Catolicismo - A Configuração da Memória

Danièle Hervieu-Léger[*] []
tradução por
Maria Ruth de Souza Alves

Toda religião implica em uma mobilização específica da memória coletiva. Nas sociedades tradicionais, onde o universo simbólico religioso é totalmente estruturado por um mito de origem, contemplando ao mesmo tempo a origem do mundo e a origem do grupo, a memória coletiva é determinada: ela se encontra embutida realmente nas estruturas, na organização, na linguagem, nas práticas cotidianas das sociedades totalmente governadas pela tradição. No caso das sociedades diferenciadas, onde prevalecem as religiões fundadas que provocam a emergência de comunidade de fé, sendo elas mesmas consideradas como tal, a memória religiosa coletiva torna-se o desafio de uma construção indefinidamente recomeçada, como se o passado inaugurado pelo acontecimento histórico da fundação pudesse ser assumido em todos os momentos como uma totalidade de significados. Na medida em que se aceita a suposição de que todo o significado da experiência do presente possa estar contida, de maneira pelo menos potencial, no acontecimento fundado, o passado fica sendo aceito simbolicamente como um todo imutável e situado "fora do tempo", isto é, fora da história. Ligado constantemente a esse passado, o grupo religioso define-se objetiva e subjetivamente como uma "descendência de fé". Isto quer dizer que o grupo se organiza e se reproduz totalmente a partir do trabalho da memória que alimenta essa auto-definição. Na base de toda crença religiosa existe efetivamente a crença na continuidade da descendência de fé.

Essa continuidade transcende a história. Ela é atestada e manifestada no ato essencialmente religioso que consiste em fazer memória desse passado (anamnese) que dá sentido ao presente e contém o futuro. Toda memória coletiva - conforme Maurice Halbwachs enfatiza longamente[1] - tem um caráter essencialmente normativo. A normatividade específica da memória religiosa inscreve-se na estrutura do grupo religioso. Ela toma corpo, na maioria das vezes, na relação desigual que liga os "simples fiéis" - usuários ordinários e dependentes dessa memória - aos produtores organizados da memória coletiva.

Essa memória autorizada é estabelecida e transmitida de diferentes maneiras. Ela se auto-legitima conforme o tipo de sociabilidade religiosa própria do grupo considerado e conforme o tipo de dominação nele prevalecente: se considerarmos as categorias clássicas de Troesltsch, podemos afirmar que a gestão da memória coletiva não é a mesma numa igreja, numa seita e numa comunidade mística. A mobilização controlada da memória por um corpo de padres ordenados por uma instituição religiosa difere da mobilização carismática da memória anunciada por um profeta. Porém, nos dois casos, o que constitui o núcleo do poder religioso, é a capacidade de oferecer a "memória verdadeira" do grupo.

Um dos maiores problemas para um sociólogo religioso contemporâneo é verificar se essa normalização institucional da memória coletiva ainda poderá funcionar numa sociedade onde a aceleração das mudanças varre aquilo que possa subsistir da memória integrada, organizadora e todo-poderosa, espontaneamente atualizada da qual as sociedades ditas primitivas ou arcaicas representaram o modelo e cujo segredo se perdeu com elas, "conforme Pierre Nora"[2]. No fundo, a crise desta memória social total está ligada à emergência da modernidade e acompanha seu desenvolvimento histórico. A afirmação do sujeito autônomo, o avanço da racionalização que dissipa os "cosmos sagrados". O processo de diferenciação das instituições implica no fim das sociedades-memória. O fato de podermos diferenciar uma memória familiar, uma memória religiosa, uma memória de classe, etc. já indica que saímos do "universo puro" da tradição. A trajetória da secularização e a extinção da memória total das sociedades sem "história" nem "passado" coincide inteiramente: ao mesmo tempo em que assinala o avanço da racionalização, o deslocamento das estruturas de plausibilidade da religião do mundo moderno que acompanha as fases sucessivas de pulverização da memória coletiva.

A diferenciação de um campo religioso especializado, a pluralização progressiva das instituições, comunidades e sistemas de pensamento religioso corresponde (no sentido mais completo do termo) ao curso histórico da diferenciação da memória social total, numa pluralidade de "meios de memória" especializados. A industrialização, a intensificação de intercâmbios, onde as pesquisas empíricas estabelecem por toda parte o refluxo da influência social da religião, ao mesmo tempo, no princípio da desmontagem das "coletividades-memória", a respeito das quais Pierre Nora[3] sublinha uma atual degringolada na escala planetária, sob a pressão da "mundialização, da democratização, da massificação e da medialização". As sociedades mais avançadas são aquelas onde parecem nem mais existir esse "continuum minimum" da memória, essas "correntes de pensamento" nas quais Halbwachs detectava, de forma pálida e diluída, o prolongamento da memória viva e concreta de grupos humanos múltiplos, mas que ele considerava ainda suscetíveis de uma nova atualização em função de dados do presente. A decomposição da memória coletiva das sociedades modernas resulta, efetivamente, da conjugação de duas tendências que são apenas aparentemente contraditórias.

A primeira é uma tendência à "dilatação e á homogeneização" da memória, resultando ela mesma do embaçar daqueles particularismos sociais que se concentravam na memória coletiva e em grupos concretos e diferenciados. Para Maurice Halbwachs, a chegada do capitalismo e da técnica é que provocou, ao mesmo tempo, o alinhamento progressivo de todas as esferas da vida social sobre a esfera produtiva. Esta última suscita somente "memórias técnicas" funcionalizadas e neutras: no final de seu processo "funcionalizante", a memória das sociedades modernas apresenta-se como uma memória de superfície e uma memória achatada, cuja capacidade e criatividade parece ter se dissolvido[4]. Essa perda de profundidade da memória coletiva, que Halbwachs vinculava ao avanço da economia industrial moderna, é muito mais sensível no universo das imagens que caracteriza as sociedades onde foram impostos os meios mais sofisticados de comunicação: a superabundância de informações disponíveis em todos os momentos tende a fazer desaparecer as continuidades significativas que tornam essa informação inteligível. Em virtude da imagem, cada acontecimento que aparece na face da Terra é apresentado instantaneamente a todos e anula, ao mesmo tempo, tudo aquilo que o precedeu imediatamente: sob os nossos olhos de telespectadores saturados de imagens, uma revolução expulsa uma guerra, uma catástrofe aérea e um terremoto anulam um golpe de Estado. Mas este imediatismo da comunicação "pontua" o acontecimento e faz desaparecer um relacionamento mais próximo com a narração.

