"No candomblé nada é de graça...": estudo preliminar sobre a ambigüidade nas trocas no contexto religioso do Candomblé[*]

José Renato de Carvalho Baptista[**] []

Resumo

Pretendo investigar as ambigüidades provocadas pelas condições em que se dão as relações de troca entre os adeptos do Candomblé, sobretudo quando essas trocas envolvem o uso de dinheiro. Minha expectativa é perceber o sentido que os informantes atribuem a tais relações de troca, como as mesmas estão submetidas a constrangimentos ou tensões, todas elas construídas desde a frase proferida por um "pai de santo" que dizia: "No Candomblé nada é de graça...". Pretendo observar e descrever situações em que o uso do dinheiro ou o comércio de bens, religiosos ou não, colocam os agentes diante de situações ambíguas.

Palavras-chave: Candomblé, Dinheiro, Mercado, Troca

Abstract

This paper investigates the ambiguities provoked by constraints on exchange relations-primarily monetary-among adepts of Candomblé. It focuses on the meanings that informants attribute to these exchange relations in the light of constraints and tensions. The centrality of exchange is indicated by the statement of a "pai de santo": "In Candomblé nothing is for free". The paper observes and describes situations where the exchange of money or goods, religious and non-religious, confronts agents with ambiguous situations.

Keywords: Candomblé, Money, Market, Exchange

Introdução

Nas páginas que seguem pretendo investigar as ambigüidades provocadas pelas condições em que se dão as relações de troca entre os adeptos do Candomblé, sobretudo quando estas trocas envolvem o uso de dinheiro. Minha expectativa é perceber o sentido que os informantes atribuem a essas relações de troca, como as mesmas estão submetidas a constrangimentos ou tensões, todas elas construídas desde a frase proferida por um "pai de santo"[1] que dizia: "No candomblé nada é de graça...". Pretendo observar e descrever situações onde o uso do dinheiro ou o comércio de bens, religiosos ou não, colocam os agentes diante de situações ambíguas.

O contexto religioso que escolhi para retirar os exemplos etnográficos é o das religiões afro-brasileiras, mais especificamente dos Candomblés Jeje-Nagô. A delimitação do grupo religioso sobre o qual incide nossa pesquisa obedece às proposições de Lima (2003), Dos Santos (1976) e Pessoa de Barros (1993), de que esses grupos representam um tronco específico da religiosidade afro-brasileira, tal como sugere Lima "o termo candomblé, abonado pelos modernos dicionários da língua e na vasta literatura etnográfica, é de uso corrente na área lingüística da Bahia para designar os grupos religiosos caracterizados por um sistema de crenças em divindades chamadas santos ou orixás e associados ao fenômeno da possessão ou do transe místico [...]. O significado do termo, entretanto, deixando à parte sua discutida etimologia, estende-se ao corpus ideológico do grupo, seus mitos, rituais e ética, ao próprio local onde as cerimônias religiosas destes grupos são praticadas, quando então, candomblé é sinônimo de terreiro, casa de santo, de roça." (p. 17)

Um dos pressupostos sob o qual se sustentam as proposições que serão desenvolvidas neste trabalho é o de que a oferta de serviços religiosos, pelo menos no caso dos grupos que abordamos, se apóia num padrão ético distinto dos das práticas adotadas dentro de outras tradições religiosas, sobretudo dentro do próprio campo das religiões afro-brasileiras, em especial a Umbanda, onde o princípio da piedade cristã é o fator de mobilização da relação entre oferta e demanda de serviços religiosos.

Entendo como "princípio da piedade cristã" uma ótica que opera com a oferta gratuita destes serviços, baseada numa concepção de "missão" ou "vocação" divinas, onde a prática religiosa é vista como um "dom" divino, "recebido gratuitamente de Deus" e que, portanto, deve ser distribuído de forma gratuita. Ainda que haja uma cobrança implícita ou planos de carreira e de remuneração para sacerdotes, a cobrança por esse serviço é vista muitas vezes como motivo de descrédito da prática religiosa.

A hipótese central é de que, em oposição à tradição cristã de caridade, há, nas religiões afro-brasileiras - de uma maneira mais generalizada por um lado, e de modo muito específico no Candomblé -, uma relação de clientela religiosa (Fry, 1982; Prandi, 1991 e Birman, 1985), o que não deixa de gerar ambigüidades nas relações de troca entre os seus adeptos, sobretudo em circunstâncias em que vemos envolvido o uso de dinheiro.[2]

No Candomblé essa relação de "clientela" surge como uma forma de participação na comunidade religiosa sem o estabelecimento de um vínculo iniciático, na medida em que há uma relação entre oferta e demanda por serviços desta ordem: consultas oraculares, ebós[3], despachos[4] e oferendas[5]. Como propõe Birman (1996) "a entrada para um culto de possessão, como bem sabemos, se inicia pela comunicação pronunciada pelos orixás, através dos meios divinatórios como o jogo de búzios ou pela revelação mediúnica, ambos conduzidos pelos responsáveis pelas casas de culto. Essa entrada não se efetiva sem dificuldades. Os futuros adeptos sabem o quanto a passagem da condição de cliente para médium ou filho de santo impõe em termos de restrições na vida pessoal e em termos de obrigações a cumprir. (p. 95)

O essencial é que podemos perceber, a partir da máxima colhida através de comunicação pessoal de um pai de santo - ao afirmar que "no Candomblé nada é de graça" -, que a relação de cobrança pelos serviços religiosos parece algo estabelecido e reconhecido com alguma naturalidade pelos adeptos dessa religião. Tal fato, entretanto, não deixa de gerar constrangimentos, que serão os aspectos explorados ao longo deste trabalho.

Cabe destacar que as relações entre pai de santo e adepto se baseiam em laços de confiança mútua, e o vínculo iniciático estabelece uma relação de natureza familiar. O próprio título de "pai ou mãe de santo", forma em português dos termos da língua iorubá babalorixá ou ialorixá ("pai" ou "mãe" do orixá), pressupõe um alto nível de aproximação e intimidade entre o adepto e seu sacerdote. Lima (op. cit.) afirma "já aludi, em algumas instâncias, às formas de relacionamento entre os pais no candomblé e seus filhos, marcadas pela mesma tradição de expectativas e deveres que se verificam nos sistemas familiares. No caso da família de santo os padrões são muito semelhantes, senão idênticos, aos observados na "família patriarcal extensa" brasileira. [...]. Os laços familiares criados no candomblé através da iniciação no santo não são apenas uma série de compromissos aceitos dentro de uma regra mais ou menos estrita, como nas ordens monásticas e fraternidades laicas, iniciáticas ou não; são laços muito amplos no plano das obrigações recíprocas e muito mais densos no âmbito das emoções e do sentimento. São laços efetivamente familiares: de obediência e disciplina; de proteção e assistência; de gratidão e sanções; de tensões e atritos - tudo isto existe numa família, tudo isto existe no candomblé." (pp. 160 - 161)

Portanto, os laços de confiança e de intimidade são essenciais para a compreensão dos aspectos ambíguos das relações que investigaremos nesse trabalho. Ao mesmo tempo em que essas relações envolvem questões íntimas, temos sua mediação por trocas que envolvem dinheiro ou favores pessoais das mais diversas ordens. O que tento demonstrar é que há dois tipos de ordem que convivem juntas, uma baseada em aspectos morais e desinteressada, e a outra mediada por relações monetárias e de interesse entre os membros envolvidos na relação.

