O antropólogo Anthony Henman é um desses personagens liminares que nos fazem perguntar: “porque levo a vida que tenho?”. É daquelas pessoas híbridas, cuja identidade cultural é algo imprecisa, do tipo que já virou um pouco “nativo” (apesar de seus quase 1,90 m de altura e pele rosadinha). Mistura de brasileiro, inglês e argentino, divide seu tempo entre uma casa de campo no País de Gales e uma cobertura no charmoso bairro colonial de Barranco, em Lima. A casa peruana serve como base para suas viagens pelo interior do país em busca de espécies do cacto São Pedro ou wachuma (Echinopsis pachanoi) – um potente alucinógeno cujo princípio ativo é a mescalina (o mesmo presente no peiote, que ficou internacionalmente conhecido através da obra de Castañeda).
Com 54 anos, Anthony foi um dos pioneiros da discussão sociológica sobre drogas no Brasil. Ex-professor da Unicamp, organizou duas coletâneas e escreveu três livros. Sua obra mais conhecida é provavelmente Mama Coca, publicada em Londres com um pseudônimo, no final da década de 70. Trata-se de um dos primeiros escritos acadêmicos contemporâneos a abordar a questão dos usos indígenas da folha de coca (Erythroxylum coca) e a criticar os discursos autoritários e etnocidas contidos na agenda política da assim chamada “guerra contra as drogas”. Seu currículo inclui, também, pesquisas sobre o uso da diamba (Cannabis sativa) entre os índios Tenetehara do Maranhão, a religião ayahuasqueira União do Vegetal, o guaraná entre os Saterê-Maué, o consumo de heroína e cocaína na Europa e nos EUA, bem como a análise das políticas de “redução de danos” (estratégias públicas para diminuir os problemas causados pelo consumo de psicoativos ao invés de pretender sua completa proibição).
Do alto de seus cabelos brancos e desgrenhados, Anthony declara, sem cerimônia, que abandonou definitivamente a academia. Acima de tudo é um empirista ou, em outras palavras, um amante das plantas. Suas favoritas são a coca e o São Pedro, que cultiva carinhosamente em seu jardim mágico e que cozinha a partir de técnicas que inventou. Costuma consumir este último de forma solitária, ao lado das folhas de coca que masca diariamente (como é costume em algumas etnias indígenas). Seria difícil precisar seu vasto currículo de experimentações psicodélicas, que conta com uma quase overdose de heroína numa ocasião em que pesquisava junkies.
Pai de seis filhos, ex-marido de quatro mulheres (de várias nacionalidades), Anthony é um homem carismático, que soube trocar os pesados impostos e inverno europeus pelo calor das cholitas peruanas. Ele concedeu esta entrevista durante visita a São Paulo, no início de 2004.
- B: O que é o cacto São Pedro?
- A: O São Pedro compreende várias espécies de um gênero que antigamente era chamado Trichocereus e agora foi reunido dentro do gênero Echinopsis. São pelo menos 3 espécies principais: a E. pachanoi é originária do Equador e norte do Peru, estendendo-se até Huarás e Huánuco; a E. peruvianus começa no departamento de Lima e vai até Cuzco; a E. bridgesii ocorre ao redor do lago Titicaca e chega a La Paz. No sul da Bolívia e no norte da Argentina há mais umas duas ou três espécies, que não se conhece muito bem. São bastante diferentes entre si: enquanto umas medem de 5 a 6 metros, outras nunca passam de 1,5 m; algumas têm troncos de 30 cm de espessura e outras de apenas 7 cm; há espécies com 4, 5 ou até 12 segmentos ou divisões laterais. A quantidade de espinhos também varia muito. Mas todas as espécies contém o mesmo princípio ativo, a mescalina. Ela aparece sempre mais ou menos na mesma concentração, por volta de 1,2% do peso da planta verde. Uma dose ativa de mescalina é de cerca de 300 mg, então para se ter um bom efeito é necessário processar 250 g de planta em estado cru.
- B: Mas o termo “wachuma” também é utilizado para se referir à planta, não?