Esse processo de homogeneização achatador da memória coletiva é também responsável por tornar possível o desenvolvimento da segunda tendência, a saber, a "fragmentação do infinito", da memória dos indivíduos e dos grupos. Nas sociedades modernas cada indivíduo pertence a uma pluralidade de grupos: a dissociação funcional de sua experiência pessoal veda seu acesso a uma memória unificada, que nenhum grupo tem possibilidade de construir, fechado como está em sua esfera de especialização.

A fragmentação moderna do espaço, do tempo e das instituições implica na fragmentação da lembrança que a rapidez das mudanças culturais e sociais destrói quase que no mesmo momento em que são produzidas.

A interrogação que obcecava a reflexão de Maurice Halbwachs era a seguinte: numa sociedade que somente pode existir quando entre os indivíduos e grupos que a compõem há uma unidade suficiente de vistas, existe possibilidade de reconstituir essa unidade mesmo depois da fragmentação de sua memória coletiva? Essa questão do vínculo social é evidentemente subjacente à interrogação sobre o futuro da religião na modernidade. A questão da secularização apresenta-se, aqui, sob uma nova forma: da possibilidade e da plausibilidade de que, nesse contexto de imediatismo e de pulverização, o grupo possa reconhecer-se como pertencente a uma "descendência de fé" que ele precise prolongar no futuro. Levando em conta que a representação individual e coletiva de descendência não mais se inscreve na evidência "natural" de uma continuidade inscrita no espaço e no tempo, vivida a cada dia na família, no trabalho, na comunidade de vizinhos, no grupo confessional, etc., na identificação eminentemente religiosa para a continuidade de uma tradição que não mais procede do engajamento pessoal de indivíduos que se reconhecem mutuamente como parte de uma comunidade de fato e de espírito, que transcende o imediatismo do presente. Ser religioso na modernidade, não é tanto ser engendrado, mas também estar engendrado[5]. Esse remanejamento fundamental da relação com a tradição, que caracteriza a religiosidade moderna (descrita aqui em termos excessivamente gerais, de tendência ideal-típica), é amplamente confirmada pelos trabalhos empíricos que colocam em evidência os processos de invenção, de reparos e de manipulação dos dispositivos do sentido suscetíveis de "fazer tradição", mesmo dentro de religiões históricas[6]. É bem verdade que essa operação de recomposição individual e comunitária da religião prescrita pelas instituições religiosas não acontece de maneira inteiramente ilimitada e sem controle. Roland Campiche mostra bem (no caso suíço) que a História e as determinações sócio-culturais próprias a um ou outro contexto particular cerceiam o universo do pensável e do imaginável dentro do qual essas recomposições se efetuam[7].

Porém, sejam quais forem os limites de fato dos remendos colocados na crença, essa reorientação da relação com a tradição não coloca em questão apenas o fato de uma tradição particular pretender o monopólio do significado. Afeta o próprio princípio da instituição do religioso, através da instituição da crença. O que está em questão hoje de forma tendenciosa, mas que se pode até considerar irreversível, é a possibilidade de que seja imposto socialmente um disposto autoritário que, assumindo a postura de garantia da verdade de uma crença qualquer, seja criado para controlar ao mesmo tempo as enunciações (fazendo a triagem dos locutores aceitos) e os conceitos enunciados (selecionando, homogeneizando e hierarquizando os conteúdos da crença).

Tendo como razão de ser a preservação e a transmissão de uma tradição, como é que as instituições religiosas poderão rearticular seu próprio dispositivo de autoridade-essencial à perenidade da descendência da fé, visto que essa tradição é considerada, inclusive pelos fiéis, não como "depósito sagrado", mas como patrimônio ético-cultural, como um capital de memória e como uma reserva de sinais à disposição do indivíduo? Sejam quais forem as concepções teológicas de autoridade religiosa que adotem, todas as instituições religiosas estão enfrentando esse problema. Em todo caso, o problema que todos enfrentam não é, primeiramente, a desvalorização cultural da herança simbólica que elas guardam: sabemos que neste mundo de incertezas essa herança pode revestir-se de um singular poder de atração. O problema é uma oposição entre a "memória verdadeira" e os fiéis que reclamam uma verdade subjetiva própria de sua trajetória na crença[8].

O caso de Catolicismo: a produção institucional da "descendência de fé".

Essa crise institucional do religioso tem, evidentemente, uma amplitude e uma gravidade particulares para uma religião onde a autoridade da tradição está formalizada de maneira expressa, sob o comando de um magistério que é reconhecido como o poder exclusivo para controlar a prática da fidelidade de crença e sua observância. O Catolicismo romano corresponde por excelência a esse "modelo institucional ritualista", identificado por Jean-Paul Wilaime como um dos três modelos ideal-típicos da normatização das instituições religiosas[9].

Ameaçada diretamente em sua estrutura hierárquica por dois fenômenos correlatos, que são a proliferação dos fenômenos neocomunitários em seu próprio seio e o processo da individualização da fé que solapa os dispositivos institucionais da normatização do acreditável, a instituição católica foi levada a reagir em massa contra essa ameaça pela reafirmação do magistério romano e engajou-se em operações de normatização das referências oferecidas, não apenas aos fiéis, mas também a toda a humanidade. Esta orientação mostra-se claramente na publicação recente de um "catecismo universal", cuja ambição não é somente reafirmar em linguagem unificada o conjunto das verdades da fé, mas também delimitar, de modo tão completo quanto possível, o espaço dos comportamentos admissíveis em todos os domínios da vida dos fiéis e dos homens em geral: num universo incerto, do qual ela sublinha incansavelmente os aspectos psicológicos e socialmente destrutivos, a Igreja esforça-se em apresentar o recurso de um dispositivo estável e explícito de referências firmes. A maior contradição em que ela se coloca é que essa oferta de sentido não é aceitável em um universo onde prevalecem maciçamente os direitos da subjetividade individual, na medida em que ela estabelece seu discurso como "deveres" impostos aos fiéis. Assim sendo, a Igreja vê-se obrigada a compensar a perda de autoridade de seu próprio discurso rotulando-o com um caráter "profético": é o deslocamento de seu propósito em relação ao universo quanto aos valores daqueles aos quais ela se dirige e que supostamente são "testemunhas da verdade". Mas essa recarga "profética" do discurso normativo só funciona até o ponto em que se mostra como força de imposição social e apenas dentro do círculo cada vez mais restrito dos fiéis para os quais o discurso eclesiástico ainda não deixou de ser norma de vida. Quando atinge o ponto de ruptura (por exemplo, no caso dos propósitos da Igreja em matéria de contracepção, relações sexuais pré-conjugais, ou recurso a preservativos em face da epidemia de Aids), somente resta aos pastores reiterar o discurso do interdito e/ou como fez o presidente da Conferência dos Bispos da França na última Assembléia episcopal ao fazer o questionamento: "o que poderíamos fazer para reduzir o fosso que existe entre a Igreja e a sociedade civil?"[10]

Repetimos: o problema que atinge o Catolicismo causado pela crise estrutural da instituição do religioso não está ligado primordialmente à estrutura da autoridade e à maneira de gestão particular da Igreja romana.

