Religião, Diversidade e Valores Culturais: conceitos teóricos e a educação para a Cidadania

Eliane Moura da Silva[*] []

Resumo

Neste artigo são apresentadas algumas das questões conceituais e teóricas que nortearam a implantação do Ensino Religioso nas escolas públicas de São Paulo. Defendendo o ensino público laico, a diversidade, o multiculturalismo e o pluralismo, o estudo dos fenômenos religiosos foi valorizado como patrimônio cultural e histórico, enfatizando as diversas expressões e crenças definidas como religiosas no campo da História Cultural. Chamando a atenção para os diferentes sentidos e usos de termos que, em determinada situação, geram crenças, ações, instituições, condutas, mitos, ritos. Como atividade pedagógica, o trabalho com a diversidade religiosa se torna elemento central de ação pró-ativa em favor de atitudes de tolerância e respeito às diferenças e compreensão da alteridade.

Abstract

Since Brazil’s public educational system is grounded on the separation between State and Church, courses in religion are a means of preserving the cultural heritage in all its diversity in terms of belief, institution, action, behavior, myths and rites. The author argues that to deal with this plurality within the framework of public education represents a privileged opportunity to foster mutual tolerance and respect for religious differences among the pupils.

Ao elaborar uma proposta teórica conceitual adequada ao projeto de implantação do Ensino Religioso nas escolas públicas do Estado de São Paulo, alguns desafios foram apresentados. Em primeiro lugar, em se tratando de escola pública, havia que garantir a separação entre Estado e religião considerando que aquele não deve patrocinar “ensino de religião”. Numa sociedade democrática essa é uma questão de foro íntimo, de decisão própria. Ensino de religião, entendido como catequese ou pregação apologética de uma determinada expressão religiosa, é um direito de instituições religiosas, mas deve ser realizado em escolas confessionais, seminários ou círculos de estudo e não no âmbito das escolas públicas, não-confessionais. A defesa desse princípio de separação norteou todo o material produzido, bem como as capacitações feitas com os profissionais da rede estadual de ensino (atp’s, diretores e professores).

Como ênfase central do trabalho estabelecemos alguns pressupostos, partindo da noção de diversidade. Somos diversos. Essa verdade fundamental é sempre ameaçada por ações individuais e coletivas de intolerância. Somos diversos historicamente, etnicamente, lingüisticamente e, da mesma forma, somos diversos religiosamente. A diversidade religiosa é profunda. Ela existe entre ateus e religiosos, entre formas distintas de religião (cristãos e budistas, por exemplo), entre ramos religiosos com pontos em comum (como judeus e muçulmanos), entre expressões internas de uma mesma religião (católicos carismáticos e adeptos da Teologia da Libertação) e mesmo entre expressões geográfico-históricas da mesma fé (católicos espanhóis e católicos norte-americanos).

Em nenhum período da história houve uma única religião em todo o mundo, como também nunca foram dominantes as atitudes de tolerância no passado da história das religiões. A associação entre Estado e Igreja é uma dessas formas de intolerância, não deixando, por isso mesmo, uma boa lembrança. A imposição de uma fé como oficial e a conseqüente exclusão das outras (inclusive com perseguições declaradas) deixou seu rastro perverso no passado. No presente, muitos conflitos continuam sendo alimentados a partir de convicções ou sob a justificativa de crença, como vemos no Oriente Médio ou na Irlanda.

Observando tais conflitos, a defesa da absoluta separação entre Estado e Igrejas constitui-se num valor muito importante. Nesse sentido, a defesa feita pelos filósofos iluministas, consagrada nas emendas da Constituição dos EUA e repetida por liberais e muitos pensadores do século XX, conserva sua atualidade e importância: a liberdade de crença deve ser absoluta. Essa liberdade deve incluir, também, a liberdade de não-crença, da expressão de ateísmos, agnosticismos ou da simples indiferença frente aos valores religiosos. Além disso, é importante lembrar que as religiões são parte importante da memória cultural e do desenvolvimento histórico de todas as sociedades. Desse modo, o ensino de religiões (e não de uma religião) na escola não deve ser feito para defesa de uma delas, em detrimento de outras, mas discutindo princípios, valores, diferenças e tendo em vista – sempre - a compreensão do outro.