O escopo teórico através do qual pretendo explorar tais questões apóia-se nas noções desenvolvidas por Viviana Zelizer (2002) sobre "circuitos de comércio", uma noção baseada no significado mais tradicional do termo comércio, onde as trocas envolvem não apenas o intercâmbio entre mercadorias, mas um sentido mais amplo das trocas em que estão envolvidos aspectos interpessoais, a circulação de idéias e conversas. Conforme sugere a autora "Each distinctive social circuit incorporates somewhat different understandings, practices, information, obligations, rights, symbols, and media of exchange. I call these circuits of commerce in an old sense of the word, where commerce meant conversation, interchange, intercourse, and mutual shaping. They range from the most intimate to quite impersonal social transactions." (pp. 4-5)

Os circuitos comerciais se caracterizam por possuir limites bem precisos e algum controle sobre as transações que atravessam essas fronteiras, além de um conjunto distintivo de transferência de bens, serviços ou reivindicações sustentadas sobre laços interpessoais. Tais transferências podem empregar meios de troca particulares, internos ao circuito, em virtude dos significados mutuamente partilhados pelos seus integrantes.

A autora ainda ressalta que tais características implicam a presença de uma estrutura institucional, sobre a qual são reforçados o crédito, a confiança e a reciprocidade no interior do perímetro de um circuito, que também orienta a exclusão ou desequilíbrio entre os participantes e aqueles que se encontram fora do circuito.

É interessante perceber, sobretudo, que nesses circuitos de comércio aparecem fenômenos discrepantes, como sugere a própria autora, em que vemos combinados aspectos que superam certas dicotomias que economistas e sociólogos procuram explorar, tais como divisões entre racionalidade e afetividade, solidariedade e interesse, cálculo e desprendimento, que produzem quadros ou "cenas" marcadas por situações ambíguas, que oferecem bons casos para a investigação antropológica.

Tendo em vista que o objeto deste trabalho se volta à discussão de relações que ocorrem num âmbito em que intimidade e confiança são fatores essenciais à constituição dos laços que unem pai de santo e adepto, como já expus, formando um tipo de relação que se reveste de um caráter familiar, as críticas de Viviana Zelizer sobre o conteúdo das análises de economistas e sociólogos tendem a se dividir entre posições marcadas por cenários onde o envolvimento de dinheiro em relações íntimas se caracterizam por um desencantamento destas, criando "mundos hostis", ora por reducionismos das mesmas, ou ainda por ambas as posições combinadas, todas elas sustentadas em dicotomias limitadoras, incapazes de dar conta das sutilezas presentes nestes quadros. Conforme podemos ver em Zelizer (2001) "The surprising thing about such debates is their usual failure to recognize how regularly intimate social transactions coexist with monetary transactions: parents pay nannies or child care workers to attend to their children; adoptive parents pay money to obtain babies, divorced spouses pay or receive alimony and child support payments, parents give their children allowances, subsidize their college educations, help them with their first mortgage, and offer them substantial bequests in their wills. Friends and relatives send gifts of money as wedding presents, and friends loan each other money." (p.5)

Logo, compreendemos que a autora propõe uma saída mais ousada, que pretende combinar aspectos que superem possíveis divisões entre razão e afetividade, cálculo e desprendimento, interesse e solidariedade. Percebemos então que o âmbito em que ocorrem essas relações pode admitir, tanto em um plano mais genérico como no caso específico do Candomblé, a presença do dinheiro como um elemento propriamente constitutivo da relação. Nesse sentido, sugere a autora (Zelizer, op. cit.) "all these payments and more, commonly occur in the company of intimate transactions, take their meanings from the longer-term social ties within which those transactions occur, and vary in consequences as a function of those longer-term ties -- the limiting and exceptional case being the tie defined as no more than momentary." (p.5)

O que devemos reter de fundamental nas proposições da autora é o fato de que essas relações estão baseadas justamente em laços profundos de intimidade entre os participantes, laços que, no entanto, não excluem a presença de transações envolvendo o uso do dinheiro. A presença do dinheiro nesses contextos não ocorre de maneira sempre tranqüila, e o que pretendemos explorar é justamente os momentos onde tal presença se reveste de tensões implícitas ou explícitas.

Aliás, será sobre a presença do dinheiro na cobrança de rituais por parte dos pais de santo que repousa um dos temas sobre o qual faremos alguns dos debates deste trabalho. A preocupação, nesse caso, será discutir as ambigüidades próprias dessa cobrança, visto que há um conjunto de prescrições que podem influenciar no preço dos serviços, algumas de ordem ritual, outras de natureza particular das relações que se estabelecem entre iniciador e candidatos à iniciação.

Florence Weber, Coquery e Menant sugerem uma similitude entre as noções de "cenas sociais", por elas propostas, e de "circuito", de Zelizer, em que os participantes de uma relação de troca partilham a idéia de estar em um jogo comum, onde ambos conhecem e compreendem as suas regras, reconhecendo suas possíveis as ambigüidades. Afirmam também as autoras que há, de ambas as partes envolvidas, um reconhecimento dos "marcadores rituais" das trocas verbais ou materiais.

Dos circuitos de trocas envolvendo as consultas oraculares, o "Jogo de Búzios"

As idéias de resposta às "aflições do espírito", desenvolvidas por Fry e Howe (1975), ou de "marcas do Orixá", sugerida por Barros e Teixeira (1989), que se manifestam através da possessão ou do infortúnio, ocupam um papel central na cosmologia das religiões afro-brasileiras. Goldman (1983) também sugere que esses momentos de crise pessoal atuariam como uma espécie de "chamado" das divindades. Boa parte das narrativas relacionadas à adesão às religiões afro-brasileiras se sustenta sobre tais idéias. A busca pela consulta ao jogo de búzios visa atender esses problemas, que são interpretados pelos pais de santo como sinais dos orixás ou entidades que estão requerendo aos seus protegidos algum tipo de atenção especial.

Por outro lado, aquele que busca uma consulta através de qualquer tipo de oráculo pretende, com isso, estabelecer algum tipo de cálculo em relação ao seu futuro. Busca compreender, através da consulta, o seu estado presente, o infortúnio, a doença ou a falta de amor, de modo a fazer projeções sobre o futuro.

O jogo de búzios é o sistema divinatório adotado pelo Candomblé cujas origens se encontram no sacerdócio dos babalawos,[6] que cultuam a entidade responsável pela adivinhação, Orumilá (Ifá). Segundo Verger (1981), sistema do jogo de búzios se baseia numa combinação de dezesseis odus, os signos de Ifá, e estão relacionados aos destinos humanos. Esses dezesseis odus são recombinados entre si, formando um sistema de 256 possibilidades.[7]

Esse sacerdócio, exclusivamente masculino na África, era dissociado do culto dos orixás, e acabou sendo incorporado no Brasil aos terreiros, admitindo o uso do oráculo por parte das mulheres, sobretudo porque o culto a Orumilá se perdeu no Brasil, sendo o jogo de búzios relacionado ao orixá Exu.[8] Na África, o jogo é feito com um colar de dezesseis sementes de oleácea (Schrebera arborea) ou com sementes de uma noz específica, além das conchas (cauris). Nos candomblés faz-se o uso exclusivo dos cauris, genericamente denominados como búzios.

A atribuição do uso do oráculo dos búzios é transmitida através da iniciação, com o cumprimento de um período de sete anos de iniciado, quando são renovados através de uma "Obrigação"[9] os votos estabelecidos com o rito iniciático. Esse formato do culto estabelece um padrão de linhagem segmentar na medida em que, ao atingir a senioridade (após a Obrigação de Sete Anos), alguns membros do grupo adquirem o direto de se estabelecer como líderes de uma nova comunidade religiosa. Nem todo iniciado recebe esta atribuição; entretanto, todos aqueles que a recebem têm o direito de utilizar o jogo de búzios em consultas.

O início da carreira de pai de santo, antes que ele se estabeleça em um terreiro próprio, é marcado pela oferta de serviços autônomos através de consultas, ebós e despachos, formando uma clientela da qual sairão os seus futuros filhos de santo. A qualidade dos serviços de adivinho é essencial nesse período inicial da carreira, pois ela estabelece a reputação do novo pai de santo.

