elementos védicos submetidos às regras da cultura ocidental. O significado de um símbolo não é intrínseco mas depende do discurso em que se encontra inserido e da sua própria estrutura. Fora do contexto em que foram gerados, os significados dos símbolos védicos se alteram. A cultura não é algo que se pode transportar de um lugar para outro, mandar trazer do exterior, mas é algo constantemente reinventado, recomposto e investido de novos significados. É preciso perceber a dinâmica própria da cultura.

São trazidos para o Ocidente apenas aqueles elementos da cultura védica que possam servir de contraste e oposição aos demais grupos concorrentes. Esses elementos culturais ficam carregados de sentido, transbordando as significações anteriores. Adquirem uma conotação que não existia antes em seu lugar de origem. A cultura se enrijece, se petrifica através de alguns traços. Esses traços petrificados passam a não fazer mais parte daquela cultura de origem dinâmica, passível de transformações. São traços retirados de seu contexto, marcas feitas aqui com uma finalidade própria inerente ao universo vivido. Passam a ter outros significados.

3. Os momentos históricos da ISKCON no Brasil

A história do Movimento Hare Krishna no Brasil evidencia-se por três períodos distintos. O momento inicial, de 1974 a 1977, caracterizava-se pelas existência de grupos isolados que começaram a trazer dos Estados Unidos e da Europa os livros de Prabhupada. Em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, formaram-se pequenas comunidades. Não havia, ainda, templos com deidades instaladas. A presença desses grupos na sociedade mais ampla era muito tímida e, quando saiam para as ruas em pregações, não deixavam de causar espanto e certo distanciamento da sociedade mais ampla. Após 1977, já sob a autoridade de Hridayananda, um devoto norte-americano que ficou responsável pela região da Flórida e América do Sul, a ISKCON do Brasil experimentou um forte avanço. Vários templos surgiram nas capitais e em outras grandes cidades. Foi um período de institucionalização e crescimento. Através de um marketing agressivo, os devotos se fizeram aparecer nos meios de comunicação. As pessoas se mostravam abertas para ouvir o que diziam aqueles exóticos rapazes de cabeças raspadas que abordavam os transeuntes. A pregação calcava-se na venda dos livros de Prabhupada, publicados pela BBT[7] do Brasil. O crescimento editorial possibilitou uma forte arrecadação de recursos que financiou tanto a manutenção dos templos como a compra de uma fazenda no interior de São Paulo, construindo ali uma grande comunidade rural. Nesse período, os devotos e suas lideranças, tinham a expectativa de um crescimento quantitativo expressivo que pudesse causar uma mudança em toda a sociedade. Tratava-se de mostrar a todos uma saída para a vida vazia e sem sentido que as pessoas vivenciavam. Foi um momento de radicalização entre dois modos de vida: aqueles que atingiam a consciência de Krishna estariam salvos; os demais que não a aceitassem estariam condenados, ainda, a viverem repetidas encarnações nesse mundo material. O terceiro momento, é o da consolidação que acontece nos anos noventa. O movimento deixa de ser revolucionário e inovador, acomodando-se no interior de um campo mais amplo das demais denominações religiosas. Passa a ser mais uma religião dentre várias ofertas existentes na sociedade brasileira, assumindo as características próprias de uma igreja. É o período em que quatro gurus brasileiros já se encontram atuantes. As marcas pessoais desses mestres e também dos demais líderes locais se fazem prevalecer. O movimento deixa de crescer numericamente, havendo inclusive um pequeno decréscimo de devotos internos e de templos instituídos. Deixa de haver, também, a grande rotatividade existente anteriormente entre aqueles que entravam no movimento mas que não permaneciam por muito tempo.

O Brasil é um país de contrastes. Ao mesmo tempo em que apresenta áreas de riqueza que se comparam à situação social dos países mais ricos do planeta, apresenta índices de sub-desenvolvimento, miséria e exclusão social de um grande contingente populacional. O Movimento Hare Krishna sempre esteve voltado às camadas médias com razoável nível de escolaridade. Nunca houve uma atuação específica voltada à conquista e conversão dos mais pobres, salvo algumas práticas isoladas de distribuição de prashada[8]. O discurso exótico do hinduísmo não tem apelo a essas camadas, que não vêem a adesão aos símbolos orientais como uma opção de mudança. Sendo a camada mais abastada diminuta numericamente, a pregação do movimento se fez quase que exclusivamente sobre as classes médias. Não há diferenças significativas, neste aspecto, em relação aos países da Europa ou da América do Norte. Os jovens dessas classes médias não encontram hoje as mesmas necessidades de mudança que antes os acometiam. Existem outras opções de vivência da religiosidade, sem necessidade de fortes rupturas. Tal fato acarretou uma diminuição da atuação da ISKCON em termos institucionais, inclusive com fechamento de alguns templos e mudança na forma de pregação.