Ora, o respeito à diversidade é um dos valores mais importantes do exercício da cidadania, como não podemos esquecer. Só nesse respeito absoluto podemos entender que não existem seitas (pois não existem grandes e pequenas religiões), não existe sincretismo (pois não existe uma religião pura de influências de outras) e, acima de tudo, não existe para o historiador ou para o filósofo uma religião melhor do que outra. Cada uma colaborou com uma parte do pensamento religioso; cada uma expressa uma visão de um grupo e cada uma teve e tem seu valor específico, exatamente por serem diferentes.

Ensino de religiões, estudo de diversidades, exercícios de alteridade: estes, sim, podem ser conteúdos trabalhados na escola pública. Da mesma forma que o professor de literatura faz referência a diversas escolas literárias; da mesma forma que o professor de História enfatiza diversos povos, assim o ensino de religiões deve enfatizar diversas expressões religiosas, considerando que as religiões fazem parte da aventura humana.

Definição de Religião

Para estudar a história dos fenômenos religiosos, portanto, é preciso ficar atento aos usos e sentidos dos termos que, em determinada situação, geram crenças, ações, instituições, condutas, mitos, ritos, etc. Além disso, o pensar religioso também pode ser colocado no domínio da História Cultural que tem, na definição básica do historiador Roger Chartier, o objetivo central de identificar a maneira através da qual, em diferentes tempos e lugares, uma determinada realidade social é construída, pensada e lida. Representações do mundo que aspiram à universalidade são determinadas por aqueles que as elaboram e não são neutras, pois impõem, justificam e procuram legitimar projetos, regras, condutas, etc. Dessa forma, uma abordagem teórica preliminar para o estudo das religiões, do pensamento religioso, das formas de religiosidade em geral, é aquela que leva em conta a historicidade dos fenômenos religiosos construídos em variados aspectos e matizados na sua complexidade histórico-cultural.

A maioria das pessoas tem alguma idéia do que seja “religião”. Costuma-se pensar essa definição como crença em Deus, espíritos, seres sobrenaturais, ou na vida após a morte. É possível pensar, ainda, esse conceito como o nome de algumas das grandes religiões mundiais: Cristianismo, Hinduísmo, Budismo ou Islamismo. Embora parte do senso comum sobre o conceito de “religião” aplique-se aos estudos dos fenômenos e sistemas religiosos, eles são insuficientes para estudos científicos.

O próprio termo “religião” originou-se da palavra latina religio, cujo sentido primeiro indicava um conjunto de regras, observâncias, advertências e interdições, sem fazer referência a divindades, rituais, mitos ou quaisquer outros tipos de manifestação que, contemporaneamente, entendemos como religiosas. Assim, o conceito “religião” foi construído histórica e culturalmente no Ocidente adquirindo um sentido ligado à tradição cristã. O vocábulo “religião” - nascido como produto histórico de nossa cultura ocidental e sujeito a alterações ao longo do tempo – não possui um significado original ou absoluto que poderíamos reencontrar. Ao contrário, somos nós, com finalidades científicas, que conferimos sentido ao conceito. Tal conceituação não é arbitrária: deve poder ser aplicada a conjuntos reais de fenômenos históricos suscetíveis de corresponder ao vocábulo “religião”, extraído da linguagem corrente e introduzido como termo técnico.

Por isso, uma definição para uso acadêmico e científico não pode atender a compromissos religiosos específicos, nem ter definições vagas ou ambíguas, como, por exemplo, definir “religião” como “visão de mundo”, o que pressuporia que todas as “visões de mundo” fossem religiosas. Do mesmo modo, se “religião” é definida como “sagrado”, a questão torna-se saber o que é “sagrado” e o seu oposto, o “profano”. Outras definições são muito restritivas: a definição “acreditar em Deus” deixa de fora todos os politeísmos e o Budismo, enquanto a crença numa realidade sobrenatural ou transcendental também não satisfaz, por não ser comum a todas as culturas religiosas.