- A: Wachuma é o nome indígena antigo do São Pedro. A primeira descrição detalhada do seu uso é do padre Bernabé Cobo, um jesuíta que fez um trabalho sobre plantas, animais e minerais no século XVII. A mudança do nome para São Pedro tem a ver com a utilização mestiça desta planta, que se desenvolveu nos últimos 200, 300 anos.
- B: Quando a mescalina foi identificada no cacto São Pedro?
- A: Esta é uma questão interessante, porque a identificação da mescalina no São Pedro não foi imediata. A mescalina, em si, já tinha sido isolada na década de 1890, nos EUA, a partir do peiote (Lophophora williamsii). Nesta época, poetas e intelectuais experimentaram um efeito alucinógeno pela primeira vez na era moderna e industrial. Paralelamente, na década de 1930 a variedade E. pachanoi de São Pedro foi amplamente distribuída como uma curiosidade botânica e como base de enxerto para outras espécies de cactos, tornando-se presente em quase todos os viveiros de cactos do mundo. Mas isso ocorreu antes de as pessoas se darem conta de que a espécie continha mescalina. Embora houvesse usos tradicionais do São Pedro no Peru, os botânicos não se interessaram muito em pesquisá-los. Nos anos 40, alguns médicos em Lima sugeriram que poderia haver mescalina no São Pedro, mas não conseguiram fazer as análises necessárias. Foi só em 1960 que se deu essa identificação e a publicação do achado. Se pensarmos na descoberta dos cogumelos, da mescalina presente no peiote ou do LSD, ela se deu em data relativamente tardia.
- B: E qual é o status legal da mescalina?
- A: Ela está em todas as listas de substâncias proibidas e acho que isso, infelizmente, vai ser muito difícil de mudar. Ao mesmo tempo, as espécies vegetais que contém mescalina estão numa terra de ninguém, não são propriamente nem legais, nem ilegais. Nos países andinos não houve, ainda, um debate legal significativo em torno do estatuto do São Pedro. O peiote, ao contrário, gerou bastante polêmica, como resultado do seu consumo pela Native American Church (NAC) nos EUA e pelos Huicholes no México. Nos dois casos, o resultado da discussão legal foi o pior possível, pois firmou-se um apartheid étnico onde você só pode ser da NAC se tiver sangue indígena, e no México, só os Huicholes estão autorizados a coletar e consumir peiote – nem sendo indígena de outra etnia você tem este direito.
- B: Cientistas sociais insistem em que é necessário estudar o consumo das drogas a partir de um modelo que leve em conta o setting (contexto social) e o set (expectativa do indivíduo), opondo-se às leituras mais estritamente médicas e farmacológicas que geralmente são predominantes no debate público. Porque você tem criticado o modelo do set e setting?
- A: Norman Zinberg estabeleceu estes conceitos durante os anos 60. Suas pesquisas foram importantes porque demonstraram que as pessoas podiam ter uma relação não problemática com os opiáceos, na época considerados o "fim da picada", que levavam inevitavelmente ao vício etc. Mas, do ponto de vista teórico, a separação entre essas esferas veio dos comportamentalistas, uma escola de psicologia norte-americana cujas raízes, na década de 40 e 50, assumiam uma divisão pouco refletida entre "mente" e "corpo". Set e setting são, no fundo, uma reedição desse dualismo: as expectativas do sujeito (set) representam o aspecto mental, e o ambiente cultural (setting), o corpo. Quando esses conceitos são fetichizados, você acaba com um modelo um pouco mecânico – há uma substância x, que combinada com uma expectativa y e um ambiente z, vai produzir tal efeito. Mas, ao analisarmos a experiência de uma pessoa, vemos que a coisa é mais complicada. Há muitos feed back loops (“voltas de retroalimentação”): coisas que vêm da cabeça e vão para o corpo e vice-versa. É muito difícil dizer exatamente se uma sensação que está no corpo vem de uma euforia cerebral ou vice-versa. Preferiria um modelo onde se assume que o efeito de uma substância é de alguma maneira imprevisível. O homem nunca conseguirá domesticar totalmente a experiência. Essa magia é, do ponto de vista indígena sul-americano, o que se concebe como o “espírito da planta”. Esse espírito é autônomo, tem sua própria força. E isto está para além da divisão mente/corpo. Eu defendo o conceito da planta maestra (professora), a planta que ensina, que reduz essa prepotência humana de que tudo pode ser controlado por meio de disciplinas físicas e mentais.
