Este artigo apresenta aspectos do pensamento de Georg Simmel (1858-1918), um dos fundadores da sociologia alemã. Apesar de pensador plural e instigante, é pouco conhecido no ambiente acadêmico brasileiro. Dentro de uma visão coerente, que sintetiza várias disciplinas sobre os mais diversos temas, Simmel faz a distinção (de sabor contemporâneo) entre as religiões e a religiosidade. Ele propõe a religiosidade como uma dimensão humana, assim como a capacidade erótica, e que - identificada com a fé do indivíduo na sociedade - envolve toda a existência e lhe confere sentido. Essa concepção coincide com aquela utilizada por um grupo de professores da PUC-SP como base de sua pesquisa intitulada “Perfil da Religiosidade do Jovem Universitário - um estudo de caso na PUC-SP” e que desde 2000 realiza uma série histórica de captação de dados a cada quatro anos. Nossa pesquisa pretende produzir conhecimento sobre a experiência religiosa do jovem contemporâneo e fundamentar práticas educacionais.
Palavras-chave: Simmel, Sociologia, Filosofia, Juventude, Religiosidade, Religiões
This article presents aspects of the thought of Georg Simmel (1858-1918), one of the founders of German Sociologyis. Despite being a plural and provocative thinker, he is little known among the Brazilian academic environment. Within a coherent sight, that sinthesizes many disciplines about multiform themes, Simmel distinguishes religions and religiousness. He proposes religiousness as being a human dimension, alike the erotic capacity, and - identified with the faith of individual on the society - involves all his existence and brings it sense. This way of thinking is alike the one used by a team of teachers in the PUC-SP and bases their research entitled “Perfil da Religiosidade do Jovem Universitário - um estudo de caso na PUC-SP”; since the year 2000 we make a historical series of data captation, each four years. Our research intends to raise knowledge about the religious experience of the contemporary youth and give basis to educational actions.
Georg Simmel, é reconhecido como um dos fundadores da sociologia alemã, ao lado de Max Weber e Ferdinand Tönnies. De ascendência judia, nasceu em Berlim e viveu de 1858 a 1918, época conturbada e instigante da história alemã e mundial. Pensador fascinante e aventureiro, suas múltiplas preocupações levaram-no a temas aparentemente díspares, como a vida urbana, o dinheiro, a prostituição, a arte, o estilo de vida moderno e as religiões. Simmel foi um desses raros “pensadores totais”, pois produziu nas áreas da sociologia, filosofia, antropologia, psicologia e teologia. Em obra fundamental, Leopoldo Waizbort (2000) destaca que esse pensador buscou uma sociologia do moderno e do relativo, procurando captar o movimento e as relações. Entre tantos outros, influenciou Weber, Luckács, Bloch, Heidegger, Freyer, Mannheim, Kracauer, Jaspers, Benjamin, Spengler, Elias, Adorno, Buber, Ortega y Gasset e Bergson. Amigo dos poetas Stefan George, Rainer Maria Rilke e do escultor Auguste Rodin, esteve no centro da vida intelectual e artística da sociedade berlinense (WAIZBORT, 2000, pp. 13; 489-490). Colaborou com Durkheim, e já antes da 1ª Guerra seu pensamento foi acolhido em Chicago e em Paris. Dentre os intelectuais brasileiros, Sérgio Buarque de Holanda é um dos que dialogou com o pensamento de Simmel o qual, não obstante, ainda é pouco traduzido e conhecido no País.
Esse pensador foi um virtuose da palavra, dando a suas preleções o sabor de espetáculo. A cátedra era seu lugar predileto: nela, construía seu pensamento em voz alta, “com o lápis na mão”, como se escrevendo, apagando e reescrevendo. Em sua caudalosa produção, ele misturou vários matizes: impressionista e místico, moderno e romântico. Sua forma preferida de escrita foi ensaística. E não por acaso: à semelhança da carta, o ensaio fixa o subjetivo e o momentâneo, em contraposição ao tratado, de teor mais objetivo, impessoal e intenção de ser duradouro. Assim como o flânneur, o ensaísta atenta para o caminho e a paisagem; ele busca a significação no insignificante, segue o impulso em direção ao inusitado. Como destaca Waizbort (2000, p. 35), nos textos de Simmel é freqüente a palavra “talvez” - um olho piscando para a indeterminação e a possibilidade, algum ceticismo - mais dúvida que certeza, mais estética que sociologia.