Concerne, acima de tudo (e, neste sentido, vale para todas as "grandes religiões"), à possibilidade de que o "capital de memória" que constitui cada uma das "grandes religiões" possa continuar a construir tradição "na sociedade moderna, ou seja, que possa representar a continuidade de uma grande descendência de fé, transcendendo as diferentes comunidades onde esta descendência está atualizada de maneira plural no tempo e no espaço. A desqualificação da "grande memória" sobre a qual as instituições religiosas fundaram historicamente sua legitimidade resulta da dupla tendência para uniformização e atomização que caracteriza as sociedades modernas. Ela alimenta e, ao mesmo tempo, é decorrente de um duplo processo de homogeneização ética das diferentes tradições, progressivamente confundidas na confirmação de diferentes tradições de certo número de valores "universais" de um lado e da proliferação de "pequenas memórias" comunitárias onde se concentrem as aspirações de identidade reprimidas por essa cultura moderna em que o homogêneo é considerado como universal. Nessa situação, todas as instituições religiosas mobilizam os recursos de que dispõem no sentido de buscar os benefícios simbólicos possíveis dentro da contradição em que se encontram inevitavelmente presas. Para isso, esforçam-se em buscar um ecumenismo de valores que coloque em evidência a proximidade de todos os crentes, nesse universo cultural marcado pela indiferença ao discurso religioso instituído e a diferença comunitária suscetível de analisar para suas instituições as demandas de identidade que correspondam ás incertezas do presente. Tal jogo é extremamente arriscado, na medida em que qualquer insistência excessiva numa das duas dimensões pode alienar imediatamente aquela instituição os seus fiéis que se reconheçam preferencialmente na outra dimensão. O problema de todas as confissões religiosas é o dever de levar em conta, no mesmo nível, tanto as perspectivas dos fiéis que preferem mais a mensagem que a instituição, como também aqueles que privilegiam a pertença a uma comunidade em vez de um conjunto de valores. A melhor maneira de amenizar o risco (particularmente o risco de uma explosão de seitas, que é alimento para esta situação) consiste em deixar, na medida do possível, "flutuar os sinais" e deixar que funcione o mais livremente possível o jogo das transações entre as diferentes tendências em tensão umas com as outras. Para enfrentar o perigo de deslocamento interno e ao mesmo tempo defender-se da concorrência externa neste regime de disseminação generalizada do religioso, há dois registros que favorecem particularmente uma política para evitar conflitos: a mobilização emocional de uma lado e a racionalização cultural do outro. A mobilização cultural permite "desdramatizar" os conflitos, fazendo com que apareçam como expressão valorizada de uma diversidade de sensibilidades e culturas e, dentro desse contexto, a instituição se coloca como mediadora em face da cultura moderna. Nos dois casos, a instituição coloca-se nas duas fronteiras onde se representa possivelmente o "abandono da religião" por aqueles que considera como destacáveis: expressão de uma crença sem referência necessária à tradição, no registro da emoção; referência de uma tradição que não implica necessariamente crer, no registro da racionalização cultural. E é no cruzamento dessas duas dimensões que ela se esforça em reconstituir o "efeito de descendência" que deixou de estar inscrito "naturalmente" na continuidade das gerações.

Remodelar a memória católica: a ambição do "papa peregrino"

Entre as manifestações mais significativas desenvolvidas no meio do Catolicismo para detonar "da cúpula" a consciência dos crentes, precisamos sem dúvida colocar em primeiro lugar as viagens efetuadas por João Paulo II pelo mundo.

Saindo do Vaticano para ir até o "território" das Igrejas locais, João Paulo II reconhece de maneira explícita a diversidade do mundo católico, a variante das situações comunitárias locais, a disparidade das configurações eclesiásticas nacionais. Manifesta ao mesmo tempo que considera as tensões surgidas no funcionamento do sistema romano, a valorização das diferenças (mais nova que a própria diversidade): não é mais suficiente que o papa tome conhecimento pelos serviços do Vaticano sobre as igrejas locais. É preciso que ele mostre, através de sua presença no local, o apreço positivo que dedica a essas especificidades, testemunhos da riqueza do gênio católico. Essa apologia romana da diferença é certamente uma maneira de fazer da necessidade uma virtude: apesar de não ser um fato novo, a diversidade das igrejas locais, devida à mídia, é um acontecimento público. Tendo alcançado possibilidades graças a uma escalada da massa, a consciência local das igrejas beneficiou-se da comparação com o que acontece ao seu redor. O desenvolvimento dessa consciência das identidades locais na Igreja traz, evidentemente, problemas para o funcionamento centralizado do aparelho romano e torna-se um obstáculo para a política de homogeneização que é a modalidade burocrática do "ministério da unidade". Porém, em sentido inverso, o estímulo à expressão dessas identidades religioso-culturais pode constituir um meio de luta contra a atomização dos crentes, nas sociedades onde a religião tornou-se matéria de opção e assunto privado, como é o caso no Ocidente; também nas sociedades onde a exacerbação da concorrência entre os múltiplos "empresários" religiosos desafia o domínio histórico da Igreja romana, como nas Américas Central e do Sul, por exemplo. A valorização das igrejas locais pelo papa e a afirmação reiterada do lugar essencial que elas ocupam no patrimônio coletivo da Igreja, e também nas sociedades onde agem, são modos de ação para que essas igrejas funcionem como uma barreira frente ao processo da disseminação das outras crenças. Reconhecendo in loco a realidade das culturas católicas locais, contra as quais há um forte embate da visão unificadora romana, o chefe da Igreja Católica legitima, até certo ponto, a pluralidade cultural do Catolicismo. Mas faz isso mais para usar essa pluralidade como defesa contra a pulverização que é certamente mais ameaçadora para a instituição. No entanto, para que essa visão unificadora de segundo grau tenha alcance de sucesso, é preciso que a "cultura católica local" não seja uma casca oca, que não tenha sido esvaziada interiormente pelo processos de fragmentação da crença e pela recomposição sincrética. Em outras palavras, é preciso que ela continue a ser uma realidade relativamente coerente, que partilhe, mesmo que de forma difusa, uma certa consciência de si mesmo com um "povo católico" firme. Onde essas condições não estão reunidas, a função da viagem pontifical precisa ser dupla: em um mesmo movimento, é mister produzir a afirmação simbólica de uma cultura católica ameaçada e também estimular esse Catolicismo emblemático contra tendência de disseminação que solapa a instituição católica.