As proposições de Viviana Zelizer, como podemos perceber, podem se aplicar aos contextos referentes às consultas oraculares, pois ainda que estas não sejam marcadas por relações de longa data, elas pressupõem um grau de exposição da intimidade ou de grande confiança entre o "consulente" e "adivinho". O pai de santo, quando investido da condição de consultor do oráculo, é, de certo modo, instado a penetrar na intimidade da vida do consulente, estabelecendo um vínculo intenso, ainda que momentâneo.

A ética que preside as relações entre consulente e adivinho é bastante semelhante à que opera nas relações entre médico e paciente, psicanalista e analisado. Por dever de ofício, o pai de santo está obrigado a manter segredo dos temas abordados em uma consulta. O prestígio de um pai de santo muitas vezes advém de sua capacidade de, através do oráculo, revelar fatos que pertencem à intimidade do consulente, sem que este faça qualquer menção ao seu passado ou à sua condição presente.

Essa compreensão dos elementos que formam o quadro de uma cena permite aos agentes uma margem de negociação dentro do terreno onde ocorrem tais ambigüidades. Muitas vezes esse caráter ambíguo das trocas pode se apresentar como um elemento constitutivo, próprio da relação. Logo, quando se coloca diante de uma consulta oracular, o consulente sabe que há um nível de risco de exposição de sua intimidade; ao mesmo tempo, o adivinho coloca em jogo o seu prestígio pessoal.

Um outro fator constituinte dessa relação consulente x adivinho é o fato de que tais consultas pressupõem sempre algum tipo de remuneração, que independe dos resultados da consulta. Ainda que o cliente, ao final do serviço, esteja insatisfeito com o seus resultados, ele deve desembolsar uma quantia para remunerar o adivinho.

Há sempre, nessa relação, um conjunto de demandas específicas do cliente, que pode muitas vezes se opor aos interesses do adivinho, sobretudo porque a relação de clientela é, de certa forma, um canal significativo através do qual o pai de santo arregimenta os seus filhos. Logo, muitas vezes os clientes buscam conforto para suas questões materiais e afetivas e, como costumam informar os pais de santo, "o orixá tem outras razões ou vontades".[10]

Uma outra questão essencial que caracteriza o jogo de búzios é o fato de que ele quase nunca é realizado de forma gratuita pelo pai de santo. A relação de clientela é quase que determinante nestas consultas. Mesmo os membros de uma comunidade religiosa, os filhos de santo, são instados a participar de alguma forma no abastecimento ou no apoio às atividades rituais da casa. Embora não ocorra uma cobrança explícita dessas consultas, ela se traduz em listas de mantimentos para as festividades ou no rateio de compras para a alimentação diária da comunidade religiosa.

É comum que um filho de santo que esteja atravessando dificuldades financeiras conte com a ajuda da comunidade nos mais variados aspectos de sua vida particular e mesmo quando de se trata de garantir sua iniciação ou os rituais de obrigação. Essa situação estabelece um tipo de dívida não contabilizada, mas que obriga o iniciado a se disponibilizar, a estar presente na casa de santo em todas as ocasiões em que se faça necessário o uso de sua força de trabalho. Essa pode ser uma das formas através das quais um filho de santo pode receber gratuitamente uma consulta. A própria iniciação estabelece uma relação de obrigação do iniciado para com a comunidade na prestação de serviços junto às atividades rituais, sobretudo porque essas atividades constituem-se numa parte do aprendizado iniciático.

O preço de um jogo de búzios normalmente é fixo, determinado com antecedência pelo pai de santo. A duração da consulta é indeterminada e o consulente pode se dirigir ao adivinho fazendo-lhe perguntas. É comum, ao fim de uma consulta, o adivinho se dirigir ao consulente perguntando-lhe se este deseja saber algo mais, sendo esse o momento em que se encerra a consulta.

Há informações variadas sobre o processo de formação do preço de uma consulta. É certo, porém, que cada pai de santo tem autonomia para determinar o valor de seu serviço, e esse preço pode variar muito em função da reputação do adivinho. Normalmente, aqueles que estão ainda se estabelecendo no mercado tendem a cobrar valores não muito altos, algo que pode variar entre R$ 15,00 e R$ 30,00. É comum, também, eles evitarem cobrar mais caro que seus iniciadores; com o avanço na carreira, porém, a tendência é de que seus preços se equiparem ou superem. Analisemos os quadro que se seguem:

CENA 1: O caso de Elza, que recebeu há pouco mais de três anos o Decá[11], símbolo da investidura no cargo de mãe de santo, ilustra bastante bem essa questão. Elza ainda não teve condições de se estabelecer em um terreiro próprio. Dona, junto com o marido, de uma loja de artigos religiosos no bairro do Cachambi (Rio de Janeiro), oferece consultas nos fundos de seu estabelecimento. Iniciou esse trabalho quando o seu próprio pai de santo, Carlos, ofereceu-se para dar consultas na loja, tendo em vista que seu terreiro ficava em uma área afastada da cidade. Com o passar do tempo, Elza adquiriu confiança e passou a oferecer consultas nos dias em que Carlos não atendia. No entanto, cobrava um valor abaixo do cobrado por Carlos, atraindo rapidamente uma clientela maior. Atualmente atende sozinha em sua loja, cobrando ainda um preço considerado baixo, no que é criticada pelo marido, pois este crê que o "preço baixo depõe contra a qualidade do serviço oferecido".

Podemos notar que Carlos não exerceu uma influência direta sobre o preço cobrado por Elza; no entanto, para evitar algum tipo de constrangimento (e talvez por respeito à hierarquia iniciática), enquanto este trabalhou em sua loja, Elza procurava cobrar um preço inferior ao dele. Ao superar numericamente a clientela do seu iniciador, surgiu novo constrangimento: o seu prestígio crescia, enquanto a clientela do outro diminuía.[12]

CENA 2: O caso de Rui e Helena é bastante ilustrativo no sentido de analisar as questões relativas à credibilidade e o conflito entre os interesses do consulente e do adivinho. Os dois personagens, amigos de longa data, foram iniciados em uma casa de Candomblé que passa por problemas decorrentes da entrada de novas pessoas no grupo. Além disso, ambos consideram a atitude de alguns membros da hierarquia do terreiro - que, em virtude de problemas de saúde do pai de santo passaram a assumir certa posturas de controle na estrutura do grupo - como "desmandos".

Tendo em vista tais problemas, procuraram um jovem pai de santo para uma consulta aos búzios, em busca de uma avaliação sobre o quadro atual do terreiro do qual fazem parte. Foram procurar Edson[13] com demandas específicas, na expectativa de compreender o quadro de crise que sua casa atravessa. O jogo transcorria normalmente enquanto Edson, diante de um "cliente especializado", buscava demonstrar sua capacidade divinatória, na expectativa de impressionar os clientes.

Após acertar seus prognósticos, com riqueza de detalhes, sobre o quadro que se apresentava no terreiro ao qual seus consulentes pertenciam, Edson tenta convencê-los de que a melhor saída é deixar o terreiro do qual fazem parte e se oferece para ajudá-los. Rui ouve com atenção as prescrições. Helena, uma iniciada mais velha e experiente que Rui, não deixa de disfarçar sua desconfiança.

Percebendo isso, Edson volta-se para ela, que até então ficara em segundo plano na consulta, e tenta exibir conhecimento ritual, falando de ebós e oferendas necessárias para ambos, ressaltando que sua casa é "de tradição no jêje", ao falar de sua genealogia. Como o artifício não parece funcionar, tenta "descobrir", através do jogo, o orixá de Helena, só vindo acertar na terceira tentativa. O jogo é encerrado com uma previsão bombástica de Edson sobre a casa de Helena e Rui, "de que em vinte e sete dias ocorreriam grandes mudanças".