Na década de oitenta, a ISKCON chegou a ter no Brasil dezoito templos urbanos além da comunidade rural de Nova Gokula, totalizando oitocentos devotos que viviam de maneira monástica (Guerriero, 1989). Hoje esses números são significativamente menores. Há poucos templos e basicamente todos eles sofrem dificuldades econômicas para seu próprio sustento. O movimento no Rio de Janeiro, que já chegou a ter um grande templo, foi obrigado a devolver o imóvel por falta de condições de pagamento de aluguel. As deidades foram transportadas para uma pequena comunidade rural na região serrana, distante cerca de 100 Km. O interessante é perceber que o número total de devotos, incluídos aqueles que não moram nos templos, é maior nos dias atuais. Porém, não há mais rituais em que se reúnem todos. Calcula-se que em São Paulo e no Rio de Janeiro existam em cada uma dessas cidades por volta de mil devotos de Krishna. Cidades menores como Florianópolis nem possuem templos organizados, mas é freqüente reunir até setenta devotos em ocasiões especiais, todos moradores da cidade. Fora desses momentos esses devotos costumam reunir-se em pequenos grupos nas casas de amigos.

A comunidade rural de Nova Gokula é uma exceção nesse processo. Vencendo paulatinamente as dificuldades de carência de recursos financeiros, conseguiu manter um ritmo de crescimento constante e hoje é tida como um exemplo concreto de uma vivência védica no Ocidente. Aglutina não somente devotos de todo o Brasil, mas também de vários outros países da América Latina. Em Nova Gokula está localizado o maior templo do movimento no Brasil, numa rica construção em estilo indiano, que contou com a dedicação de vários devotos por muitos anos. Além do templo, há de se destacar a escola gurukula, que atende não só aos filhos de devotos da fazenda e dos demais templos brasileiros, como aos moradores carentes da região. Estes não dispõem de uma atuação mais efetiva por parte do Estado, sendo a gurukula a única possibilidade educacional num raio de vários quilômetros. A escola tem registro oficial e pode formar alunos até o ensino médio, pois além da perspectiva pedagógica védica, com os alunos vivendo numa espécie de ashram com os professores, fornece o currículo necessário para ter reconhecimento oficial de escola regular.

A comunidade conta, ainda, com local para os devotos celibatários, além de dezenas de casas onde moram as famílias que optaram por uma vida estável e investiram na construção de suas residências no interior da fazenda. A população de Nova Gokula atinge mais de duzentos habitantes, com um índice de rotatividade muito menor hoje que na década de oitenta.

Localizada aos pés da Serra da Mantiqueira numa bela área de mata nativa, Nova Gokula desenvolve uma luta por preservação ambiental, procurando conscientizar os demais moradores da importância da questão ecológica. São raros, porém, os outros momentos de integração e relacionamento da comunidade com a população circunvizinha. O engajamento ecológico tem sido, nos dias atuais, um dos expoentes da atuação da ISKCON na sociedade brasileira. Em vários momentos de lutas ambientais nas grandes cidades os devotos se fazem representar, dançando e cantando seus mantras com suas roupas alaranjadas e cabeças raspadas. A sociedade civil já conta com a atuação da ISKCON nestes eventos, e sua presença passa a ser um componente não contrastivo da paisagem.

A diminuição do número de templos e a difusão do número de devotos externos demonstram uma mudança profunda no perfil de atuação da ISKCON no Brasil. Até o final dos anos oitenta era valorizada e incentivada a conversão do devoto. Dentro dos moldes de uma seita o devoto se sentia obrigado a abandonar família, estudos, emprego, amigos e todas suas atividades anteriores, que passavam a ser vistas como maya[9]. A conversão se completava com uma nova vida monástica, novo nome e todos os rituais de iniciação. Atualmente existem programas de reunião de devotos externos, aqueles que se identificam com a ISKCON mas não abandonam suas famílias e atividades. Se antes estas pessoas eram discriminadas, hoje são até incentivadas a esse tipo de participação.