Simmel produziu também sólidos fundamentos teóricos e uma fascinante reflexão sobre o fenômeno religioso: um de seus eixos é uma dimensão humana geradora de sentidos - que denomina “religiosidade” -, que o filósofo distingue de suas manifestações sócio-históricas - as religiões. Essa distinção, inovadora para sua época, é cada vez mais adotada na contemporaneidade e projeta novas luzes sobre a questão. Essas idéias se articulam com o conjunto do pensamento simmeliano e são centrais em nossa pesquisa, intitulada “Perfil da Religiosidade do Jovem Universitário - estudo de caso na PUC-SP” (ver mais abaixo).
Simmel é apontado como neokantiano e, inclusive, dedicou muitos cursos a Kant, tema de seu doutorado, sobre a ciência moral. Mas, nem sempre é fácil apontar a filiação precisa de suas idéias. Guiando-se por uma concepção pragmatista, ele negava a possibilidade de existência da verdade absoluta: a verdade só é válida a partir daquilo que dela resultar de prático e eficaz para a espécie humana. O filósofo afirma que a vida, em seu conjunto, é um valor supremo e critério da verdade e do erro, do bem e do mal. Nesse sentido, conforme Moraes (1983, p.26), Simmel separa o processo vivo de seu produto conceitual e se integra à linha de Goethe e Nietzsche (ambos, sua inspiração e modelo), de Schopenhauer e Bergson, e se contrapõe a uma concepção mecanicista:
... a vida só pode ser entendida pela vida. Acresce ainda que ela se explica ou desdobra em estratos que isoladamente levam à compreensão dos demais, revelando em sua interdependência mútua a unidade dessa compreensão... escapa a essa interpretação mecanicista a unidade e a integridade do ser vivo; só é capaz de estabelecer essa unidade por aglutinação, isto é, reunindo as partes que, numa concepção orgânica, resultam de uma divisão posterior da unidade em apreço... (in MORAES, 1983, p.88).
A “cultura filosófica” de Simmel é atravessada pela disposição mental de o pensador agarrar as coisas, as quais não se lhe entregam indefesas e espontâneas: a realidade nunca é “pura e simplesmente”, mas sempre “é para alguém”. Esse filósofo afirma que a realidade humana “não é o mundo em si, mas um mundo formado, por exemplo, pela arte ou religião, sendo o mesmo material colocado em moldes diferentes” (SIMMEL, 1997, p.140). A partir de Aristóteles e matizando o kantismo, afirma que não há formas vazias, assim como não há conteúdos sem forma. As formas puras nunca podem ser encontradas na história: à semelhança dos tipos ideais de Weber, são elaboradas pela mente através da exacerbação de características selecionadas nos dados concretos (MORAES, 1983, p. 21).
Numa primeira fase, Simmel estudou as grandes formações sociais, sem deixar de considerar as micro-dinâmicas. Assim, cada grupo social só pode existir mediante as ações e reações dos indivíduos entre si, em suas interações. Para destacar esse movimento, ele propôs o termo “sociação”, ou “socialização”, pois “a sociedade não é uma substância, nada que seja por si mesmo concreto, mas um acontecimento” (in WAIZBORT, 2000, p. 106). A origem das sociações situa-se nas ações recíprocas entre os indivíduos:
A sociedade existe onde quer que vários indivíduos entrem em interação. Esta ação recíproca se reproduz sempre por determinados instintos ou para determinados fins. Um corpo orgânico é uma unidade porque seus órgãos se encontram numa troca mútua de suas energias, muito mais íntima do que com nenhum ser exterior... em si mesmas, estas matérias com que se enche a vida, estas motivações, ainda não chegam a ser sociais. A sociação só começa a existir quando a coexistência isolada dos indivíduos adota formas determinadas de cooperação e de colaboração (in MORAES, 1983, p.59).