Em função da história e do contexto sócio-religioso da igreja local, essa estratégia de mobilização vem sendo implementada no conjunto de viagens do papa por diversas formas. Mostrou-se especialmente evidente por ocasião das viagens de João Paulo II à França, particularmente nas duas primeiras viagens, em 1980 e 1986[11]. O objetivo era reconduzir a França à unidade interna de fidelidade a Roma, conjurar processos de dispersão que agem no corpo católico e alimenta-se do clima democrático pluralista e permissivo da sociedade moderna.

Mesmo entre os católicos, a possibilidade de aceitar essa temática de unidade da Igreja sob o chefe romano dependem, em grande parte, da capacidade do para constituir simbolicamente esse "povo católico da França", cuja existência nominal é confirmada pelas pesquisas, apesar de estar bastante diminuído seu número[12]. Por ocasião de sua primeira viagem à França, o papa fez questão de convocar os católicos franceses a retomarem seus deveres religiosos, apelando com severidade para a responsabilidade histórica da "filha mais velha da Igreja". Em 1986, a tonalidade pastoral foi diferente, mas a orientação permaneceu a mesma. A peregrinação às fontes da França Cristã nas pegadas dos mártires de Lion, de Antoine Chévrier, do Cra d'Ars, de Francisco de Sales, etc., constitui-se em um trajeto pedagógico com o propósito de despertar a memória católica homenageando a grandeza de uma história particular. Em sua réplica ao discurso de boas-vindas do presidente da república, João Paulo II exaltou a "história prestigiosa" e a "grande tradição cultural" da França, sublinhando suas raízes na fé de todo o povo que construiu catedrais, criou obras místicas, desenvolveu inúmeras iniciativas de caridade, empreendeu uma epopéia missionária tendo modelado cotidianamente a alma dos compatriotas com suas virtudes de fé, de tenacidade nas provocações, de liberdade, no dom de si mesmos e no perdão. A intenção não foi "balançar os católicos" da França, mas, ao contrário, devolver a todos o sentido de orgulho próprio e de coletividade viva, nas condições indispensáveis para, seguindo o exemplo dos seus santos, desertar a capacidade de tomar iniciativas novas e audaciosas necessárias para enfrentar as dificuldades da presente situação. Agindo como catalisador do projeto, João Paulo II inclui em seus esforços de mobilização da Igreja universal, o convite aos fiéis francesas para um esforço de renovação.

É neste ponto que intervém o jogo de cena que deve ser logicamente espetacular: trata-se do encontro direto de um "povo católico" com seu guia que vai desenhar seu futuro chamando-o à releitura do passado; daí as grandes concentrações de povo que marcam cada deslocamento do papa, orquestradas para provocar uma junção entre a experiência emocional, festiva, extraordinária de identificação coletiva com a pessoa do papa e a operação de "remobilização" da memória religiosa, finalidade principal da viagem. É nessa mesma perspectiva de reconquista de identidade ameaçada pela amnésia coletiva que é preciso interpretar as numerosas cerimônias da canonização e de beatificação que acompanham o papa em cada país visitado. Fazendo de heróis locais, santos da Igreja, o papa exalta e autentica a história particular da Igreja local, que assim se identifica afetivamente àquele cuja lembrança está sendo honrada e, ao mesmo tempo, inscreve essa Igreja na "geração das testemunhas" que constitui a trama da "memória autorizada" que é a tradição. A operação de mobilização da memória: efetivamente, nem tudo desse passado que invocamos fica retido e à escolha dos acontecimentos ou das pessoas que são sinais permite orientar a memória coletiva m função dos objetivos do presente. Em Santo Domingo (novembro de 1992), a celebração da "grande festa católica e latino-americana" que marcou o Quinto Centenário da Evangelização do Continente da invocação das origens e da seleção dos acontecimentos da memória autorizada que é a tônica de cada viagem, através da mobilização dos fiéis em torno da figura do papa[13].

Para aprofundar um pouco mais a análise dessa associação entre uma tentativa de remodelação cultural da memória católica e um empreendimento de mobilização emocional da consciência que pertença a uma mesma geração crente, é particularmente interessante atermo-nos à palavra de ordem da "Nova Evangelização da Europa", lançada pelo papa em Compostela (1984), cujas implicações foram por ele expostas num discurso solene pronunciado em Estrasburgo diante do Parlamento Europeu (11 de outubro de 1988)[14] e também na Exortação Apostólica sobre os Leigos "Christi Fidelis Laici" publicada em 1989. Sabemos que esse tema da "Nova Evangelização" desencadeou debates inflamados no meio católico. Dependendo do caso, foi interpretado por alguns como um apelo a uma renovação espiritual interna da Igreja, enquanto para outros foi visto como a palavra de ordem de um empreendimento de reconquista da instituição eclesiástica sobre a sociedade. Mas, acima das polêmicas teológica e dependendo das correntes que assumem a Nova Evangelização, aparece, sobretudo, com um "significado flutuante" suscetível de produzir sentimentos profundamente diferentes e profundamente contraditórios. Isso não quer dizer que não seja possível detectar o conteúdo ideológico (e geopolítico) da noção, tal qual é exposto pelo papa em seus discursos: os sociólogos dedicaram-se a isto com grande atenção[15]. No entanto, notamos que e, termos de capacidade mobilizadora, a força da fórmula busca precisamente fazer com que esses jogos ideológicos sejam percebidos de maneira bem tênue nos meios católicos. Ela pode ser apropriada por indivíduos e grupos que lhe atribuem conteúdos sucessivos e variáveis. O que parece mais interessante do ponto de vista que fixamos aqui é a lógica estratégica que faz ser possível esta "disponibilidade ideológica" do tema da Nova Evangelização e dos efeitos que sua entrega à disposição social seja suscetível de desenvolver, do ponto de vista da (re)constituição da identidade católica no contexto da explosão da memória, descrito anteriormente. Isto não significa que a hierarquia católica e o papa, em particular, desenvolvam necessariamente, através do tema da Nova Evangelização, uma estratégia perfeitamente clara e consciente de rearticulação de uma memória católica em declínio. O mais provável é que caso essa intenção esteja presente, seja tratada de forma parcial e difusa e que a mesma se encontre embutida nos objetivos pastorais mais diretamente justificáveis de legitimação teológica e/ou política. Enfim, estes objetivos (sejam quais forem) passam por um processo de "remobilização" da memória recorrendo a três meios principais.