Há um fundo econômico nessa mudança. Devido à precariedade da estrutura econômica, é cada vez mais difícil a manutenção de templos com número grande de devotos. As fontes de renda para tal tornaram-se escassas nestes últimos anos. Nos primeiros momentos, os templos eram mantidos basicamente pela venda de livros e incensos, além de doações esporádicas realizada por devotos que se convertiam. Hoje a pregação nas ruas e conseqüente arrecadação monetária proveniente da venda de livros é cada vez mais difícil. O Movimento deixou de ser uma novidade e o grande público já não se interessa em comprar livros por mera curiosidade filosófica. O mercado editorial ficou restrito àqueles simpatizantes que já conhecem a teologia Hare Krishna e buscam um aprofundamento. A precariedade das instalações de moradia e, fundamentalmente, a desnecessária conversão total como forma de abandonar maya e atingir a consciência de Krishna, tem alterado profundamente a proporção entre devotos internos e externos.

Nunca houve no Brasil uma imigração significativas de indianos. Os poucos que vieram para cá o fizeram por questões profissionais. São executivos de empresas multinacionais ou mesmo professores universitários. Alguns desses indianos simpatizam-se com a ISKCON e freqüentam seus templos esporadicamente. Buscam um pouco da espiritualidade hindu bem como um contato com a culinária e demais elementos da cultura da Índia. O Brasil possui várias grandes religiões de cunho orientalista, mas todas elas, direta ou indiretamente, estão ligadas a grupos étnicos, principalmente japoneses e chineses. A ISKCON não possui esta vinculação com uma etnia. Entrou no país através de jovens ocidentais e através deles cresceu e se sedimentou. É hoje a mais sólida e estruturalmente organizada instituição religiosa oriental não vinculada a grupos étnicos no Brasil, sendo mais uma denominação a compor o quadro religioso desse final de século. Perdendo sua característica de seita e a necessidade de conversão, a ISKCON se tornou uma opção a mais para as escolhas religiosas individuais.

Apesar de muito antiga nos seus elementos mais tradicionais, oriundos do cristianismo, do espiritismo e das religiões afro-brasileiras, a base simbólica religiosa brasileira ganhou um incremento com a divulgação, através dos meios de comunicação ou mesmo das experiências pessoais, dos componentes das novas religiões orientais, entre elas a ISKCON. Longe de ser uma simples importação de traços culturais orientais, esse fenômeno significa um desenvolvimento cultural do próprio Ocidente, sedento por uma vivência espiritualista e mística distante do racionalismo da visão hebraica-cristã (Campbell, 1997).

A presença da ISKCON em nossa sociedade é quantitativamente desprezível, mas representa algo significativo não só pela manifestação de entusiasmo de seus adeptos, mas pela contribuição dada por elementos de sua teologia ao quadro cultural religioso mais amplo. Hoje ninguém se espanta ao ver um hare krishna na rua, mas fundamentalmente, suas concepções e visões de mundo deixaram de ser simplesmente exóticas e fazem parte do universo de crenças da população em geral. Os traços culturais do Oriente védico estão agora incorporados à sociedade brasileira.

Os devotos de Krishna formam uma micro sociedade consolidada. São vistos com respeito pelas outras religiões, pelos líderes políticos, pela imprensa e pela opinião pública. Conquistaram um espaço na nossa sociedade, não tão védico mas sem dúvida diferente e complexo.

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Notas

[1] M. ELIADE, Ocultismo, bruxaria e correntes culturais, p.68.

[2] P. BOURDIEU, P., A economia das trocas simbólicas, p.47

[3] idem, p.48.

[4] Cf. os trabalhos de R. Alves, P. Berger, M. Eliade, J. Judah e outros.

[5] M. ELIADE, Ocultismo, bruxaria e correntes culturais, p.69.

[6] M.C. CUNHA, "Etnicidade: Da Cultura Residual, Mas Irredutível", p.99.

[7] Editora criada pela ISKCON para publicação dos livros do Movimento.

[8] Prashada é o alimento oferecido a Krishna, que se espiritualiza podendo purificar as entidades vivas.

[9] Ilusão do mundo material, que deixa o indivíduo longe da devoção a Krishna.