A definição mais aceita pelos estudiosos, para efeitos de organização e análise, tem sido a seguinte: religião é um sistema comum de crenças e práticas relativas a seres sobre-humanos dentro de universos históricos e culturais específicos.

Aqui, é necessário fazer duas observações: de um lado, é importante ressaltar que, nas línguas de outras civilizações e culturas distintas do Ocidente pós-clássico, não existe um termo para designar “religião” (no caso da tradição hindu, por exemplo); de outro, que todas as culturas conhecidas possuem manifestações que costumamos chamar de “religião”. Isto significa pressupor que pode existir uma religião sem essa conceituação, ou que o nosso conceito de “religião” é válido para determinados conjuntos de fenômenos nas culturas onde aparecem, mas não se distinguem como “religiosos” no interior de outros universos histórico-culturais. Assim, o conceito de “religião” deve levar em conta a variedade dos fenômenos que costumamos chamar de “religiosos”.

Assim sendo, o problema fundamental a ser colocado no estudo dos fenômenos religiosos deve ser o seguinte: Como determinada cultura constrói, historicamente, seus sistemas religiosos, já que para estudar os fenômenos religiosos deve-se estar atento aos usos e sentidos dos termos que, em determinada situação histórica, geram crenças, ações, instituições, livros, condutas, ritos, teologias, etc.

Diversidade Religiosa como parte da Cultura

Estudar os fenômenos e sistemas religiosos como parte da cultura significa apreender um fator identificável da experiência humana, que se apresenta como imagens que passaram através de milhares de pessoas, ao longo de diferentes tradições, algumas modeladas nos santuários, outras nas universidades. Entretanto, muito desse universo permanece inclassificável. Essa constatação, contudo, não deve ser impedimento para pensarmos o tema. Ao contrário, o reconhecimento de que, em termos de religiões, a variedade é, acima de tudo, humana, significa compreender o nosso lugar no panorama religioso, reconhecendo os “outros” menos como competidores, mas sim, verdadeiramente, como companheiros de aventura existencial.

Religiões, religiosidades, experiências religiosas se expressam em linguagem e formas simbólicas. Saber o que foi experimentado, vivido e como isso pode ser compreendido exige a capacidade de identificar coisas, pessoas, acontecimentos, através da nomeação, descrição e interpretação, envolvendo conceitos apropriados e linguagem. Atualmente, os estudos sobre religião e religiosidade valorizam os fenômenos religiosos de forma diversificada. Há o reconhecimento de que as questões religiosas permeiam a vida cotidiana como religiosidade popular, sob formas de espiritualidade que fornecem elementos para construção de identidades, de memórias coletivas, de experiências místicas e correntes culturais e intelectuais que não se restringem ao domínio das igrejas organizadas e institucionais.

Muitos movimentos religiosos procuram repensar os papéis de gênero, as opções sexuais, a participação política engajada, os conflitos em nome da fé, as novas práticas espirituais, as liturgias alternativas e as revisões teológicas, de acordo com as necessidades da modernidade, destacando-se aí o papel das mulheres e das minorias dentro da sociedade e suas expressões culturais. Trata-se, portanto, de privilegiar, como objeto central de pesquisas, correntes de pensamento, movimentos, tendências até então considerados marginais à cultura religiosa “oficial”: movimentos religiosos dos povos indígenas latino-americanos e africanos; religiões orientais; as centenas de igrejas evangélicas, pentecostais, neopentecostais e avivadas; o espiritualismo, a constituição de identidades religiosas nacionais e supranacionais; a “Nova Era”; as religiões afro-brasileiras como a umbanda e o candomblé. Desta forma, impõe-se a necessidade de ampliar os limites, desmontando preconceitos, revendo cronologias e desenvolvendo análises comparativas, numa área de estudos nova e emergente.

Nenhuma tradição religiosa é “total”, nem existe um status de favoritismo de religiões. Conhecer o lugar onde estamos e onde os outros estão em relação à fé e às crenças leva-nos a desenvolver um sentido de proporção no amplo campo das religiões, religiosidades, experiências religiosas - onde todos devem ser ouvidos e respeitados. A diversidade se faz riqueza e deve conduzir à compreensão, respeito, admiração e atitudes pacificadoras.