O primeiro desses meios é a "utopização" da Europa cristã do passado. A dinâmica utópica entendida num sentido sociológico preciso[16] visa propriamente mobilizar o imaginário coletivo a serviço da construção de uma nova articulação entre o passado e um futuro que é postulação de uma novidade absoluta em relação a um presente em todos os discursos do papa quando de suas viagens pela Europa, através de três temas fundamentais: a) a Europa secularizada de hoje, cujos valores estão minados pela permissividade moral, está ameaçada de perder sua alma e, portanto, de se auto-destruir; b) essa ameaça só pode ser afastada pela realização de uma unidade européia atualmente comprometida; c) sendo horizonte de um verdadeiro renascimento para a Europa, tal unidade supõe que haja "um redescobrimento da herança cristã e das raízes espirituais de sua civilização". João Paulo II enfatiza que "da memória deve brotar a profecia"[17]. Como mostra Paul Ladriére, essa evocação reiterada das "raízes" da Europa é extraordinariamente seletiva: deixa de lado países inteiros da História real da Europa e, particularmente, os da formação da Europa Moderna[18]. Essa seletividade (atrelada ao serviço de uma formação renovada do antimodernismo próprio do Catolicismo intransigente) faz parte do trabalho criativo da memória.

A memória como tal, em sua maneira própria de reportar-se ao passado que incorpora ao presente, incorpora sempre uma parte do imaginário. No entanto, é mister observar que quanto mais se faz sentir a ausência da presença concreta, repetitiva e prescritiva do presente no passado, tanto mais a referência ao passado tende a assumir um caráter imaginário. Toda memória é uma reinvenção e não uma reconstituição do passado.

Na reconstrução utópica do tema da Nova Evangelização da Europa, como está contida na obra de João Paulo II, a referência à especificidade cristã da cultura européia ocupa lugar de destaque.

"Esta insistência na cultura" é o segundo meio pelo qual se realiza a "remobilização" da memória religiosa. Em 1980, quando João Paulo II celebra o Décimo Quinto Centenário de nascimento de S. Bento em Nursia, ele exalta "o pioneiro de uma nova civilização". Também em 1980, quando coloca a Europa sob a proteção de Cirilo e Metódio (juntamente com Bento), ele recorda seu papel eminente na constituição do idioma peleoslavo (graças à invenção do alfabeto cirílico) e nas culturas que lhe devem sua articulação). Ele retoma esse tema na encíclica dedicada a eles em 1985 (Slavorum Apostoli). A insistência sobre a riqueza e a antigüidade da cultura européia nos permite sublinhar o vínculo que existe entre esse extraordinário patrimônio cultural e a tradição espiritual na qual ele está plantado. Nesse mesmo movimento, os europeus são convidados a "dar testemunho" das raízes profundamente cristãs dos valores humanos e culturais que são sagradas para eles[19].

Esse duplo movimento de reconstituição utópica e de refundação cultural da identidade religiosa européia inscreve-se num processo mais amplo de "mobilização emocional da memória". Esta se realiza de forma privilegiada nas grandes concentrações que acontecem por todos os lugares por onde o papa passa em suas viagens e, nessas ocasiões, ele pode desenvolver todos os recursos de seu carisma pessoal. A vinda do papa "em pessoa" a lugares que, em sua maioria, estão entre os "sítios de memória"[20] de coletividades nacionais ou locais que visita, é essencial para essa intensificação afetiva da atualização da memória no presente, colocada a serviço da reconstrução da identidade cristã e católica. A tonalidade dos discursos pronunciados nessas circunstâncias também concorrem para o efeito desejado. Na viagem à França em 1980 foi evocada como marcante indagação solene "França, que fizeste do teu batismo?" Podemos citar na mesma linha emocional o apelo lançado em Compostela (novembro, 1982) "Velha Europa, retorna à tua identidade, sê tu mesma, dá nova vida às tuas raízes!" ou ainda a "charge" afetuosa do discursos pronunciado diante do parlamento Europeu em Estrasburgo, em 1988. Para exorcizar o deslocamento da consciência coletiva pertencente à geração crente que no passado deu à luz a uma cultura comum, essa a afirmação coletiva de um "nós" que no presente provoca a experiência da emoção partilhada.

Os limites da reconquista institucional da memória católica: o exemplo da peregrinação mundial da juventude à Tchecoslováquia.

Uma ação privilegiada dessa estratégia de recomposição da memória católica concerne logicamente aos jovens. É portanto sob esse ponto de vista que podemos tentar analisar na visão sociológica o lugar importantíssimo que a hierarquia da Igreja Católica vem destinando aos "encontros" mundiais da juventude que têm acontecido a cada dois anos durante o verão. Em 1984 João Paulo II fez um convite a todos os jovens para que fossem a Roma no Domingo de Ramos. Trezentos mil jovens atenderam ao convite. Perante tal sucesso, ficou decidido que haveria, em princípio, um "dia mundial da juventude" todos os anos nessa data. Além disso, uma grande concentração reuniria a cada dois anos os jovens em torno do papa. A primeira teve lugar em Roma, em 1985: a segunda, durante o verão de 1989, atraiu seiscentos mil jovens a Compostela - foi avaliado em um milhão e quinhentos mil o número de jovens que se dirigiam ao santuário da Virgem Negra em Czestochowa, na Polônia, em agosto de 1991.