Na hora de pagar a consulta uma cena inusitada. Edson pede que Rui coloque o dinheiro sobre o jogo. O preço é R$ 40,00 - como Rui tinha apenas uma nota de R$ 50,00, Edson teria que dar o troco. Sem tocar na nota colocada sobre o jogo, Edson abre uma pequena gaveta da mesa onde realiza suas consultas e retira uma nota de R$ 10,00, que entrega como troco nas mãos de Rui. Já na rua, Rui pergunta a Helena[14]:

Nas cenas retratadas percebemos aspectos que ensejam algumas discussões bastante interessantes, sobretudo no que tange às tensões que relações de troca relacionadas com o uso do oráculo dos búzios podem ensejar, e como essas tensões atuam sobre os membros participantes de um mesmo circuito de trocas.

Analisando as cenas etnográficas...

CENA 1: No primeiro quadro, vemos Elza se estabelecer no mercado de oferta de serviços religiosos sob os auspícios de seu iniciador, Carlos. Carlos é seu passaporte para a legitimidade e o reconhecimento de sua competência ritual, feito em cerimônia pública com a entrega do Decá. Carlos também a incentiva a criar, em sua loja de produtos ligados à religião, um espaço para o atendimento. Ele não faz a proposta por desprendimento. Há um interesse claro em jogo: ele necessita de um local menos distante que sua "roça" para poder atender seus clientes e, também, para aumentar sua clientela.

Elza, por sua vez, sabe que Carlos tem esses interesses, porém, por outro lado, sua presença na loja, principalmente auxiliando Carlos nos seus atendimentos, serve para ampliar seus conhecimentos e adquirir confiança para atuar sozinha. A própria natureza do vínculo entre Carlos (pai de santo iniciador) e Elza (mãe/filha de santo iniciada) pressupõe a possibilidade de que esta ganhe autonomia para atuar em espaço próprio.

Essa relação entre iniciador e iniciado reforça o caráter segmentar da família de santo, visto que dessas rupturas surgem novas linhagens em solução de continuidade com o tronco originário, mas que funcionam como unidades autônomas. Para que Elza assuma o lugar de liderança, é preciso que Carlos saia de cena! Carlos já tem seu terreiro estabelecido, Elza começa a se colocar no mercado visando obter os recursos para a formação de seu terreiro.

O grand finale desse enredo se dá na forma tensa, porém amigável, e Carlos se afasta para ceder espaço a Elza. A redução de sua clientela e o aumento dos clientes de Elza foi determinante; seria, porém, menos tenso se não houvesse a intervenção de um aspecto sobrenatural no caso: a pomba-gira de Elza "assumiu a responsabilidade" pela redução da clientela de Carlos, fato que ambos reconhecem com naturalidade, porém marcado por uma "troca de farpas" entre eles.[15]

Outros aspectos ainda podem ser discutidos a respeito do preço das consultas. Elza inicia seus trabalhos cobrando bem menos que seu pai de santo, sem a intenção direta de lhe fazer concorrência, aliás, pelo contrário, cobra mais barato por reconhecer-se como iniciante e inferior a ele. A estratégia, por si só, é ambígua. Ao cobrar mais barato pelo mesmo tipo de serviço, numa mesma área (no caso, no mesmo espaço), ela se coloca como concorrente direta, e a diferença só pode ser avaliada no que tange a qualidade dos serviços.

A própria credibilidade de Carlos é posta à prova quando Elza começa a atuar em dias diferentes. Se o serviço de Elza é ruim, ele é um mau iniciador. Se o serviço de Elza é bom, ele perde a clientela, sobretudo porque esta oferece o mesmo serviço por um custo inferior.

Isso é muito importante, porque mostra como o respeito a hierarquia no culto (pai/filha) introduz um elemento que em termos de mercado acaba favorecendo aquele possui a posição "menor" (a filha), criando, com isso, um elemento que favorece a segmentariedade. Isto é, o principio do "mercado", aparentemente alheio ao mundo do religioso, contribui para a segmentação.

Vemos aí um jogo complicado, em que reputações e confiança são abaladas num nível de intimidade muito próximo, em que laços de amizade e afetividade marcantes nas relações dentro de uma família de santo são colocados à prova em situações em que interesses comuns ora convergem para um mesmo ponto, ora tendem a divergir produzindo tensões insuportáveis até a ruptura. A ruptura, evidentemente, é marcada por uma crise, solucionada através do reconhecimento, por Carlos, de que é preciso deixar o espaço que pertence à Elza.

CENA 2: A questão do preço de um serviço enseja que entremos no debate sobre a segunda cena, sobretudo numa frase diálogo final entre Rui e Helena que serve para resumir o seu conteúdo: "para o que foi, foi caro...". A frase de Helena ilustra uma certa insatisfação com a qualidade do serviço. Não foi pela incapacidade do adivinho que isso se deu - afinal, as principais perguntas do cliente foram respondidas. Mas o que gerou essa insatisfação em Helena e a subseqüente concordância de Rui?

Em primeiro lugar, usei uma definição pouco usual para a posição que Rui e Helena ocupam nesse circuito de trocas: chamei-os de clientes especializados. Ao denominá-los dessa forma, coloquei-os em uma posição semelhante à do sommelier diante do vendedor de vinhos ou do gourmet em um restaurante. Trata-se de um cliente difícil, acostumado ao produto oferecido, capaz de desconfiar do procedimento do vendedor ao oferecer-lhe, como "grande coisa", um produto ordinário ou inferior.

Reconhecendo o grau de especialização de seus clientes, qual foi a atitude de Edson?

Ele procurou o tempo todo oferecer algo mais, tentando criar distrações perante o produto oferecido, seu jogo de búzios. Procurou exibir seus conhecimentos, demonstrar capacidade superior, sobretudo porque sua pretensão era a de colocar-se em concorrência com o pai de santo de Rui e Helena. Sabendo a origem "tradicional" de seus clientes, insistiu o tempo todo em afirmar-se como pertencente a um tronco religioso tradicional, a exaltar suas "raízes".

No jogo, Rui e Helena encontraram aquilo que vieram buscar; entretanto, a insistência de Edson em utilizar o jogo para seduzi-los a aderir ao seu grupo, gerou um grande desconforto. Tal desconforto de ambas partes aumentou quando Edson passou a se dirigir à Helena, pressentindo sua desconfiança e insatisfação, para tentar mostrar seus conhecimentos. Edson fracassou em duas tentativas; na terceira, acerta, mas pareceu sentir sua reputação abalada, sem perceber que a demanda essencial de Rui e Helena já havia sido atendida. Edson encerrou o jogo fazendo uma previsão bombástica, na expectativa de surpreender seus clientes.

Antes de analisar a cena do pagamento envolvendo Edson e seus clientes, vamos debater o que acontece até este ponto da cena e saltar para o seu final, sem discutir a questão do dinheiro, que abordaremos mais adiante.

Para o marido de Elza, cobrar barato é desvalorizar o serviço; para Helena, quem cobra "caro", tem que oferecer quantidade e qualidade. No entanto, qual seria o parâmetro capaz de estabelecer essas medidas de quantidade e qualidade? Não é possível determinar de modo objetivo, mas a questão do tempo da consulta pode tornar-se irrelevante diante da capacidade do adivinho de relatar, por exemplo, fatos peculiares sobre o passado do consulente, fatos que este jamais partilhou com os outros, experiências da infância, detalhes físicos sobre pessoas mortas ou ausentes. Essa seria uma medida de qualidade.

É claro que o cliente especialista não se satisfaz facilmente. Sua medida de qualidade é muito mais alta que a de um cliente comum. O fator tempo passa a ter um significado mais forte, pois esse cliente não tende a se impressionar diante de um adivinho de grande capacidade. Considera que "isto não passa de um dever de quem se coloca diante de uma mesa para dar consulta".