Religião sempre foi um assunto de vida e morte, não somente em termos de suas próprias funções (batismos e funerais), mas também um assunto existencial decisivo para milhões de pessoas. O espaço crescente na mídia dos assuntos envolvendo religião não tem sido acompanhado pelo conhecimento histórico e cultural sobre o tema. Assim, com freqüência, julgamentos apressados e preconceituosos são feitos, baseados em pouco ou nenhum conhecimento. Por isso, é necessário construir e divulgar informações objetivas e críticas de forma a garantir um conhecimento que conduza à compreensão e respeito.

Necessitamos saber não apenas quantos são os muçulmanos ou cristãos no mundo, mas quais as diferentes formas e maneiras possíveis de ser cristão ou muçulmano, as diferentes crenças e grupos existentes como possibilidades de experiências religiosas que conferem sentido à vida e à morte. Em quase todas as religiões as experiências religiosas transcendentais ou divinas estão relacionadas diretamente ao sentido vida-morte, e sobre isso podem ser encontradas definições, tanto nos monoteísmos quanto nos politeísmos, procurando combater a desesperança e ocupando um grande espaço na realidade cotidiana de nosso tempo. Qual é o sentido da vida? De onde viemos? Para onde vamos depois da morte? Questões ainda e sempre fundamentais, para as quais livros foram escritos, esculturas e pinturas produzidas, poesias e músicas compostas que, nos últimos cinco mil anos, formaram um patrimônio cultural que pertence a todos e à história de cada um.

Pluralismo, diversidade e tolerância como ação afirmativa

Nos últimos 200 anos falou-se muito sobre a crise e da decadência das religiões formais. No século XIX, tanto o movimento científico como grupos socialistas falaram de uma agonia das expressões religiosas formais. Um coro de filósofos, cientistas e políticos apregoava, no alvorecer do século XX, que não haveria espaço para religiões formais ou para Deus no mundo do avanço científico que se anunciava. As vozes variavam: ora afirmavam a morte de Deus (Nietzsche) ora tratavam do colapso de uma instituição (como a Igreja Católica). Porém, para surpresa de muitos, os séculos XX e XXI foram marcados por um considerável ressurgimento de crenças e práticas religiosas em todo o mundo. Igrejas Católica e Protestantes, Ortodoxos nos países remanescentes da antiga URSS, mesquitas na Indonésia, templos na Índia, marcam este florescimento das religiões. É um desafio compreender, de forma adequada, o papel que crenças e práticas religiosas desempenham na construção de subjetividades, sociedades e culturas contemporâneas.

Os grupos religiosos estão presentes na mídia, em canais de TV, rádios e jornais. Muitas editoras e gravadoras têm, no público religioso seu ponto forte. As bancadas religiosas nos Congressos do Ocidente ou governos teocráticos em outras regiões do globo levam a um novo tipo de dúvida: haverá espaço para o pensamento não-religioso no futuro? Os ateus e agnósticos, as explicações materialistas, o cientificismo e outras formas terão espaço de expressão? Se no XIX alguns religiosos temeram pelo futuro das instituições, seria válido hoje que os não religiosos também temessem por seu futuro?

Para consolo dos que condenam as formas religiosas oficiais ou pessoais, o avanço visível do pensamento religioso está sendo acompanhado de muitos atritos entre diversas expressões religiosas e dentro mesmo de igrejas formais. É inevitável pensar, neste momento, na questão central da tolerância. Se “religião” não tem uma identidade essencial única, não existiu sempre nem é um fenômeno universal, temos que perguntar o que ela é e como pode ser estudada.

Os trabalhos mais recentes em diferentes áreas de pesquisa defendem a posição de que religião é um fenômeno histórico, que surge em circunstâncias intelectuais e culturais particulares. O fenômeno religioso constitui-se por práticas discursivas ocidentais, especificamente definidas para estudos de caráter científico e acadêmico.