- B: Quais são as diferentes técnicas de preparação do São Pedro?
- A: Começamos a entrar, aí, na questão da relação que o homem andino teve com o São Pedro desde as primeiras épocas pré-cerâmicas, entre 2 ou 3 mil anos A/C. Restos da planta seca foram encontrados em várias escavações no litoral peruano. Mas nesses locais a wachuma não cresce naturalmente, pois ela ocorre entre 2 ou 3 mil metros de altitude. Dadas as condições de transporte da época – e considerando que uma caminhada da serra até a praia seria de pelo menos 80 km – é muito pouco provável que se transportasse o cacto no seu estado verde. Provavelmente foi assim que surgiu a técnica de deixar o São Pedro secar ao sol. Independentemente do registro arqueológico, o que predomina atualmente no Peru é o cozimento da planta verde: você corta o cacto em fatias e cozinha por várias horas. Depois, coa e elimina as partes sólidas da planta, para tomar o líquido viscoso que sobra. Recentemente, algumas pessoas, eu inclusive, têm redescoberto a técnica original de secar a planta antes de cozinhá-la. Creio que, de alguma forma, isso afeta seu rendimento, fazendo com que alguns alcalóides precursores da mescalina se convertam em mescalina, potencializando o efeito total.
- B: Existem outras espécies botânicas que são adicionadas ao cozimento do São Pedro?
- A: Na tradição do norte do Peru os curandeiros usam plantas chamadas michas, que eles dizem aumentar o poder da bebida. Servem para “seguir o rastro” (“rastrear” em espanhol), quer dizer, seguir uma pista para o tratamento de doenças provocadas por causas mágicas. O uso dessas espécies favoreceria a interpretação das alucinações do curandeiro e do paciente. Mas várias dessas plantas não têm nenhum poder psicoativo, ou seja, têm apenas “eficácia simbólica”. Aquelas que possuem algum conteúdo farmacológico ativo são da família das Solanaceas, principalmente Brugmansias, que se concentram no noroeste amazônico e nas áreas adjacentes dos Andes. A Brugmansia candida é uma variedade com flor branca que a gente vê na Serra do Mar e na Mantiqueira; outra que se cultiva muito nos jardins da Amazônia é o Toé.
- B: Você é um colecionador de São Pedro. Qual é a sua experiência de cultivo?
- A: Ele gosta de um terreno bem drenado, com um pouco de areia e pedra. Em geral eu deixo o São Pedro uns seis meses sem água no início, para desenvolver bem a sua raiz. Uma vez que as raízes já estão presentes, a planta deve ter um regime parecido com o do cerrado no Brasil: chuvas razoáveis por uns seis meses do ano, e seis meses de seca completa. Quando cultivamos essas plantas na intimidade do nosso próprio jardim, elas acabam virando personagens. Todo dia, quando eu levanto, tenho um momento de concentração em frente a essas plantas, tenho uma relação com cada uma delas. Além disso, por questão de adubo, mas também por razões mágicas, jogo coisas vegetais ao redor do São Pedro, como pontinhas de cigarro, resto de chá, café, mate etc. Parece que ele gosta.
- B: Descreva um pouco mais o seu jardim...
- A: Em Lima tenho umas cem plantas em vasos de diferentes tamanhos. Algumas já estão com dois ou três metros e outras são mudas que acabo de colher e que estão em vasos pequenos, se desenvolvendo bem. Na Inglaterra, que possui um clima não muito favorável (úmido e frio), criei artificialmente um inverno seco andino. Entre outubro e março não dou água nenhuma e deixo as plantas dentro de casa, onde recebem calefação e sol. Durante o verão europeu, coloco-as para fora. Como chove bastante, acaba sendo parecido com o verão da serra do Peru. Mas, em Lima, o mesmo cacto cresce duas vezes mais.
- B: O que se sabe sobre a tradição nativa pré-colombiana de consumo do São Pedro?