O "cliente especializado" coloca em teste a competência do adivinho, como Quesalid questiona o sistema de cura xamânico (Lévi-Strauss, 1967). Porém, ao contrário do jovem xamã, não o faz para desacreditar o adivinho ou o sistema de adivinhação, mas para assumir a posição de "controlador da qualidade" do serviço oferecido. Na verdade, atribui-se um papel de garantir a probidade do oráculo, atuando como divulgador de reputações.[16] Como Helena afirma, "o rapaz é sério... mas acabou se perdendo". Reconhece suas qualidades, mas não deixa de exibir a sua insatisfação com o resultado final da consulta.

O tempo da consulta não é necessariamente a medida mais importante para estabelecer a credibilidade do adivinho: na cena envolvendo Rui e Helena pudemos perceber que o fato que incomodou a ambos foi a insistência de Edson em atraí-los para sua casa. Nesse quadro temos alguns jogos que revelam situações de equilíbrio, assimetria e desequilíbrio nas trocas.

Quando um consulente procura um adivinho, este ocupa uma posição superior ao consulente, já que detém um conhecimento que o primeiro procura. A consulta, entretanto, pode inverter essa relação, visto que diante do fracasso do adivinho no seu intento - de revelar o passado, o presente e projetar o futuro -, o consulente pode colocar em questão o poder do adivinho. Quanto mais especializado o consumidor, menor a distância entre as posições entre adivinho e consulente, e maior a sua condição de questionamento da qualidade do serviço.

Como o tempo de consulta não é fixo, ao contrário da hora psicanalítica freudiana, ela pode durar indefinidamente, até a satisfação total do cliente ou a exaustão do adivinho. Mãe Rosana de Bessém[17] atende em consultas às cartas e búzios em sua casa, no bairro de Vila Isabel (Rio de Janeiro). Suas consultas chegam a durar quatro horas, período no qual ela procura esmiuçar em detalhes a vida do cliente e faz o aconselhamento espiritual, ministrando ebós e oferendas para seus clientes. A agenda em que marca as suas consultas estabelece uma distância de 6 horas entre um horário e outro. Sua consulta não é considerada "cara", pois seu valor corresponde a uma média do preço de um "bom jogo", que oscila em torno de R$ 50,00.

Vemos, nesse quadro, a questão do tempo avaliada em vários parâmetros distintos, combinando aquilo que Alfred Gell (1992) chama de Séries A e B. O tempo é visto pelo consulente e pelo adivinho sob a forma de passado, presente e futuro, como instâncias fixas de desenvolvimento linear. Esse tempo, no entanto, não é passível de medida. Apresenta-se como sucessão de eventos, fixos numa linha que pode ser analisada, e essa é uma das funções que o jogo de búzios exerce. O tempo, porém, também se apresenta como dois momentos distintos, marcados pela experiência comum: o antes e o depois da consulta. Já esse tempo é perfeitamente mensurável, pressupõe aspectos qualitativos e quantitativos. Embora possa ser medido, a experiência dos envolvidos varia em função de aspectos subjetivos.

Para Rui, o tempo da consulta foi suficiente, para Helena não e para Edson foi além do que deveria ter sido. Esse tempo, medido em horas, foi o mesmo para ambos, porém os três experimentaram sensações absolutamente distintas, que foram da satisfação à insatisfação, do conforto ao desconforto individual. Temos aqui as duas dimensões, qualitativa e quantitativa, confrontadas em planos diferentes.

Para Rui, o quantitativo não interferiu sobre o qualitativo. Ele foi em busca de uma resposta que obteve. Para Helena, o processo deveria oferecer algo mais, e a relação com o preço a fez considerar o tempo curto demais - o quantitativo interferiu, no seu ponto de vista, diretamente na qualidade do serviço. Para Edson foi o qualitativo que interferiu sobre o quantitativo. Diante da insatisfação de seus clientes, ele procurou oferecer "algo mais"; fracassou, e o tempo da consulta acabou indo além do que desejava.

No entanto, não é possível pensar tais questões em termos de uma dicotomia em que os termos se excluem. Quantidade e qualidade não representam uma oposição excludente, pode-se circular indefinidamente sem que esses pólos oposição nos obriguem a uma escolha fixa.

Alguns aspectos, porém, podem ser considerados na relação entre quantidade e qualidade. Por exemplo, a qualidade da informação obtida através do jogo de búzios pode compensar a pequena duração de uma consulta. A satisfação de Rui com as respostas obtidas compensou a curta duração da consulta. Para Rui o tempo foi o exato, capaz de lhe proporcionar satisfação com o serviço. Os demais eventos não abalaram totalmente a credibilidade do adivinho; geraram, porém algumas dúvidas e desconfianças.

É possível crer que o consulente procure extrair da quantidade de informações suas qualidades. Logo, uma consulta longa pode ser boa em função do grande número de informações que veicula. Outro fato é que, quanto mais tempo dure uma consulta, maior a possibilidade do adivinho apresentar ao cliente um fato relevante ou previsão que tenha grande significado para este. Essa foi a aposta de Helena. Um jogo mais longo permitiria que Edson exibisse melhor a sua capacidade. No entanto, a preocupação deste em agradar um cliente insatisfeito conduziu a consulta para uma direção insatisfatória para ambos, visto que Edson não atingiu seu objetivo (atrair para se terreiro os clientes Rui e Helena) e Helena pôs à prova sua reputação.

Edson por sua vez, talvez por não perceber de modo preciso o que seus clientes vieram demandar, tentou lhes oferecer algo que, no seu entendimento, aparecia como "qualitativamente melhor": seus serviços como sacerdote. Diante do desinteresse de Rui e Helena por esse "produto", visto que eles buscavam tão somente uma espécie de "segunda opinião" para um quadro sobre o qual já possuíam algum conhecimento, Edson tentou demonstrar sua capacidade. Como seus clientes não reagiram ao apelo, Edson percebeu que a consulta excedeu o tempo necessário, inclusive para a satisfação da demanda do cliente.

Essas três percepções do tempo colocam diante de nós as múltiplas possibilidades de mensuração e cálculo acerca do tempo. Se incluíssemos ainda as percepções dos assistentes rituais de Edson, que permanecem fora da sala de jogo, e de um consulente que aguarda sua vez numa ante-sala, temos um quadro complexo de ordens distintas de temporalidade. Ao mesmo tempo, a dinâmica do jogo de búzios pressupõe uma relação com um outro tempo, exterior a ele, o jogo, um tempo linear que se desenvolve em passado-presente-futuro, que pode ser analisado e sobre o qual se pode fazer análises ou previsões.

Não discutirei, no momento, se o jogo de búzios opera com uma concepção fechada de futuro. A literatura etnográfica e os mitos sob os quais se sustenta a cosmologia do candomblé parecem dizer o contrário. O futuro apresenta-se como uma espécie de tendência ou linha aberta, e a própria função do adivinho é estabelecer um cálculo sobre o futuro, apontando rumos a serem seguidas ou obrigações a serem cumpridas para evitar o infortúnio.

Retomo a discussão sobre preço e qualidade do serviço, aludida pela colocação do esposo de Elza. Há uma média de preço de mercado para a consulta aos búzios, que, como pude aferir, gira em torno de R$ 50,00.[18] O preço pode aumentar ou diminuir em virtude da reputação do adivinho. Como também afirmei anteriormente, um iniciante, ao se colocar no mercado, tende a oferecer seus serviços por preços numa faixa inferior à de preços no mercado.

Portanto, se o "preço baixo depõe contra a qualidade do serviço", é porque o adivinho cujos preços são baixos, ou não goza de boa reputação pelas suas qualidades como sacerdote, ou ainda é um iniciante no mercado, e por isso pode ter sua reputação constantemente questionada.