Embora possamos estudar as funções da religião de forma histórica e crítica, e até abordar de forma hermenêutica os mitos, símbolos e comportamentos sem grandes contradições entre teologia e estudos científicos, tal convivência torna-se tensa e contraditória quando tratamos da questão das origens e causas da religião. Para muitas pessoas que permanecem pessoalmente comprometidas com crenças e práticas religiosas, esses temas provocam grandes resistências.

Embora profundamente influenciadas pelo Iluminismo e pelo Racionalismo do século XVIII, foi durante o século XIX que análises históricas e comparadas de diferentes tradições religiosas proliferaram e se tornaram mais sofisticadas. O tema das origens e causas das religiões foi analisado por diferentes estudiosos e pensadores: Strauss, Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud, Weber e Durkhein, entre outros. No final do século XIX e nas duas primeiras décadas do XX, as grandes linhas mestras das abordagens psicológicas, sociológicas e antropológicas dos estudos da religião tinham sido articuladas.

Contudo, o contexto institucional que permitiu o desenvolvimento desses estudos fora dos centros teológicos de tradição cristã ocidentais (os seminários bíblicos e teológicos das diferentes confissões protestantes ou católicas, principalmente na Europa e Estados Unidos) só surgiu no anos cinqüenta do século XX. Os movimentos culturais e sociais da década de sessenta e a efervescência universitária subverteram e impulsionaram os estudos de religião. O surgimento da contracultura, da luta pelos direitos civis das minorias e de uma nova sensibilidade no trato das questões multiculturais superando as fronteiras nacionais e religiosas, a busca pelo respeito às diferenças, a defesa intransigente da investigação intelectual e da liberdade de opção em todos os aspectos da vida (religiosos, sexuais, econômicos, etc.) levaram a uma prevalência das preocupações para a relação, por exemplo, entre ética, liberdade e tolerância no que se refere às livres opções religiosas. A diferença entre “ensinar religião” e “ensinar sobre religiões” mudou a maneira de abordar essa polêmica questão, sem evitar o surgimento, crítico e propositivo, de novas questões.

Quando reconhecemos o papel salutar da diversidade e da diferença, a necessidade de falar em respeito e tolerância diante da integridade e viabilidade de outras tradições religiosas e culturais, estamos herdando o florescimento intelectual da contracultura dos anos sessenta. A valorização do pluralismo, do acesso ao conhecimento de diferentes teorias, métodos, experiências e pontos de vista transformou-se em base do processo educacional.

Educar é ensinar a compreender, experimentar e respeitar as diferenças. O ensino e o estudo responsável sobre religião devem ser multidisciplinares e multiculturais, sem valorizar, por exemplo, certos padrões que a cultura ocidental e burguesa coloca como universais e “superiores”. É preciso deixar claro que esses padrões ideais de civilidade repousam sobre determinadas condições na construção de diferenças sociais e culturais que encontram sua sustentação num sistema de poder responsável por determinadas lógicas hierárquicas extremamente segregadoras.

Evidentemente, com a expansão contínua dos temas e perspectivas do estudo da religião, a questão da diversidade é inevitável. Não é mais suficiente pensar sobre diferentes religiões; é necessário considerar como pensamos as diferentes formas de religião. É necessário abandonar a pretensão de chegar a uma teoria ou metodologia final ou absoluta. O reconhecimento de que os estudos atuais sobre religião devem ser multiculturais e multidisciplinares leva à necessidade de construir várias estratégias interpretativas. O reconhecimento crescente da importância de diferentes tradições religiosas trouxe desafios teóricos e metodológicos, e também promoveu o surgimento de questões comparativas bastante complexas.

A variedade de abordagens e a pluralidade das tradições religiosas não só enriqueceram os estudos e investigações das religiões como são um desafio a uma compreensão mais adequada da história e do significado contemporâneo das religiões. Estabelecer um diálogo entre o “familiar” e o “estranho” representa um esforço de trazer antigas questões para novos caminhos, novos objetos e novas abordagens, promovendo um diálogo entre os estudos de religião com a História, a Antropologia, a Sociologia, a Política e a Arte. Todo esse trabalho intelectual deve, contudo, levar em conta que a especificidade histórica e a relatividade cultural significam que vários termos, conceitos, definições e estruturas cognitivas não são universalmente aplicadas. Por exemplo, em algumas tradições religiosos termos como “religião” ou “Deus” podem não existir. Toda forma de conhecimento passível de interpretação, no nosso caso o estudo das religiões, é sempre incompleto e sujeito a novas formulações.

