Neste trabalho será analisada a "batalha espiritual", forte movimento espiritual presente no neopentecostalismo brasileiro, mostrando sua relação com o erotismo. Mostramos que o feminino é objeto constante de demonização, seja do corpo, seja das palavras, seja das atitudes as mulheres. O movimento da batalha espiritual repreende não apenas a sensualidade (olhares, gestos e roupagem são razões para se suspeitar de possessões demoníacas), como também comportamentos femininos que estigmatiza como pouco adequados à mulher cristã (que deveria ser atrelada à submissão, à dependência, à docilidade). Entretanto, paradoxalmente, é o feminino o principal difusor do movimento da batalha espiritual. As mulheres são suas principais lideranças e suas ardorosas difusoras; de demonizadas, tornam-se soldados na batalha da moderna "caça às bruxas".
Palavras-chave: Batalha espiritual; feminino; o demoníaco; corpo
The article deals with the so called “spiritual battle”, a phenomenon inside the neo-Pentecostal movement in Brazil that is characterized by a negative attitude towards erotism. It is demonstrated how women are demonized, feminine sensuality is repressed and that women are always seen as dedicated and dependent. Paradoxically women represent the main leadership of this movement.
O neopentecostalismo, ou a terceira onda pentecostal brasileira, conforme menciona Paul Freston (1993), tem início nos anos 1970 e se expande nas décadas seguintes do século XX. Esta onda tem o Rio de Janeiro como cidade representativa e a Igreja Universal do Reino de Deus como sua propulsora. A nomenclatura "pentecostalismo autônomo", adotada por Bittencourt Filho (2003), também é adequada ao pentecostalismo pós-1970, que tem como público majoritário os segmentos economicamente menos favorecidos da sociedade brasileira.
Segundo Ricardo Mariano (1999), são características do neopentecostalismo a ênfase na batalha espiritual, o apego à cura divina, o uso da confissão positiva, a crença de que “o crente está destinado a ser próspero, saudável e feliz neste mundo [...] o principal sacrifício que Deus exige de seus servos é ser fiel nos dízimos e dar generosas ofertas com alegria, amor e desprendimento” (MARIANO, 1999: 44).
No neopentecostalismo, o sentimento ocupa o lugar da razão e as experiências místicas tornam-se o referencial para construção de doutrinas. Assim, há certa ruptura com o sectarismo e o ascetismo pentecostais, marcados pela rigidez moral e pelo isolamento. O ethos pentecostal busca a integração com o mundo ou a afirmação nos ambientes extra-eclesiásticos. Como menciona Mariano (1999:44), “a preocupação primordial que transparece na mensagem pentecostal é com esta vida e com este mundo. O que interessa é o aqui e agora. E, para isso, nada melhor do que ter Cristo no coração, meio inabalável de alcançar a vitória sobre o Diabo e obter a retribuição divina aqui e agora”.
A expressão "batalha espiritual" não é recente, uma vez que pode ser resgatada de certa alegoria bíblica que consta do texto da Carta aos Efésios (provavelmente escrita entre os anos 60-62), no capítulo 6, versículos 10 a 20, em que se menciona a armadura espiritual como defesa contra as forças do Mal. Este é o texto referência entre os cristãos para a defesa contra o chamado “dia mau” ou “dia de ataques demoníacos”. O exorcismo é apenas um dos aspectos da batalha espiritual, uma vez que, através dele, são repreendidos os demônios geradores de doenças e de tragédias. Nos pressupostos da batalha espiritual, estão presentes: a) o temor ou o pavor ao demoníaco; b) a necessidade de precaver-se de sua atuação através da adoção de práticas específicas; e, c) a confissão positiva.
No Cristianismo Primitivo, a figura do diabo sempre ocupou posição de destaque, seja como explicação para as falhas ou deslizes humanos, seja como justificativa para a existência do mal, da injustiça e do sofrimento em um mundo governado por um Deus bom, justo, misericordioso e onipotente. Entretanto, em muitos trechos das Escrituras Sagradas, especialmente do Novo Testamento, percebe-se a ambigüidade na representação do Diabo, que é apresentado como inimigo de Deus, mas também como aquele que, trabalhando a Seu serviço, colabora para realizar a vontade do Soberano.