As estratégias adotadas pelos adivinhos variam em função de suas pretensões diante dos clientes ou de sua entrada no mercado, ou, ainda, em função dessas duas opções combinadas. Como vimos, para Carlos e Elza essa relação de preço funcionou até que esta atingisse autonomia, e, por isso, seu esposo passou a crer que, a partir de então, ela se encontrava em melhores condições para se colocar no mercado.

No caso de Edson, Rui e Helena, o jovem pai de santo quer se estabelecer no mercado, possui capacidades e goza de boa reputação. Porém, colocado à prova involuntariamente pelos seus clientes, parece fracassar. Em virtude de interesses distintos entre ele e seus clientes, acaba oferecendo um serviço que é considerado caro por estes, visto que apresenta falhas na qualidade, mas, sobretudo, na quantidade de tempo empregado na consulta.

Já Rosana de Bessém oferece um serviço que combina boa reputação como adivinho com um longo tempo para consulta, e, sobretudo porque já goza de certa estabilidade no mercado, não carece de colocar a prova seus serviços. Estabelece seu preço dentro de uma média de mercado, afirmando, no entanto, que não cobra um valor superior ao de seu iniciador, "no máximo é igual, nunca acima...".

Não é possível afirmar que existam regras fixas para determinar o preço de tais serviços, e o preço médio não é construído a partir de uma avaliação de mercado por parte dos adivinhos. Ele procura obedecer a um conjunto de laços interpessoais, que se estendem por uma família de santo (tal como vimos nos casos de Elza e Rosana); pode, porém, extrapolar tais laços e atingir preços mais altos que a média. A reputação de um adivinho é a principal medida de seu preço. Se seu serviço tem qualidade, mesmo com o preço alto, ainda assim é olhado com respeito pelos participantes de um mesmo circuito de trocas.

Os critérios de avaliação da qualidade não são rígidos, mas operam dentro margens definidas. Uma das qualidades essenciais é um controle preciso sobre o oráculo, demonstrando a capacidade de informar o cliente sobre aquilo que ele deseja saber. Será, porém, a capacidade de determinar fatos sobre o passado e o presente que garantirão o reconhecimento do adivinho, inclusive em relação a suas condições de estabelecer previsões sobre o futuro.

Por fim, gostaria de explorar a cena da cobrança do jogo por parte de Edson, em que o adivinho procura evitar tocar no dinheiro pago à guisa de remuneração pelo serviço prestado. Como pudemos observar, Edson evitou tocar no dinheiro - entretanto, ao fazer o troco, se viu obrigado a manusear outra nota.

A prática corrente entre os adivinhos é de não tocar nesse dinheiro, sendo ele recolhido por outra pessoa, um assistente responsável. Em algumas casas de santo há uma pessoa designada para a função de zelar sobre as condições em que se realiza o jogo, cuidando dos búzios e do local ou quarto específico utilizado para tal fim, organizando a agenda de atendimentos e consultas.

No entanto, no episódio que presenciamos foi necessário que Edson tocasse em dinheiro, ainda que não fosse aquele repassado diretamente pelas mãos de seus consulentes. Sobre o tema do dinheiro, Vogel, Mello e Barros (1987) afirmam: "Hocart tenta refletir sobre o dinheiro criticando as representações modernas com seu ranço de racionalidade utilitária que o pensamento economicista conseguiu transformar em lugar-comum de nossa ideologia. Tanto as trocas quanto o dinheiro - é preciso não esquecê-lo - existiam embutidos na hierarquia mais ampla da esfera mágico-religiosa, antes de se converterem num domínio próprio de motivação e legitimidade. Houve um tempo em que religião e dinheiro não se constituíam em domínios separados e mutuamente excludentes. A separação no parece, hoje, "natural" porque está feita." (p.15)

Não podemos afirmar que o dinheiro não pode ser tocado por ser algo "impuro" ou "espúrio" diante da prática religiosa, visto que este aparece como parte constitutiva da relação entre adivinho e consulente. No entanto, há um ritual específico que caracteriza o pagamento pelo serviço: o dinheiro não é entregue nas mãos do adivinho, é depositado sobre o jogo. A tensão ocorre justamente no momento em que um fato "imprevisto" obriga o oficiante de uma cerimônia religiosa tocar no dinheiro de remuneração por esta.

A relação com o dinheiro cobrado pelo serviço permanece, do ponto de vista ritual, intacta. Do ponto de vista de uma troca comercial pura e simples ela obriga os participantes da relação a um novo contato, dessa vez mediado pelo uso do dinheiro do troco. A natureza destas moedas trocadas, no entanto, é de ordem diferente, embora a troca seja realizada na mesma moeda corrente. Temos, então, o mesmo dinheiro circulando entre os participantes da relação com dois significados diferentes atribuídos e compreendidos pelos envolvidos[19].

Da cobrança pelos serviços religiosos, o "Chão"

Procurarei explorar aqui a noção de "chão", também chamado de "salva",[20] categoria genericamente adotada pelos adeptos para nomear a cobrança de serviços religiosos no Candomblé. É importante considerar que essa categoria se distingue da cobrança efetuada no jogo de búzios, e, tal com esta, também é carregada fortes ambigüidades, porém de natureza distinta das relacionadas ao jogo de búzios.

A realização de rituais de iniciação mobilizam um grande contingente de pessoas, especialistas, animais sacrificiais, todo um conjunto de pessoas e objetos que são essenciais para realização do feito. Há também um conjunto de listas de produtos que visam reunir o material para realização dos rituais, a alimentação do grupo, roupas do iniciado e de suas entidades e a preparação de comidas votivas dessas entidades cultuadas.

O "chão" é uma cobrança à parte, um valor em dinheiro, entregue nas mãos do "pai de santo", o iniciador, que pode ser entendido como o "pro-labore" deste. Não há um valor fixo, o que pode determinar que num mesmo grupo de iniciados alguns paguem mais ou menos "caro", ou, mesmo, nem cheguem a pagar.

Um dos fatores que pode determinar o preço do "chão" é a origem social do noviço ou a diluição desse preço entre os demais noviços de um grupo. Outros fatores também podem ser significativos, tais como a "raridade" ou especificidade da entidade que o noviço é portador, o que lhe conferiria importância perante o iniciador ou mesmo estabelecer certas dificuldades nos procedimentos da iniciação. O "chão" é uma cobrança individual, uma obrigação particular entre iniciador e iniciado. Seu valor quase nunca é compartilhado com os demais membros da comunidade.

Há, por outro lado, o hábito comum de remunerar especialistas rituais envolvidos numa iniciação; esse papel porém, é exercido pelo pai de santo. Nunca ocorre uma relação de remuneração direta entre o iniciado e estes especialistas - o papel do pai de santo, nesse caso, é de uma espécie de mediador da relação. Por outro lado, é corrente, também, outro hábito por parte do iniciado, de presentear os especialistas envolvidos em sua iniciação com mimos e presentes, algumas vezes de alto valor, tais como jóias, perfumes, bebidas ou tecidos importados.

Em alguns casos, quando o iniciado não dispõe de recursos para a realização de suas "obrigações", estas podem ser feitas com o apoio da comunidade, gerando da parte do iniciado uma relação de gratidão, que deve se expressar na sua disponibilidade efetiva para o serviço junto à comunidade. Há uma expressão corrente para designar tais situações. Costuma-se falar que uma "feitura de santo" realizada dessa forma é um "santo de misericórdia"

Há, porém, casos em que os integrantes de um mesmo grupo de iniciados, "o barco de iaôs",[21] atua de forma conjunta para realizar a iniciação. O montante em dinheiro que cada um destina a sua iniciação é combinado diretamente com o pai de santo, e pode diferir de um membro para outro. Como já sugerimos, essas diferenças podem ser de ordem distinta, podendo, inclusive, estar relacionada com as diferenças sociais entre os membros de um mesmo barco.