- A: Há evidências arqueológicas de que o São Pedro era usado ritualmente no Horizonte de Chavín, uma das primeiras civilizações peruanas, por volta dos 800 a.C., especialmente no centro cerimonial de Chavín de Huántar. Nesse lugar há representações de sacerdotes com o cacto na mão, mas é difícil saber os detalhes do culto que lá se praticava. Provavelmente, incluía um momento de concentração num pátio externo à pirâmide e, depois, as pessoas passavam para dentro, onde havia uma série de pequenos corredores e quartinhos e um sistema muito complexo para deixar passar ar e água – o que produzia efeitos sonoros bem interessantes no interior da pirâmide. É possível visitar esses locais, eu já estive lá e posso dizer que é fascinante! Em seguida, os participantes eram conduzidos a um grande monólito de pedra que representava a sua maior divindade, um grande felino – mais que um simples jaguar – com atributos de cobra, pássaro e outros animais. O arqueólogo Richard Burger, da Universidade de Yale, afirma que o ritual incluía, também, a ingestão de uma outra substância. De acordo com o pesquisador – e concordo com a sua visão –, no momento de maior intensidade provavelmente eles cheiravam uma dose de paricá.
- B: O que é o paricá? Quais são as evidências de que ele era consumido junto ao São Pedro?
- A: O paricá é um pó preparado a partir das sementes da Anadenanthera peregrina, uma árvore muito comum na selva, que cresce dos Andes até São Paulo. Essa semente contém dimetiltriptamina, o mesmo princípio ativo da ayahuasca (Banisteriopsis caapi + Psychotria viridis). Quando você toma o São Pedro e adiciona o paricá, faz com o que a viagem, que até aí teria sido mescalínica – ou seja, sem grandes vôos visuais – provoque uma alteração pronunciada no campo visual. Esse efeito [do paricá] dura de meia a uma hora no máximo. Provavelmente nesse momento as pessoas eram colocadas diante da imagem felínica. Essa tese se apoia na existência, em Chavín, de uma série de cabeças incrustadas nas paredes da pirâmide, em vários estágios de transformação: desde um humano totalmente humano até um felino totalmente dragão. A metamorfose, como mostraram alguns pesquisadores, está claramente associada com o inchaço do nariz. Portanto, a minha interpretação é de que, ao adicionar o paricá – que é cheirado –, produzia-se uma transformação felínica, uma verdadeira “encarnação” do espírito tutelar do culto. Há também muitas evidências do uso conjunto das duas substâncias [São Pedro e paricá] em outras culturas que apareceram depois, no Horizonte Médio do Peru, entre os Mochica, os Nasca e os Wari.
- B: Mas o paricá e o São Pedro nem sempre são consumidos em conjunto...
- A: É verdade. As “tabletas” de paricá, espécie de bandejinhas para cheirar o pó, também foram amplamente distribuídas em épocas pré-hispânicas no sul andino, até o norte do Chile e o norte da Argentina. Aí não se sabe ao certo se as pessoas usavam o cacto também – é difícil precisar se as duas plantas sempre foram associadas ou se, em alguns casos, eram usadas separadamente. No caso amazônico, é claro que o paricá foi usado sem São Pedro, numa extensa área que incluía parte do Brasil. Mas as evidências de Chavín me estimularam a fazer experiências comigo mesmo e com pelo menos vinte pessoas sob minha orientação. Todos parecem concordar em que o efeito combinado de São Pedro e paricá é mais interessante, levando a espaços mais insólitos do que aqueles provocados por cada uma das substâncias separadamente.
- B: Existem evidências históricas de que os incas utilizavam a wachuma? Este tipo de idéia parece ser moeda corrente entre grupos esotéricos contemporâneos.
- A: Não há absolutamente nenhuma evidência histórica nesse sentido, assim como não há provas arqueológicas, nem etnográficas, de que os incas consumissem a ayahuasca. Há certeza, sim, de que usavam folhas de coca e que consumiam as sementes de paricá moídas, misturadas na chicha (bebida de milho fermentado).
- B: Como se caracteriza a tradição do consumo mestiço do São Pedro pelos maestros (curandeiros) do norte do Peru?