A Idade Média teve no horror ao demoníaco uma de suas marcas. As mulheres, especialmente, eram consideradas as representantes ou sacerdotisas do Mal. O medo do feminino levou à caça às bruxas - mulheres que não apenas detinham o conhecimento do próprio corpo, mas também conheciam do corpo alheio e, por isso, manipulavam ervas e realizavam partos. (MICHELET, Jean apud PIMENTEL, 2004:77)
A mulher era mais suscetível às influências e possessões demoníacas por ser livre e imaginativa, por falar demais, por ser crédula - os traços femininos atrelados à submissão e à postura masoquista tornavam-na presa preferencial do maligno e, com isso, as maiores vítimas de exorcismos.
No século XVIII, com a secularização, o diabo perde sua força no imaginário popular europeu. "À medida que aumenta o conhecimento científico e a consciência do homem sobre o mundo que o cerca é impossível concluir se as forças demoníacas existem ou não, exercem ou não sua ação." (PIMENTEL, 2005:27) Entretanto, nas três últimas décadas do século XX, com o movimento da Nova Era, o misticismo readquire importância, como também a busca por uma renovação espiritual; ressurgem o ocultismo e a preocupação com o demoníaco. Nos meios neopentecostais, essa preocupação pode ser identificada na chamada guerra santa ou batalha espiritual: “É um mundo de desequilíbrio, no qual, entre Deus e Satanás - nesse trágico dualismo que, embora não admitido dogmaticamente, é vivenciado na prática, - o homem deve combater a tentação da carne, cotidianamente presente” (NOGUEIRA, 2000: 43).
O movimento de batalha espiritual, conforme Farris (1996:103), “parece relatar, de modo fechado, os modelos e cosmologias do período pós-reforma, no final do século 19 e início do século 20 na Europa e na América do Norte”. O ressurgimento desse movimento nos segmentos protestantes se deve a relatos de experiências dos missionários norte-americanos John Fraser e Kenneth McAll com o demoníaco durante seu trabalho com comunidades no interior na China nas décadas de 1930 e 40. Sua difusão como estratégia de evangelização e cura interior (com metodologia própria) é atribuída ao norte-americano Peter Wagner, professor de Missiologia no Fuller Theological Seminary em Passadena, Califórnia. São características desse movimento citadas por Nicodemus Lopes (1997): a) a nomeação de demônios com onomástica herdada da Idade Média; b) busca pela hierarquia demoníaca; c) crença na maldição hereditária (doenças e comportamentos são herdados dos antepassados); d) uso da confissão positiva para expulsão dos demônios e a cura interior (oração da fé como uma das estratégias); e) maniqueísmo (Bem representado por Deus, e Mal encarnado no Diabo); f) autocura ou auto-aconselhamento (com a enunciação de palavras de ordem contra todos os males, sejam eles, orgânicos, emocionais, sociais); e, g) manutenção de uma atmosfera de medo (qualquer desvio é concebido como tendo origem satânica e a demonização ou opressão maligna de uma das áreas pode ocorrer).
A responsabilidade pelos atos é deslocada do fiel para o demônio. Embora o moralismo neopentecostal seja o mesmo que caracteriza as igrejas protestantes, não se falam em escolhas morais; o ser humano é presa de forças que desconhece e que o dominam, e contra as quais precisa se precaver e lutar. A precaução está na adoção de práticas de vigilância e na freqüência à comunidade de fé, para que não sejam abertas brechas à intervenção do Mal. A luta, por sua vez, se estabelece, após estas brechas terem dado lugar a “portões” pela manutenção do comportamento ou da prática pecaminosa.