CENA 3:[22] O caso que investigaremos a seguir ocorreu em um terreiro que recebe grande fluxo de pessoas de outras nacionalidades que participam do culto dos orixás. Trata-se da história do barco formado por Peter, Lúcia e Regina.

Peter é norte-americano, um comerciante, que conheceu a casa que freqüenta em uma viagem de férias ao Rio de Janeiro. Após vários anos de relação e em função da manifestação de seu orixá, organizou-se para realizar sua iniciação num período de férias na cidade. Lúcia é filha de uma iniciada mais antiga da casa, e freqüenta o terreiro praticamente desde que nasceu. Ela e a mãe são funcionárias públicas e sempre procuraram organizar seus recursos de modo a poder realizar a iniciação de Lúcia no momento adequado. Regina é diarista e presta serviços no terreiro, diretamente para o pai de santo.

É sensível a diferença social entre os membros do barco. No momento da realização da iniciação, Júlio, o pai de santo, reuniu-se separadamente com cada um deles, informando-lhes de seu desejo de realizar o ato ritual. Para tanto, solicitou-lhes que reunissem os recursos através de listas referentes aos orixás que regem cada um deles, e informou, também, o valor que cobraria a título de "chão".

Realizado o ritual de iniciação e cumpridas todas as prescrições após a feitura, Peter resolveu perguntar a razão da cobrança de um valor tão elevado, visto que todos receberam o mesmo tratamento, o que não justificava a diferença que ele percebera em conversas com suas companheiras de iniciação. A situação gerou um certo constrangimento em Júlio que, investido de sua posição hierárquica, minimizou fato, escusando-se a dar explicações.

Peter não considerou a atitude do pai de santo correta, porém aceitou-a assim mesmo, compreendendo o fato como parte da sua formação religiosa. Sua atitude perante o pai de santo, porém, foi mal vista aos olhos da comunidade, que a considerou mesquinha. Lúcia, a mais velha no barco, foi quem procurou solucionar o problema, explicando ao seu irmão de barco Peter a situação, comum nos terreiros, onde a cooperação mútua entre membros de um grupo de iniciados é fato constituinte destas relações, e minimizando o mal entendido perante os demais membros da comunidade, explicando que Peter se expressara mal, pois "não havia compreendido plenamente o sentido das relações entre irmãos de barco".

A "cenas" que se apresentam para a análise nos informam sobre vários problemas embutidos numa cobrança de "chão". No primeiro quadro vemos o evidente constrangimento gerado por uma indeterminação dos valores cobrados. A ausência de um valor fixo e as diferenças sociais entre os membros de um grupo de iniciados provocou uma tensão interna no grupo de iniciados, uma tensão entre iniciador e iniciado e entre o iniciado e a comunidade religiosa.

A primeira tensão é solucionada no nível da hierarquia iniciática. Por meio de sua ascendência sobre os demais membros do seu barco, Lúcia procurou reduzir os constrangimentos explicando que é parte integrante da religião esse tipo de comportamento, em que os laços de cooperação e solidariedade entre membros de um barco devem ser colocados acima de tais problemas. Sobre esse aspecto, informa Lima (op. cit.): "Do barco podem nascer relações de outro tipo que reforçam o laço de parentesco, como o compadrio, e outras relações decorrentes do conhecimento com a família de sangue do irmão de barco." (p. 170)

A proximidade ensejada pela iniciação estabeleceu vínculos de outra ordem entre os membros do barco, possibilitando uma redução da tensão provocada pelas diferenças sociais entre seus membros. Essa tensão foi transferida quase que automaticamente à relação direta entre Peter e Júlio. Nesse caso, a tensão proveio do fato de que Júlio poderia ter agido de má-fé com Peter, por não lhe informar devidamente a situação. Dada a posição hierárquica de Júlio, este teria o direito de se recusar a prestar satisfações aos seus iniciados.

Esse fato acabou provocando uma tensão maior ainda, visto que Peter reconheceu a ascendência de Júlio sobre ele, ainda que não concordasse com o seu procedimento, sobretudo porque não se importaria em contribuir com a iniciação de quaisquer membros, e em sua participação na comunidade já havia contribuído com diversas listas de outros iniciados.

A tensão, então, foi transferida para os demais membros da comunidade, que consideraram "falta de respeito com Júlio" a atitude de Peter. Foi Lúcia quem conseguiu desfazer as eventuais incompreensões presentes na relação. Principalmente pelo fato de ser um membro bastante conhecido da comunidade, seu testemunho serviu para afiançar a atitude de Peter como fruto de um desconhecimento dos sistemas de cooperação e solidariedade que operam no interior de um terreiro.

O fundamental é perceber que, nesse quadro, as tensões podem existir permanentemente em cada barco de iniciados, quando forem verificadas diferenças de cobrança de custos ou das listas de iniciação.

Uma outra prática verificada no terreiro de Júlio é a divisão dos valores em parcelas amortizadas ao longo do primeiro ano após a iniciação. Por se tratar de um terreiro grande, Júlio tem condições de "adiantar" certos valores necessários à iniciação ou alocar recursos segundo as necessidades do momento. Há também uma rede de apoios financeiros que servem para sustentar o terreiro, vindo de membros abastados da comunidade.

Júlio opta por não dar satisfações sobre o gerenciamento dos recursos, nem a Peter e nem aos demais membros da comunidade, por considerar que se trata de uma prerrogativa particular à sua condição de liderança espiritual. Como ele afirmou: "Eu poderia apresentar uma dúzia de justificativas, apelando inclusive para justificativas de ordem ritual: a raridade do orixá, os custos materiais com animais e produtos. Mas não creio que isso fosse ajudar muito... Optei então pelo silêncio sobre a questão, afirmando apenas que isto faz parte da nossa relação."[23]

O papel de Lúcia nesse quadro acaba nos oferecendo as saídas mais criativas. Por ser um membro conhecido da comunidade, possuindo grande familiaridade com o pai de santo, a quem chama carinhosamente de "meu avô", ela acaba sendo a grande fiadora. Primeiro da instituição religiosa, o terreiro, e do seu próprio barco, ao considerar com seus irmãos de iniciação sobre os sistemas de cooperação e solidariedade, e depois de Peter, perante o pai de santo e a comunidade, ao procurar diminuir a tensão provocada por seu inquérito, reforçando o fato de que tais ambigüidades e incompreensões apresentam-se como fatores constitutivos das relações no interior de um terreiro.

Sua posição acaba sendo vista por todos como a mais capacitada para equilibrar o quadro, pois goza de intimidade com as mais diversas partes envolvidas na relação: é a mais velha do barco, é conhecida de todos e querida pelo pai de santo, e é, entre os seus irmãos de iniciação, quem melhor conhece a estrutura e o funcionamento do terreiro.

Essas relações de crédito são fundadas principalmente em laços de confiança e no conhecimento pleno das regras que orientam o funcionamento do circuito de trocas. Conhecendo bem os limites do circuito e as ambigüidades próprias que o caracterizam, Lúcia atua como um agente de crédito do sistema.

Infelizmente não foi possível verificar a posição ocupada por Regina no quadro, que talvez poderia nos informar ainda mais sobre outras tensões presentes nas relações de troca. Apesar de sua posição determinante e, embora seu papel na crise não fosse ignorado - pois é ele quem dá partida aos eventos narrados -, a falta de um depoimento seu nos priva de algumas sutilezas que marcam o quadro.

Considerações finais

Procurei ao longo deste trabalho discutir alguns aspectos relativos a certos contextos etnográficos onde pudemos investigar certos "circuitos de troca" ou "cenas sociais" em que as relações são marcadas por ambigüidades, sobretudo por se tratar de quadros que envolvem práticas religiosas. São quadros em que os laços de confiança e de intimidade se mostram essenciais para a compreensão dos aspectos ambíguos relacionados às trocas, relações que envolvem questões íntimas, mediadas por trocas que fazem uso do dinheiro ou favores pessoais das mais diversas ordens.