Qual será o lado da instituição e do lado dos próprios jovens o significado dessas concentrações? Haveria coincidência entre o objetivo da instituição de fazer uma verdadeira pedagogia da identidade católica e a experiência dos peregrinos? Procurei esclarecer essas questões colocando a literatura que surgiu por ocasião do evento (brochuras, folhetos, roteiros), reuni também os vídeos disponíveis profissionais e amadores, produzi uma série de entrevistas com os jovens peregrinos e analisei uma centena de questionários preenchidos pelos jovens das dioceses por ocasião da peregrinação. Esse dossiê capacita-me a fornecer esclarecimentos (aqui, em forma bem resumida) sobre mais ou menos 23.540 jovens franceses inscritos nos organismos nacionais que participaram da organização[21]. A prática do uso de inscrições mostra o desejo do episcopado francês em controlar a organização dos participantes na peregrinação. Essa preocupação com o controle visava não tanto prevenir a espontaneidade imprevisível dos jovens, mas, ao contrário, fiscalizar as iniciativas autônomas de agentes religiosos bastante ativos (especialmente os movimentos carismáticos), que em Compostela tinham dominado inteiramente a direção da operação.

Apesar de tudo, o encontro apresentou-se desde o começo como um evento institucionalmente regulamentado sob a direção da secretaria do episcopado, com a colaboração de todas as dioceses (13240 peregrinos) e do conjunto dos movimentos e organizações reconhecidas pela Igreja Católica - ação católica, escoteiros, movimento de espiritualidade, carismáticos e diversos serviços (9115 peregrinos). O dispositivo institucional permitiu o recrutamento de jovens católicos inseridos em estruturas eclesiais, em organizações da juventude católica e em vários movimentos. Cada um dos parceiros da organização foi em seguida liberado para orquestrar como bem quisesse o tema geral da peregrinação, tirado da Epístola de São Paulo aos Romanos (8,15): "Recebestes um espírito de filhos".

Como exemplo, quero citar, entre os parceiros, a comunidade carismática Emanuel, que levou dois mil jovens a Cazestochowa: o folheto que foi posto à disposição dos interessados fornece indicações muito interessantes d o trabalho concreto da tripla estratégia de utopização, reforço cultural da memória e emocionalização de identidade católica junto aos jovens. O objetivo geral proposto aos peregrinos é fazê-los descobrir que "ser filho de Deus significa acolher o Espírito Santos, deixar-se guiar por Ele, estar aberto à sua ação em nossa história pessoal e na história do mundo". De maneira bastante explícita, os responsáveis pelo Emanuel enfatizam a percepção dessa intervenção do Espírito na História vinculada às perturbações políticas que atingem a Europa.

"Agradeçamos a Deus. Estamos atravessando um tempo de perturbações, de fundação: estamos à beira de construir um mundo novo. Vimos isso nestes últimos tempos. A queda do muro de Berlim é símbolo de uma nova Europa. Repentinamente povos inteiros que não podiam se comunicar se encontram, se falam, dão as mãos. A Europa de amanhã será bem diferente daquela de ontem e somos nós que iremos construí-la. Graças à Providência de Deus, nossa geração tem, portanto, uma imensa responsabilidade nas mãos. Se nada fizermos, se agirmos erradamente, edificaremos uma Europa materialista, egoísta, isolada, voltada para si mesma e para nossos velhos demônios: orgulho, desprezo pelo outro, violência, ideologias libertinas, retornarão. Corremos o risco do retorno das guerras, das separações... Mas não é essa a Europa que queremos construir. Ao contrário, queremos trabalhar para a edificação de um mundo mais justo e mais fraterno"[22].

Respondendo aos termos da ameaça multiforme que paira sobre a Europa em plena transformação, é oferecida uma perspectiva de um mundo que os jovens cristãos estão encarregados de antecipar. Com quais recursos? O folheto distribuído aos peregrinos oferece uma primeira série de indicações.

A primeira parte do folheto apresenta detalhadamente as etapas do percurso: fortalecidos pela virtude dessa viagem de vários dias através da Europa, é preciso que os jovens mergulhem nas fontes da História e da geografia cristã do Velho Continente. Para isso é distribuído a cada participante um verdadeiro guia para um turismo de gênero bem singular. Uma série de capítulos fartamente documentados fornece todas as informações úteis para "aproveitar inteligentemente" a viagem: os episódios principais da História, dados demográficos, indicações de tesouros culturais, arquitetônicos e outros de várias regiões. Mas cada uma das etapas dessa travessia cultural da Europa é uma etapa religiosa - Paray-le Monial, Altóting, Beauraing, Velehrad, Czestochowa, Praga - a maioria possuidora de forte conteúdo mariano, portanto católico - lugares de aparições, de milagre. E a apresentação seletiva da História está evidentemente colocada a serviço desta insistência na estruturação propriamente católica da Europa (um exemplo: as páginas consagradas a Praga evocam a memória de São Norberto, fundador dos promonstratenses, mas não diz uma palavra sobre Jean Huss)[23]. Uma segunda parte, sob o título de "Ensinamentos", apresenta-se como uma breve catequese católica organizada em torno de quatro temas: a consagração a Maria, a adoração, a compaixão, a evangelização. Está acompanhada de alguns textos dos quais um, de Vaclav Havel, evoca com insistência a necessidade de regeneração moral do país depois de quarenta anos de totalitarismo comunista e lembra a necessidade de subordinar a política à moral. Um outro texto, de Chiara Lubich, fundadora dos Focolari, evoca a riqueza das diversidades culturais e espirituais dos povos do mundo e a necessidade de cada nação aprender com as outras que com elas irão formar o povo de Deus. Um trecho de Encíclica Redemptoris Missio, de João Paulo II, faz um apelo para que em todos os países seja revivida a "epopéia missionária da Igreja primitiva".

Um último conjunto é constituído por orações e cantos. Entre as observações desse conjunto há uma nota: a presença de orações tradicionais que se supõe não serem mais conhecidas pelos jovens, cuja recitação vinha se tornando relativamente rara no período pós-conciliar nos movimentos de juventude (atos de fé, caridade, contrição, litanias do Sagrado Coração, angelus, etc.) ordinário da missa em latim e um bloco de cânticos a Maria. Esses elementos exigiriam um exame mais profundo: sublinhamos aqui somente a forte (re)catolicização que isso exprime.