A literatura é uma das principais difusoras desse movimento, seja através de textos ficcionais ou não-ficcionais. Os romances do norte-americano Frank Perreti, escritos entre 1986 e 1989 (Este mundo tenebroso e outros), que tratam da luta espiritual de cristãos contra espíritos malignos locais que tentam dominar pequenas cidades nos Estados Unidos, tornaram-se referência e cunharam termos como: espíritos territoriais e mapeamento espiritual, comuns nos textos de batalha espiritual.
Na batalha espiritual, recupera-se o conceito neoplatônico de material e imaterial. O imaterial ou chamado "mundo espiritual" é que governa a materialidade ou a vida humana. Quanto à temática da batalha espiritual, os fiéis crêem que o que foi “determinado no mundo espiritual por Deus” pode ser obstaculizado pelo diabo e cabe a eles, os fiéis, reverterem ou impedirem a ação demoníaca.
Machado (1996:111), ao abordar a relação entre mulheres e comunidades carismáticas, destaca que a ênfase no demoníaco permite a reinterpretação das experiências passadas, sob um novo enfoque, além de retirar delas a responsabilidade por seus atos. O Mal é personificado e basta expulsá-lo para que o paraíso perdido seja encontrado. Nesse caso, as desavenças, especialmente nos lares, têm uma origem que pode ser detectada, tratada e tendem a serem diminuídas.
Diante de um mundo à mercê do Mal, cabem duas possibilidades: o medo e a agressividade. O recurso contra o medo se manifesta na constante vigilância das palavras, ações, vestuário, passatempos e prazeres, pois tudo pode ser a brecha para que os poderes demoníacos adentrem a vida humana e a dominem. "Frente a essa ilimitada capacidade de manifestação do demoníaco, a comunidade cristã se via submergida em um delírio persecutório, presa a um estado mental no qual surgia constantemente a dúvida de identidade dos próprios amigos." (NOGUEIRA, 2000:62)
Como os neopentecostais adotam o conceito de livre arbítrio, a salvação é uma conquista preciosa, que pode ser perdida se não se tomarem as devidas precauções. E, como o mundo é tentador, a hipervigilância é a melhor maneira de se manter alerta contra as investidas do Diabo e contra os desejos da própria carne. O fiel crê que o Diabo anda à espreita, em busca de quaisquer deslizes que lhe dariam direito de ação. O texto neotestamentário de I Pedro 5:8 é constantemente repetido como admoestação à vigilância: “Estejam alertas e vigiem. O Diabo, o inimigo de vocês, anda ao redor como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar.”
A vigilância se dá sobre o corpo e a sexualidade, especialmente, e também sobre o lazer. Este é substituído pela ética do mercado, ou pelo ativismo, tendo como referência o provérbio: “Mente vazia, oficina do diabo”. Assim, corpos e mentes ociosos levam ao afastar-se da busca de santidade e estimulam a sensualidade, o consumismo e a abertura às tentações. E o corpo é controlado através do estímulo ao casamento. No pavor ao demoníaco há, também, o pavor do feminino. O corpo feminino, considerado frágil, instável, novamente se torna alvo de controle e de punição. As manifestações demoníacas se manifestam no corpo, tanto em sintomas psicossomáticos quanto em um agir autômato, em que o controle sobre os movimentos é perdido, como em transes. O corpo é controlado no casamento e a família é vista como o ideal para as mulheres.
O casamento é o meio de as mulheres neopentecostais poderem exercer sua feminilidade e sua identidade. Maria das Dores Machado (1996:39) aponta que, no ethos brasileiro, a figura masculina é o ponto de referência e de definição para o gênero feminino nas comunidades neopentecostais. Em Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna, Freud já havia apontado o casamento como única possibilidade de exercício da sexualidade e controle dos impulsos possível às mulheres de sua época. Às solteiras neopentecostais cabe dedicarem-se ao trabalho e à comunidade religiosa como uma estratégia de sublimação dos desejos.