- A: O consumo do São Pedro foi marginalizado pelos missionários, sendo atribuído a ele uma carga pesada de bruxaria, de rito satânico. As novas práticas mestiças – que adotaram a terminologia "São Pedro" numa referência à simbologia cristã, e com o claro objetivo de legitimar o seu consumo – surgiram a partir de uma tradição que existia antes, de raízes indígenas, mas que foi fortemente afetada pela colonização espanhola. As práticas indígenas foram retrabalhadas a partir não só do cristianismo, mas de conceitos mágicos esotéricos do Mediterrâneo, os quais, por sua vez, incorporavam elementos árabes, clássicos, pagãos, cabalísticos, etc. Esse novo tipo de uso permaneceu sociologicamente invisível até a década de 1930, quando se naturalizou dentro das demais tradições medicinais folclóricas peruanas, chegando a ser, hoje, totalmente aceito como parte da “cultura popular”.
- B: Os curandeiros trabalham muito com a idéia de feitiçaria, à qual freqüentemente atribuem a responsabilidade por doenças e morte. Como você vê este sistema?
- A: Pode funcionar muito bem para certos tipos de estados psíquicos, depressões, etc. Tem a virtude de dar à pessoa a sensação de que está enfrentando algum mal, conseguindo extirpá-lo. O problema é que as coisas sempre se explicam dentro de um marco meio paranóico – tudo é resultado de influências más, negativas. O tema preponderante é o da inveja. Tantas vezes escutei: “Todo es envidia!” [“Tudo é inveja!”].
- B: Na tradição nortenha peruana tanto o paciente quanto o curandeiro tomam o São Pedro?
- A: Sim, mas a dose de São Pedro que os participantes tomam não é suficientemente forte para produzir efeitos marcantes. Os curandeiros conhecem o efeito real do São Pedro porque fazem as suas dietas, tomam maiores quantidades e em concentrações mais fortes. Mas a grande maioria dos seus pacientes toma a planta por razões quase simbólicas. Isso fica claro também em outro aspecto do ritual, que é a singada. É um preparo de aguardente com rapé de tabaco, São Pedro, água florida e outras águas perfumadas, aspirado pelo nariz por meio de uma concha. Tal mistura queima por dentro como pimenta, limpa a cabeça, mas não tem efeitos alucinógenos. A singada seria uma espécie de sobrevivência simbólica do que antigamente teria sido o uso do paricá associado à wachuma.
- B: Por que persistem hoje tradições indígenas de consumo de vários alucinógenos (como os "clássicos" ayahuasca, cogumelos e peiote) e, no caso do São Pedro, resta apenas a vertente mestiça?
- A: Não tenho propriamente uma explicação. O que se deu historicamente foi que o uso do São Pedro passou a ocorrer em uma área onde ainda predominavam populações indígenas em termos raciais, mas com culturas locais muito afetadas pela adoção de valores europeus. Comparado ao consumo da ayahuasca, do paricá, do peiote ou dos cogumelos, o número de pessoas que participam hoje dos rituais com o São Pedro é muito maior. O cacto é usado literalmente por dezenas de milhares, se não por centenas de milhares de pessoas, enquanto os demais cultos com plantas alucinógenas permaneceram ligados a contextos indígenas relativamente restritos em termos numéricos. Por isso, é curioso que a literatura sobre o uso do São Pedro seja tão limitada em comparação com a da ayahuasca.
- B: Chama também a atenção que o São Pedro tenha ganho menos destaque no ambiente artístico, político e cultural da contracultura ou da experimentação psiconáutica (??????) num cenário transnacional. Como você explica essa relativa invisibilidade da wachuma?
- A: Isso é meio relativo. Há grupos na Califórnia, no Texas, na Espanha e no sul da França, ou mesmo em Lima, usando o São Pedro de uma forma “não tradicional”. Mas eles não atingem tanta visibilidade por pelo menos duas razões. A primeira é que não existe uma tradição indígena “pura” do São Pedro que serviria como bandeira – como ocorre com os Huicholes e o peiote, os Mazatecas mexicanos e os cogumelos, ou os grupos indígenas da Amazônia ocidental e a ayahuasca. O modelo que existe, com seus ecos de magia medieval, casa mal com a percepção do pessoal alternativo interessado nestas coisas. Outra razão é que, dentro dessa tradição atual mestiça, como já disse antes, a planta é preparada de uma maneira muito fraca. Assim, algumas poucas pessoas que foram até o Peru têm voltado dizendo que a substância “não bate”. Seria interessante criar um novo ambiente ideológico para o San Pedrito – pessoalmente, estou trabalhando neste sentido. Ainda não surgiu uma nova religião ao redor do São Pedro e eu acho isto até positivo. Não gostaria de ver um tipo de Santo Daime [religião brasileira onde se consome a ayahuasca] de São Pedro...