Devemos admitir que o caso Emanuel é exatamente a melhor escolha para dar a medida do clima de peregrinação do lado Francês. No entanto, essa tripla vontade de educação cultural religiosa da memória, da catequese acelerada e da reafirmação católica, está presente sob formas diversas, se bem que discretas, na maioria dos grupos e movimentos presentes na organização da peregrinação. Essa pedagogia de identidade católica, cuidadosamente preparada com antecipação através de reuniões e encontros preliminares, foi fortemente reforçada pelo enquadramento dos jovens in loco (com a presença de numerosos seminaristas, padres e até bispos)

Em face dessa atividade sistematizada de reconstrução da memória católica é evidentemente muito interessante examinar o que os próprios jovens aproveitaram da experiência que tiveram. Limitar-me-ei a sublinhar algumas tendências principais pinçadas em entrevistas e nas respostas aos questionários retomando alguns formulários típicos, que aparecem sempre, sob diversas formas nas respostas dos jovens:

  1. O que os jovens mencionam, em primeiro lugar como a maior contribuição recebida para sua participação na peregrinação, é o fato de terem vivido com outros jovens uma extraordinária experiência coletiva. "Extraordinário encontrar-me aqui no meio de tantos outros jovens". Essa experiência de encontros, de intercâmbios de engajamento físico partilhado, etc., fez de uma agregação de indivíduos atomizados um "nós" capaz de expressão coletiva (cantos e música constituindo-se no principal vetor dessa expressão). Houve uma experiência de comunicação no interior de uma mesma faixa de idade e ela permitiu aos participantes experimentar a realidade de uma "cultura jovem" comum.
  2. A força particular dessa experiência decorre de ter havido uma "associação entre jovens de países diferentes". A "descoberta de novos países" mencionada pela maioria dos jovens enfatiza sempre considerações sobre a ausência de barreiras, de fronteiras entre os peregrinos e os jovens desses países. "Descobrimos que nada nos separa". O principal era o ambiente entre nós, a unidade. "A acolhida foi realmente formidável: tínhamos a impressão de formar uma só família". Família Européia? "Família jovem, melhor dizendo". E o privilégio da cultura jovem foi precisamente apagar as divisões que vieram da História... é interessante notar que o sonho propriamente utópico de acumular riquezas e as diversidades vindas do passado para fazer nascer a Europa do futuro apela menos aos jovens que preferem o projeto de abolir o passado construindo um "mundo novo" baseado em valores partilhados (tolerância, respeito às maneiras diversas da vida e outros, a acolhida, a partilha, etc.) Não é difícil verificar que o conteúdo dessa "comunidade ética" que os jovens sonham formar e que consideram haver antecipada durante a peregrinação está profundamente enraizada na ética cristã que esses jovens cristãos socializaram precocemente (a ausência total da referência à situação política que constitui a realização de tal comunidade é igualmente reveladora deste enraizamento). É preciso, no entanto, observar que os interessados jamais fazem praticamente qualquer referência à necessidade de uma "recristianização" da Europa que seria a condição para a afirmação social desses valores. A realização concreta da dimensão cristã imanente a esses valores parece absorver inteiramente a visão que eles têm da "responsabilidade missionária" para a qual o convite do papa pretendeu sensibilizá-los.
  3. Interrogados sobre o significado do encontro do ponto de vista de uma experiência religiosa, os jovens insistem maciçamente na "jornada espiritual" que a forma de peregrinação permitiu realizar. "Foi uma ocasião para marcar posição. Permitiu-me aproveitar esse tempo para refletir sobre minha fé. Ás vezes a gente dança, se enche, fica sem saber onde está nossa meta: isto aqui corresponde a um processo de busca. Permitiu-me progredir em minha vida de oração." Unido ao tema de "jornada pessoal", corresponde às vezes a uma evocação crítica da "rigidez" do programa de orações ou das celebrações coletivas. Há também observações meio irônicas sobre a excessiva diretividade, ao enquadramento: "muito intervencionismo", "Eles tinham medo do silêncio". Entre as coisas que não gostaram foram mencionadas "falta de liberdade", "falta de tempo livre" e "falta de autonomia pessoal". Foi aprovada amplamente a presença dos padres e, principalmente, dos bispos: "havia sermões muito significativos, muito interessantes", mas isto "não é o principal".

O que foi apresentado de forma massiva como "principal" foi o "testemunho pessoal" (dos padres e bispos). "A melhor contribuição foi o intercâmbio de nossas experiências." Quando começamos a contar mutuamente nossas experiências pessoais "alguma coisa realmente aconteceu no grupo, sentimos que o Espírito Santo estava lá". O ensinamento[24], a leitura das Escrituras, a oração coletiva e mesmo as celebrações litúrgicas foram valorizados como "momentos fortes" da peregrinação. Da mesma forma, a descoberta dos "lugares quentes" da Europa Central é mencionada como um "enriquecimento espiritual" na medida em que proporcionou ocasião para conhecer "testemunhas" (encontros com padres e fiéis prisioneiros sob o regime comunista aparecem freqüentemente nas evocações dos peregrinos)[25].

Em relação à experiência coletiva muito densa e fortemente afetiva que aconteceu nas diferentes etapas da peregrinação, em que lugar você coloca a visita do papa?

O traço mais aparente que surge da leitura dos questionários e também das entrevistas foi a parte relativamente frágil que os jovens observaram ao responder sobre cerimônias em Czestochowa. Condições materiais péssimas (peregrinos empilhados, impossibilidade para grande número de jovens para chegar à esplanada, etc.). A preocupação dos organizadores nacionais em evitar qualquer manifestação de "papolatria" pode ter tido, igualmente, um papel importante nessa atitude geral de distanciamento (apesar de ter sido acompanhada sempre da evocação calorosa e entusiástica da presença de João Paulo II).

Mas o exame das respostas mostra claramente que o essencial da peregrinação falhou na etapa polonesa. Pode-se afirmar brevemente que os jovens ficaram gratos ao papa porque, ao convocar o encontro, ofereceu-lhes a ocasião para uma experiência coletiva que aconteceu longe de Czestochowa. É interessante, por exemplo, notar que quando evocaram o que contribui para reforçar seu sentimento de pertença à igreja, os jovens de uma diocese mencionam, antes de toda outra experiência, o encontro in loco com igrejas "diferentes" e o encontro familiar "comunitário" com o bispo. De modo geral, parece que foi no contato interpessoal direto e na experiência comunitária "local" que foram efetuadas as experiências decisivas de identificação.