Nas comunidades pentecostais há a valorização da família e a recuperação dos conceitos de paternidade e maternidade responsáveis, o que não significa o confinamento das mulheres ao ambiente doméstico ou a omissão delas diante das ações de seus maridos. O que ocorre é que elas se percebem responsáveis pelo cuidado de sua família e a ela se aplicam, cuidando de suas palavras e exercitando a batalha espiritual, ou seja, guerreando contra os males que possam impedir a paz no lar. Em seus lares são intercessoras e responsáveis pelo bem-estar de toda a família, além de dar suporte na administração doméstica, papel que cabe aos maridos. Como exemplo, há livros que falam do poder da mulher que ora, da importância de se ungir objetos da casa, automóveis e até pessoas. Além disso, há literatura sobre batalha espiritual que mostra também como livrar os filhos de maldições ou de heranças malignas dos antepassados e orienta sobre relacionamentos de namoro. Há cerca de 10 anos surgiram livros estabelecendo padrões de namoro (a corte, em que o toque e a proximidade corporal são rejeitados) e a importância das famílias dos namorados se conhecerem previamente. Algumas autoras como Rebecca Brown, Neuza Itioka, Cindy Jacobs são representantes femininas do movimento de batalha espiritual e o papel da mulher como a que levanta a voz, declara, determina, é bastante destacado.
Maria das Dores Machado comenta que, “ao condenar o orgulho, a arrogância e o uso da violência, e reforçar a passividade, a generosidade e a humildade em homens e mulheres, a doutrina pentecostal ajuda a mudar o poder relativo dos esposos, criando um modelo alternativo para a tradicional família patriarcal ou um novo ethos familiar” (MACHADO, 1996:122), no qual direitos femininos e masculinos são respeitados.
A agressividade, a outra possibilidade de reação ao Mal, por sua vez, se manifesta na onda bélica representada no movimento profético da marcha (marcha-se para expulsar as hostes malignas), em cânticos exaltando os paramentos guerreiros e repletos de termos alusivos à guerra, em um léxico repleto de termos beligerantes. Como exemplos, citam-se cânticos como os seguintes: “Persegui os inimigos e os alcancei, os consumi, os atravessei; sob os pés do Senhor caíram, não mais se levantaram”; “Ainda que um exército se levante contra mim. No Senhor, eu confiarei para sempre. Quando os meus inimigos avançam contra mim, eles tropeçam e caem diante de mim. Se o diabo vem contra mim, ele se levanta para cair”. Como menciona Mariano (1999:125), “Em sua guerra contra o Diabo, há inimigos, soldados, batalhas, lutas, munição, manobras, impiedade, perigo, resistência, crimes, castigos, desafios, destruição, libertação, vitória e derrota”.
E, nessas possibilidades: medo e agressividade, o medo do feminino e a associação entre a mulher e o demoníaco são retomados. O feminino, especialmente o corpo feminino, precisava ser escondido, negado, desprezado. E a palavra deve ser cassada à mulher, uma vez que esta poderia não ser dela. O estereótipo feminino de um ser frágil, dependente, passivo, mas que possui dentro de si uma instância que pode levá-la a perder as virtudes e a se tornar maléfica, é retomado. Tal estereótipo se sustenta em dois mitos: Lilith e Eva. A primeira, associada à lascívia, e a segunda, posteriormente reassumida na figura da Virgem Maria, imagem arquetípica de bondade, ingenuidade, pureza.
Interessante ressaltar a concepção de Giddens sobre sexualidade na Modernidade: “ela funciona como o aspecto maleável do eu, um ponto de conexão primário entre o corpo, a auto-identidade e as normas sociais”. (GIDDENS, 1993:25). Retoma Foucault para afirmar que o corpo se torna o determinante da identidade e sujeito a controles disciplinares, seja o autocontrole, seja o controle externo.
Percebe-se que, quando se aborda a demonização nas comunidades neopentecostais, o corpo é o primeiro elemento que vem à mente. E este é o corpo feminino. Não apenas porque pode suscitar o desejo, pode levar o outro à tentação, como também porque pode levar a mulher a se tornar posse do Mal. Percebe-se uma aproximação do que Sílvia Nunes (2000) aponta como o discurso masoquista feminino, presente desde do século XIX, construído para regular o corpo feminino e limitar as mulheres à esfera doméstica e familiar.