Todos os argumentos sobre a tolerância religiosa podem ser distribuídos ao longo de um grande espectro que vai do puro pragmatismo aos princípios morais e éticos. Podem variar da necessidade de proteção de interesses muito específicos de cada pequeno grupo até a análise mais elaborada das verdades religiosas, das questões de obrigação moral. Mas é a questão da diversidade, da pluralidade que fará a grande diferença.

Trata-se de reconhecer a diferença como elemento-chave da paz e do progresso humanos, de celebrar, aprovar e reafirmar a diferença como um valor básico e essencial. Evidentemente, essa posição traz seus problemas. As diferenças que encontramos em nossa sociedade pluralista são tão profundas e grandes, e estão relacionadas a assuntos básicos e essenciais sobre o que é uma vida com sentido e qualidade, que não é possível imaginar consenso sobre vários temas incluindo as questões de ética e moral, por exemplo.

É possível reconhecer o valor de cada ser humano e a importância de garantir os direitos humanos para todos. Isto inclui a liberdade individual de seguir suas próprias crenças e caminho espiritual. Valorizar os direitos de outras pessoas a crenças variadas e diferentes é um passo fundamental para apreciar a diversidade religiosa. Na medida em que aprofundamos o estudo das religiões, podemos aumentar a compreensão das crenças individuais e romper as barreiras dos preconceitos e exclusivismo, atitudes que constroem um mundo muito perigos para se viver.

Tolerância religiosa não significa indiferença. A tolerância envolve ação e participação. Em primeiro lugar, aceitar que os seguidores de diferentes religiões consideram suas crenças como verdadeiras e, talvez, a única verdade que admitem. Em segundo lugar, permitindo que os outros tenham crenças diferentes e que, livremente, sem coerção de qualquer espécie (familiar, social, educacional, etc.) possam mudar de religião, denominação ou crença. Em terceiro, trabalhar em prol da garantia de livre prática religiosa, dentro dos limites da razão, cultura e sociedade. Um outro conjunto de ações afirmativas significa recusar-se a discriminar emprego, alojamento, função social, procurando respeitar e acomodar as necessidades religiosas que envolvam dias festivos, datas sagradas, rituais significativos.

A tolerância religiosa é parte essencial da política de direitos humanos, da cidadania e ética democrática. Contudo, devemos agir de foram enérgica e crítica quando líderes ou seguidores de religiões promovem o ódio e a discriminação, restringindo direitos humanos fundamentais e atacando seguidores de outras religiões, minorias sexuais ou étnicas, mulheres, crianças, deficientes. Da mesma forma, devemos ser críticos e ativos contra crenças que promovem formas variadas de abusos físicos, psicológicos ou materiais sobre seus seguidores como prova de fé.

A Força das Mudanças:

Como fenômeno social, cultural e histórico, as tradições, instituições e movimentos religiosos estão em constante mudança. Esse é o mais forte argumento a favor da tolerância. Da mesma forma que um consenso é impossível, a consciência da mudança constante nos leva a refletir sobre a necessidade de compreensão dos fenômenos religiosos no tempo e espaço, em suma, na sua historicidade.