- B: Por quê? Na sua opinião, qual é o contexto ideal para se consumir o São Pedro?
- A: Eu acho que a mescalina permite uma ritualização mais solta, não requer uma disciplina tão estrita como a ayahuasca. O seu efeito é mais sóbrio, menos assustador para a pessoa que toma pela primeira vez. Um tipo de ritual próprio para el San Pedro teria que levar em conta o fato que o efeito dura bastante e demora para subir – depois de duas horas você ainda não sente completamente; só “bate” mesmo a partir da terceira, quarta ou quinta hora. Aí vem um período relativamente comprido, de umas boas quatro horas, em que você está no "meião" da experiência. Depois, mais três ou quatro horas durante as quais o efeito vai diminuindo. Seria bom, então, organizar as atividades conforme esses três blocos. Nas primeiras horas, as pessoas sentem muitas vezes baixa de pressão, sono e frio. Elas têm que ser animadas – acho que um tipo de atividade ritual como música, dança etc. poderia ajudar a trazer a força da bebida. Já na fase principal, seria legal o silêncio, a possibilidade de cada um entrar nas suas coisas, mirações... na fase da descida, talvez fosse possível combinar o efeito do São Pedro com outras substâncias, como maconha, folha de coca, álcool, de forma a sair da experiência de forma ordenada... ajudar a "aterrissagem".
- B: Como você descreveria a “personalidade” do São Pedro? O que ele significa para você?
- A: Nos primeiros 25 anos, tomei-o de forma bem irregular, talvez uma vez a cada 5 ou 10 anos. Nessa época, às vezes batia bem forte e às vezes não. Comecei a tomar com mais seriedade a partir de 1996 e, de lá para cá, venho tomando em média uma vez por mês. O cacto cresce embaixo de raios implacáveis do sol. Ele tem uma energia muito solar, você sente aquela cor amarelo-laranja. Isto se traduz também no tipo de alterações visuais que o São Pedro produz, muitas das quais têm uma forma mandálica. Essas formas geralmente têm um centro, são equilibradas, estáveis – enquanto as triptaminas (cogumelos, ayahuasca, LSD) produzem alterações visuais com voltas, mais como serpentes, rabinhos que desaparecem, espirais que somem. É muito importante para mim tomar São Pedro. Primeiro, para manter uma certa saúde física. Eu sinto que cada sessão dá uma “regulada geral”, é como se os espinhos do cacto penetrassem em cada espacinho do meu corpo, ajustando-o e alinhando-o. Eu acredito que também limpa a cabeça. Consigo perceber melhor as minhas obsessões amorosas, profissionais etc. Ainda, certas portinhas no fundo da nossa mente se ligam umas às outras, estabelecendo conexões, evocando memórias e pensamentos que normalmente não aparecem.
- B: Você poderia fazer uma invocação típica do São Pedro, alguma oração, cantiga ou referência que associa a ele?
- A: Para mim, duas frases que vêm do contexto tradicional do norte do Peru encerram a sabedoria do São Pedro. Uma é: “Vamos levantando, vamos levantando!”. Aqui está presente a visão de que o São Pedro te põe de pé, te fortalece, te faz enfrentar as coisas. Tem muito a ver com a força que vem do cacto. A outra que sempre usam é: “Vamos florescer os caminhos!”. A idéia agora é de um florescimento das possibilidades – como desenvolver um trabalho, uma relação, como fazê-la florescer. A metáfora é boa – as plantas nascem para florescer e nós deveríamos agir da mesma maneira, levantando e florescendo.
[*] Doutoranda em Ciências Sociais pela Unicamp.