O discurso neopentecostal, porém, apesar de seu "fascismo", pois está presente neste submeter do feminino nas falas dos líderes neopentecostais, escapa subversivamente ao controle, pois encontra-se também na fala das líderes. Um dos traços muito positivos do neopentecostalismo, segundo Machado (1996), é o fortalecimento da auto-estima das mulheres e o encorajamento que se dá à sua liderança. As mulheres assumem funções concomitantes às desempenhadas por homens no ambiente eclesiástico e no ambiente para-eclesiástico, como ensinar, evangelizar, escrever e, também, a liderança em movimentos de batalha espiritual.
Quando assumem a liderança pastoral ou eclesiástica, fazem-no tendo o masculino como referencial, como mostrou Eliane Gouveia (1998) em sua tese sobre as imagens femininas pentecostais veiculadas pela TV. Ela destaca uma característica importante das líderes femininas: a de colaborar na divulgação de mensagens cristãs exemplares e de administrar consolo religioso. Ser mulher em comunidades neopentecostais, segundo Gouveia (1998:195)
“é ter esperança nas ações divinas, é assumir um modo de existência próprio, é acreditar que a realidade, uma vez sacralizada, adquire sentido de verdade absoluta, que transcende os determinantes do mundo material e nele se manifesta, tornando-o real [...] é responsabilizar-se pela mudança de recursos pessoais de ação para assumir, com ‘parcimônia’ lugar de destaque na hierarquia da comunidade religiosa, lutando contra as estereotipias da submissão, da inferioridade. Ser mulher é tornar-se visível por suas qualidades femininas, é atenuar a força dos discursos sexistas que a estigmatizam como inferior ao homem”.
Percebe-se, pela análise de Gouveia, que a liderança feminina busca se estabelecer distante dos estereótipos tanto do feminino, quanto do masculino; no entanto, termina por confirmar associações estereotípicas, como a existente entre feminino e demoníaco, entre corpo e pecado. E, uma vez que também são mulheres, frágeis e sujeitas à tentação, seu papel à frente de uma comunidade guarda traços do masculino.
A rigidez que lhes é imposta (ou auto-imposta) é projetada sobre elas mesmas e também sobre suas lideradas e sobre a comunidade. Como líderes, o mesmo rigor que impõem aos fiéis acerca do controle de seu tempo e seu lazer, impõem-no também sobre si.
E, quando são elevadas como líderes ou representantes ou ícones dos movimentos de batalha espiritual, sua preocupação com a vigilância ao feminino e do feminino é destacada com freqüência, tanto em sua produção literária, quanto nas palestras que proferem e em sua própria apresentação. O medo de investidas demoníacas as leva a um rigor excessivo com olhares, ações, vestuário e com seu corpo - objeto, por excelência, de olhares. Corpos "excessivos", corpos escondidos em paramentos ou vestimentas pouco adequadas ao clima tropical brasileiro. Corpos que reagem negativamente à suavidade do toque e que aceitam somente imposições de mãos acompanhadas de palavras agressivas de ordem. Corpos que recusam doçura e que corroboram o medo e o terror.
Suas palavras femininas, para se fazerem ouvir, são alteradas. A voz muda de tom para dar lugar ao grito; o questionamento é negado através da imposição das que são consideradas "generais" ou as grandes damas da batalha. E, como generais, vigiam seus soldados. A vigilância ao feminino é apavorante: as cores são questionadas, bem como adornos, ou alterações estéticas. O apelo ao estético ou o ideal do embelezamento (um dos traços da cultura pós-moderna) cede lugar à “beleza interior”. Entretanto, quando esta se expressa mostra a pobreza do solo emocional no qual se assenta. Parece haver um estereótipo a que essa líder deve obedecer: saias largas, longas e escuras, blusas de mangas compridas de cores sóbrias, cabelos compridos e amarrados em um coque ou muito curtos, sapatos baixos, olhar severo, compondo corpos excessivos: na gordura ou na magreza.