Em primeiro lugar, não há nada de novo em novas religiões. Em alguns lugares e, em momentos específicos, tornam-se visíveis e conhecidas. Em alguns momentos históricos e determinados lugares, quando pessoas parecem particularmente sensíveis a novas idéias e esperanças, ondas de novos movimentos ocorrem. Foi assim no período romano tardio, quando centenas de movimentos religiosos emergiram junto com o Cristianismo. Na Europa já cristianizada, sucessivas ondas de novos movimentos aconteceram nos séculos IV, XII e XVII. Nos Estados Unidos, durante a segunda metade do século XIX, período de guerra, imigração, descoberta do ouro, da expansão para o Oeste, o surgimento de vários movimentos promoveu o que os historiadores das religiões chamaram de “O Grande Despertar”. Grupos se organizaram em torno de esperanças variadas, da Salvação pela santificação e Batismo no Espírito até a iminência do Apocalipse: Testemunhas de Jeová, Adventistas de Sétimo Dia, Ciência Cristã, etc. surgiram nessa esteira de turbulência religiosa. No final do século XIX, sob o impacto da laicização da sociedade, da redescoberta das religiões orientais, movimentos espiritualistas floresceram: Teosofia, Espiritismo, Antroposofia. Estima-se que, na África, nos últimos cem anos, 10.000 novas religiões apareceram.

Quase todos estes movimentos surgiram exigindo rompimentos radicais com estruturas implantadas, fossem elas sociais, religiosas ou familiares. Jesus, em algumas passagens dos Evangelhos, é lembrado por ter dito que seria um erro considerar que tinha vindo para trazer paz ao mundo. Ao contrário, tinha vindo com uma espada. Todos os movimentos radicais querem proteger seus seguidores do mundo, negar e rejeitar antigas verdades e práticas, procurando estabelecer o novo ou restabelecer uma antiga pureza perdida pelos homens e mulheres ao longo do tempo.

Essa tendência de negação do mundo e da ordem vigente é simultaneamente, acompanhada pela negação do mundo e afastamento da sociedade. Mas, também, a sociedade tende a reagir e atacar as dissidências: torturas, prisão, intimidação, discriminação, fazem parte desse caminho de mão dupla. Os movimentos que sobrevivem e transformam-se em “velhas e tradicionais” religiões adaptam-se às contingências históricas, sociais e culturais, comprometendo em grande parte o fervor original em prol da pureza perdida. Tornando-se statu quo, definem e impõem sua sabedoria e verdade “únicas”, para o melhor ou pior, afetando em detalhes, a vida, corpos e mentes de milhões de pessoas seja elas consideradas seguidores, heréticos, infiéis ou sectários.

Quando um ritual, simbolismo e estrutura institucional são radicalmente modificados, o resultado será um novo movimento religioso. Muitos movimentos feministas ocidentais já alteraram e romperam com pressupostos básicos da tradição judaico-cristã. Trata-se, não somente, de questionar ou condenar a exclusão que tais religiões promovem ao gênero feminino, impedindo a ordenação, inserção institucional plena ou o reforço aos tradicionais papéis de gênero às mulheres como mães, esposas ou filhas: são as próprias concepções teológicas masculinizadas (Deus-Pai, divindades masculinas) que serão questionadas pelas mulheres em busca de novos modelos simbólicos femininos, bem como de espaços de liderança a participação integral em toda a dimensão de sua cultura religiosa.

Estes temas dizem respeito a homens e mulheres que desejam construir uma sociedade mais justa e igualitária, alterando determinados padrões históricos que conduziram à discriminações baseadas em critérios de etnia, gênero, classe e imagem corporal que geraram toda sorte de desigualdades. O pensar religião, no momento em que vivemos, tem que estar articulado com reflexões críticas sobre esquemas geradores de discriminação ou exclusão, inclusive os religiosos. A ampliação das temáticas de estudo, metodologias e abordagens das religiões, religiosidades, espiritualidades produz um momento privilegiado em direção à tolerância e compreensão das alteridades. As questões de julgamento sempre conduzem à problemática questão do “eu tenho razão”. Criamos dessa forma, uma consciência circular das coisas, pessoas e situações, todas elas amarradas entre si. Buscamos opiniões de terceiros que confirmem nossas crenças e demonstrem que as dos outros são insustentáveis e, conseqüentemente, ruins. A sensação de estarmos certos só pode valer como opinião, nunca como certeza ou verdade absoluta. É preciso estar alerta para o fato de que, nas questões de julgamento, estamos submetido a interesses internos que nos justificam antes que possamos ser imparciais.

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Notas

[*] Professora Doutora no Departamento de História/IFCH/UNICAMP.