Os circuitos de troca ou cenas sociais que percorremos são marcados pelas características que V. Zelizer e F. Weber lhes atribuem, como fronteiras bem definidas e mecanismos de controle sobre as transações realizadas nestas fronteiras, bem como um conjunto distintivo de transferência de bens, serviços ou reivindicações sustentadas sobre laços interpessoais, meios de troca particulares, internos ao circuito, decorrentes dos significados mutuamente partilhados pelos seus integrantes.

A partir dos casos que observamos, podemos sugerir a existência de uma estrutura institucional, em que são estabelecidos sistemas de crédito e confiança, baseados em regras particulares de reciprocidade próprias ao interior do perímetro dos circuitos analisados, onde vimos situações onde a quebra de certos "contratos" podem ensejar a exclusão ou desequilíbrio entre os participantes de uma relação.

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Notas

[*] O presente artigo surgiu dos desdobramentos de um trabalho final do curso Antropologia das Sociedades Complexas - Quantificação e Temporalidade, oferecido no segundo semestre de 2004 no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. Agradeço ao meu orientador Federico Neiburg, coordenador do NUCEC - Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia, pelas anotações e alterações sugeridas ao texto.

[**] José Renato de Carvalho Baptista é mestrando do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do NUCEC - Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia.

[1] Optamos por adotar a grafia "pai de santo" ao invés de "pai-de-santo". Ambas as formas, porém, são encontradas em documentos que referem às religiões afro-brasileiras.

[2] No esquema proposto por FRY, o "cliente rico" exerce um papel essencial na formação dos terreiros de umbanda (FRY, 1982 apud BIRMAN, 1985), sendo um dos meios principais de sustentação da estrutura de culto.

[3] Termo que designa de modo genérico quaisquer oferendas aos deuses. Pode se referir, também, a despacho ou feitiço, ou, ainda, aos rituais de cura ou limpeza espiritual.

[4] Oferenda propiciatória feita a Exu, com a finalidade de enviá-lo como mensageiro aos orixás, solicitando sua boa vontade para a realização de um trabalho religioso ou para evitar sua presença perturbadora.

[5] Diferencia-se do ebó e do despacho pelo seu caráter de restituição a uma graça recebida ou de manutenção do vínculo espiritual entre o fiel e suas entidades.

[6] O termo iorubá surge de conjunção de três palavras baba + olu + owo = pai e dono dos segredos, a tradução mais corrente é simplesmente "pai do segredo". Adotaremos doravante a grafia em português: babalaô.

[7] Vogel, Mello e Barros propõem que essas recombinações podem chegar a 4096, estabelecendo um campo de possibilidades matemáticas muito mais amplo.

[8] O uso do oráculo pelas mulheres encontra-se explicado em um mito segundo o qual Exu perde uma aposta com Oxum e esta adquire o direito ao acesso ao jogo divinatório, anteriormente de uso exclusivo dos homens (Barros, Vogel e Mello, 1993). A explicação histórica dá conta do fato de que os terreiros em seus primórdios foram formados basicamente por mulheres, sendo que na casa de Candomblé mais antiga da Bahia, a Casa Branca do Engenho Velho, até hoje apenas as mulheres são iniciadas (para uma compreensão mais precisa desse processo, ver LANDES, 1967).

[9] Obrigações: oferendas rituais às divindades que o adepto é obrigado a fazer, por exigência das mesmas, a fim de propiciá-las e receber o sue auxílio. Sobre a Obrigação de Sete Anos afirmam Vogel, Melo e Barros (1993): "É uma das obrigações mais importantes da carreira iniciática. Eqüivale a um autêntico rito de investidura, a partir do qual, tornando-se ebomim, o filho de santo pode proceder a iniciação de outros" (p.199).

[10] Comunicação pessoal de um pai de santo da nação Jeje

[11] Deká ou Decá (recebimento do): cerimônia ritual através da qual o iniciado é investido, após a Obrigação de Sete Anos, na condição de pai ou mãe de santo. O decá é o reconhecimento da aptidão para este cargo e a transmissão de obrigações religiosas.

[12] Estudei em outro trabalho o caso de Elza, discutindo os aspectos relativos à construção de um espaço de atendimento religioso no interior de uma loja de artigos religiosos. Neste trabalho, Elza afirma que sua entidade, Maria Molambo, uma pomba-gira, expulsou Carlos de sua loja: "No seu entendimento, Maria Molambo "expulsou" o seu pai-de-santo, criando, inclusive, uma situação desagradável entre ela e Carlos. Ela e o esposo acreditam que Molambo foi afastando a clientela de Carlos, que vinha duas vezes por semana de seu terreiro, em Sepetiba, e quando este não possuía mais clientes, não havia razão para se deslocar de tão longe para não atender ninguém. O próprio Carlos, segundo Elza, foi quem lhe disse que "Sua Molambo é muito arretada, e conseguiu me tirar daqui". Elza conta também que Molambo lhe revelou que o havia tirado dali, "porque a loja é dela e ela não queria dividir com ninguém!" (Baptista, 2004: 15)

[13] Edson é um nome fictício dado a um pai de santo da nação Jêje, que é vizinho de parentes meus e grande amigo de uma prima minha. Rui e Helena, cujos nomes também são fictícios, são meus amigos pessoais e chegaram até Edson através dessa prima.

[14] O diálogo foi contado pelos dois participantes da cena, Rui e Helena, quando lhes perguntei se haviam gostado da indicação de minha prima.

[15] Ver nota 11.

[16] O sistema de reputações relacionado ao jogo de búzios e de oferta de serviços religiosos de um modo mais amplo opera com uma rede de informações entre iniciados e clientes, em que são divulgados os "bons" e os "maus" adivinhos, os "caros" e os "baratos", os "sérios" e os "marmoteiros".

[17] Um dos nomes dado ao orixá Oxumarê dentro da tradição jeje.

[18] O levantamento desses valores foi feito através de conversas individuais com pais de santo, consultas telefônicas com pessoas que oferecem esses serviços, solicitando informações sobre o seu preço, em listas telefônicas e jornais.

[19] Esse quadro ilustra aquilo que Viviana Zelizer chama de dinheiro marcado, quando temos duas qualidades de dinheiro diferentes envolvido numa troca. Poderíamos talvez afirmar, também, que são dois tipos de troca de natureza distinta, embora o meio circulante utilizado nestas trocas seja o mesmo.

[20] Não conhecia essa denominação até recentemente, quando estive em pesquisa de campo em Salvador no período de janeiro à março de 2005. A utilização dessa por alguns informantes no campo me fez considerar que se tratava da mesma categoria utilizada no Rio de Janeiro para referir-se ao pagamento de serviços religiosos em obrigações, ebós ou oferendas.

[21] Barco de iaôs: é a designação dada pelos adeptos a um grupo de pessoas que se iniciam em conjunto. A ordem em que se realizam as iniciações determina a posição hierárquica que cada um ocupa no barco, sendo associado um nome específico a cada posição: dofono, o primeiro, dofonitinho, o segundo, e assim sucessivamente até a décima posição, fomo, fomotinho, gamo, gamotinho, domo, domotinho, vito, vitotinho. A posição na hierarquia mais ampla do terreiro é determinada pela ordem de iniciação entre os barcos, primeiro barco, os mais velhos, estendendo-se infinitamente quantas iniciações forem feitas num terreiro. Doravante, quando nos referirmos a um grupo conjunto de iniciados, chamaremos genericamente de "barco".

[22] O presente quadro foi construído a partir da observação direta em um terreiro da cidade do Rio de Janeiro, e de conversas com pessoas envolvidas na cena descrita, além de comentários isolados de outros membros do terreiro.

[23] Depoimento informal colhido numa festa em julho de 2004.