O masoquismo feminino é considerado expressão da feminilidade, uma vez que a natureza feminina tenderia para o sacrifício, sofrimento, subordinação ao homem que ama. Por isso, nos discursos, as líderes repetem com veemência, o trecho bíblico de “negar a si mesmo”, bem como ênfases em práticas ascéticas, como o jejum (não restrito ao alimento, mas estendido a aspectos como maquiagem, compras). A liderança é vista como portadora de uma verdade inquestionável e, com voz ditatorial ou traços histéricos em seu discurso, controla o corpo e o prazer femininos.
A outra possibilidade do ser feminino se expressar, segundo Sílvia Nunes (2000) é a histeria. Ela a define da seguinte forma: “A histeria é a mulher que renega uma posição passiva de renúncia e submissão, procurando preservar sua potência que se exprime como um protesto contra essa dominação” (NUNES, 2000:109).
A histérica é a mulher perigosa, porque age como um outro, porque não se cala, porque se deixa ver e demanda visão, que questiona a submissão e que se recusa a emudecer. Esta é a demonizada nos meios pentecostais. É ela quem deve ser dominada e tornada masoquista. É ela quem deve aprender que seu papel se resume a cuidar dos outros e não pensar em si. É ela quem deve ser ensinada a se calar e se controlar, pois o Mal “anda ao derredor e busca devorar”.
Além disso, ao reafirmarem a mulher masoquista, as líderes possibilitam a neutralização do temor masculino diante da mulher enigmática, ou da mulher que tem voz e que se expressa. Como a mulher masoquista sacrifica seu desejo, é ela o ideal para o avanço da igreja, ou é ela o emblema da mulher cristã. Muitas dessas líderes, inclusive, se tornam o protótipo de tal mulher, negando-se-lhe expressões de afetividade e de seus desejos.
Ao demonizarem a histérica, que tem valores diferentes dos esperados, as líderes dos movimentos de batalha espiritual tornam-se tais como ela. Ao imporem seu desejo, ao demandarem atenção, ao exigirem uma escuta a seus argumentos (sintomas), tais líderes não apenas se reafirmam como defensoras do masoquismo feminino, como possibilitam sua sexualidade e expressão. E levantam o questionamento sobre o feminino.
“A sexualidade feminina assume no discurso freudiano a representação de uma força que pode gerar tanto o bem quanto o mal, e a mulher passa a ser vista como o sexo que pode assumir qualquer posição, que pode ser qualquer coisa, vítima ou algoz, terna ou sensual, que deixaria o homem eternamente intrigado e em busca de sua verdadeira essência” (NUNES, 2000:154)
Percebe-se que a negação e a hipervalorização do corpo são duas possibilidades de expressão do feminino nos contextos neopentecostais em que está presente o movimento de batalha espiritual. Luta-se contra o demônio, que insiste em se manifestar na postura feminina. Como apontou Sílvia Nunes (2000), ao feminino cabem as posturas masoquista ou histérica diante do Mal que ameaça. A primeira é a valorizada nos contextos eclesiásticos neopentecostais e a moral que lhe subjaz é encorajada. Por outro lado, a postura histérica, que revelaria a rebelião e o desejo de independência, é não apenas desvalorizada ou condenada, mas também objeto de exorcismo.
Freud pondera que o narcisismo é uma marca feminina. As mulheres buscam, inicialmente, serem amadas, em vez de amar. O masoquismo feminino seria, então, contrário a um traço marcante. Talvez, por isso, nos movimentos de batalha espiritual, ele seja repetido à exaustão. Qualquer traço do feminino que fuja da submissão é considerado influência maligna e o exorcismo é a estratégia para lidar com tal Mal. Afinal, as líderes também têm o feminino diante de si, seus corpos, seu desejo, e, sem a contenção constante e necessária, como lidar com eles? Sem a atribuição de sinais de autonomia a brechas dadas ao demoníaco, como lidar com o feminino?
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[*] Professora da FATE-BH nas áreas de Psicologia e Língua Portuguesa. Doutoranda em Ciências da Religião na PUC-SP.