Essa evocação da maneira pela qual os jovens peregrinos franceses descrevem sua experiência permanece, pela imposição das circunstâncias, bastante impressionista. No entanto, cabe a mim fazer algumas observações:

  1. A primeira se refere ao distanciamento existente entre a utopia política e religiosa implicada no projeto de "nova evangelização" da Europa "a partir da História comum revisitada e a antecipação de um novo regime ético suscetível de ser inscrito num espaço europeu libertado dos demônios da História", realizada pelos jovens peregrinos.
  2. A segunda é o distanciamento, tão significativo quanto o precedente, entre a evocação cultural das "raízes cristãs" da Europa sobre a qual se baseia a estratégia de reconstituição da identidade da instituição católica e o investimento quase puramente emocional que caracteriza a relação dos jovens peregrinos com os "lugares quentes" da história e a cultura européia.
  3. A terceira é o primado da experiência imediata individual e comunitária e a expressão subjetiva dessa experiência em relação a todas as formas de autoridade institucional regulamentadora da relação de cada fiel com a geração crente, isso mesmo junto a jovens cuja socialização mo Catolicismo está globalmente muito mais forte do que nos jovens batizados de sua faixa de idade.

Em primeiro lugar, esse triplo distanciamento coloca em evidência a heterogeneidade entre a "cultura jovem" dominada ao mesmo tempo pela afirmação dos direitos da subjetividade e pelo imediatismo da experiência e da expressão, pelo universo cultural e simbólico onde se movem os quadros da peregrinação que elaboram a pedagogia de identidade dos encontros mundiais da juventude.

Mas, acima das distorções, o que surge é a precariedade estrutural de todas as atividades institucionais tendentes a suscitar e controlar a identificação voluntária à tradição. O que esta precariedade revela é o caráter eminentemente paradoxal de uma modernidade religiosa no seio do qual o Catolicismo, bem como o conjunto das instituições religiosas históricas confrontadas com o mesmo problema, somente poderão manter-se caso se esforcem para reconstituir de modo experimental a representação de uma continuidade crente na qual a experiência dos indivíduos crentes não oferecem mais apoio.

Notas

[*] Danièle Hervieu-Léger é sociólga; atual presidenta e professora da EHESS; diretora da revista Archives de Sciences Sociales des Religions. Ministrou um curso de Sociologia da Religião, na PUC/SP.

[1] Maurice Halbwachs, Les Cadres sociaux de la mémoire, Paris. PUF, 1952 [1925].

[2] Pierre Nora (ed), Lieux de mémoire, vol. 1: La République (tome I), Paris, Gallimard, 1984, p. XVIII.

[3] idem

[4] Les Cadres Sociaux de la mémoire, Paris. PUF, 1952 [1925], p.265 - 272.

[5] Segundo a fórmula de Pierre GISEL, crer é saber-se engendrado. Cf L'excès du croire Expérience du monde et accès à soi, Paris, Desclée de Brouwer, 1990.

[6] Conforme Karel Dobbelaere et Liliane Voyé, D'une religion instituée à une religiosité recomposée, in: Voyé, Bawin, Kerkhofs et Dobbelaere, Belges, heureux et satisfaits. Les valeurs des belges dans les années 90, De Boeck/FRB, Bruxelles, 1992, p.159-238.

[7] R. Campiche, A Dubach, C. Bovay, M. Krüggeler, P. Voll, Croire en Suisse(s), Lausanne, 1992.

[8] Esta perspectiva das relações entre memória e religião na modernidade está desenvolvida por D. Hervieu-Léger, em: La Religion pour Mémoire, Paris, Cerf, 1993.

[9] J.P.Willaime, La Précarité protestante. Sociologie du protestantisme contemporain, Paris, Genève, Labor et Fides, 1992.

[10] Discurso de introdução de Mons. Duval, na Assembléia dos Bispos da França, in: La Croix, 28 de outubro, 1992.

[11] Cf. Jean Séguy, D. Hervieu-Léger, in: Jean Baubérot, Patrice Berger, et alt. Voyage de Jean-Paul II en France, Paris, Cerf, 1988.

[12] Maître, G. Michelat, G. Potel, J. Sutter: Les Français sont-ils encore catholiques? Paris, Cerf, 1991.

[13] René Luneau, La Vie Spirituelle, n.704, mars/avril 1993.

[14] Cf. J.P. Willaime (dir), Strasbourg, Jean-Paul II et l'Europe, Paris, Cerf, 1991.

[15] P. Blanquart, Le Pape en voyage: la géopolitique de Jean-Paul II, in: Paul Ladrière et René Luneau (dir), Le Retour des Certitudes, Paris, Le Centurion, 1987, p.161-178.

[16] Cf. Jean Séguy, Les sociétés imaginées Monachisme et utopie, Annales, mars/avril, 1971, p. 328-351.

[17] Discurso no VI Simpósio das Conferências Episcopais da Europa (Roma, outubro 1985).

[18] Paul Ladrière, Paul Ladrière et René Luneau (dir), Le Retour des Certitudes, Paris, Le Centurion, 1987.

[19] Discurso pronunciado na viagem à Austria (10/13 de setembro 1983).

[20] Pierre Nora, (ed), Lieux de mémoire, vol. 1: La République (tome I), Paris, Gallimard, 1984.

[21] Eram 500 ônibus com mais ou menos 50 jovens: 200 a 300 outros veículos. O número oficial de peregrinos deve ser aumentado em mais ou menos 1000 a 2000 franceses, inscritos em grupos internacionais (salesianos, neocatecumenato, etc) ou simplesmente sem inscrição. O total será de mais ou menos 25.000 jovens.

[22] Introdução ao folheto "Forum itinerante dos jovens" difundido pela Comunidade Emanuel.

[23] Comparando os folhetos de peregrinação distribuídos aos jovens pelos diferentes grupos organizadores, a maneira pela qual propõem uma leitura da história européia, poderíamos apresentar uma verdadeira cartografia das correntes ideológicas e dos conflitos presentes no seio do catolicismo francês. A divergência mais significativa concerne certamente a maneira pela qual é apresentada (ou não), segundo os folhetos, a SHOAH.

[24] Interrogados sobre a utilidade do folheto distribuído, os jovens (da diocese) mencionaram em primeiro lugar que foi preciso para "os cantos e os acordes da guitarra". Sublinharam em seguida sua utilidade para a oração pessoal e as "pistas de reflexão" e também para a animação das celebrações.

[25] A uma questão da pesquisa efetuada junto aos jovens de uma mesma diocese pedindo que indicassem o que acharam mais marcante, as respostas colocaram a visita a Auchwitz, a descoberta da beleza de Praga, a oração ecumênica em Taizé.