Numa etapa seguinte, Simmel focalizou mais detidamente o indivíduo e sua liberdade. Para ele, diz Waizbort (2000, p.25), o indivíduo é um elemento no todo social e, ao mesmo tempo, um todo em si mesmo: é um pólo de tensões e relações. O indivíduo é o sujeito último e legítimo portador da vida social na qual não se dissolve, mas permanece senhor de si, alerta e deslocando-se em meio à pluralidade de caminhos. Em suas análises sobre o fenômeno da arte, por exemplo, ele só se interessa pela obra singular enquanto reveladora do artista. Inspirado em Friedrich Schleiermacher[1], Simmel desenvolve uma ética segundo a qual cada vida vigorosa traz em si uma “lei individual”, própria, fiel a si mesma. A essa condição ele denomina “salvação da alma”, que entende como
a última unidade de todas suas perfeições íntimas, na qual se pode concordar apenas consigo mesmo e com seu Deus... a realização da alma não significa que ganhe algo novo, assim como o amadurecimento da fruta não é novidade em comparação com a simples semente. Ao invés, toda pessoa tem em si o ideal de si mesma, potencialmente, mas também na realidade... A essência da salvação da alma é que nada precisa ser-lhe acrescentado desde fora, mas precisa apenas descartar a concha e realizar seu ser íntimo... (SIMMEL, 1997, p. 30).
Waizbort (2000, p.427) aponta raízes dessas idéias em Goethe (em Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister), em Herder, em Stephan George e no espírito geral do Romantismo. Simmel destaca duas dimensões no individualismo: quantitativa - a igualdade, a liberdade individual, o liberalismo do século XVIII; qualitativa, que privilegia a singularidade e diferença de cada um a partir do interior, daí resultando sua autonomização.
O pensador escreveu uma série de pequenos ensaios sobre o que entende por “panteísmo estético”, a capacidade de ver o universal no individual. O objeto, não importa qual seja, é um símbolo de realidades mais profundas e sutis. A partir de Meister Eckhart e de Goethe, Simmel afirma a “inclusão absoluta de todas as coisas em Deus”, “o todo vive na parte”. Tudo o que é contingente possui algo de eterno - perceber essa condição exige uma sensibilidade para aquilo que os instrumentos técnicos captam, e começar a enxergar o que antes não o era. As distâncias infinitas entre nós e as coisas foram vencidas mediante o telescópio e o microscópio; no entanto, essas distâncias foram antes superadas na consciência. Simmel se propõe a estabelecer relações entre o singular, o contingente e o todo - esse programa é sintetizado na fórmula “instantâneos sub specie aeternitatis”. Ao buscar fazer falar o detalhe do organismo vivo, esse pensador se impõe como o mestre da micro-sociologia, capaz de trilhar veredas tênues:
Ao lado dos fenômenos visíveis que se impõem por sua extensão e por sua importância externa, existe um número imenso de formas de relação e de interação entre os homens, que, nesses casos particulares, parecem de mínima monta, mas que se oferecem em quantidade incalculável e são as que produzem a sociedade, tal como o a conhecemos, intercalando-se entre as formações mais amplas, oficiais, por assim dizê-lo. Limitar-se a essas últimas seria repetir a antiga ciência dos órgãos internos do corpo humano, que se dedicava aos grandes órgãos bem determinados: coração, fígado, pulmão, estômago etc, abandonando os incontáveis tecidos que careciam de nome popular e que eram desconhecidos, mas sem os quais aqueles órgãos bem determinados nunca produziriam um corpo vivo... não estão assentadas ainda em organizações fortes, supra-individuais, e sim que naquelas a sociedade se manifesta, por assim dizer, em status nascens... Trata-se aqui dos processos microscópico-moleculares... talvez, a partir deste ponto de vista, se obtenha para a ciência social o que se obteve com o microscópio para a ciência da vida orgânica. (in MORAES, 1983, p.71).
Mas Simmel tenta ir além da individualidade, escavando camadas mais profundas da alma humana. Nesse momento, sua abordagem assume caráter filosófico:
... a rigor, nem mesmo os indivíduos podem ser considerados como elementos últimos, ou seja, não podem ser interpretados como "átomos” do mundo humano... é somente na medida em que isolamos e compreendemos tais elementos, na medida em que os reduzimos a elementos mais simples, profundos e distantes, que nos aproximamos daquilo que é realmente "último” (in MORAES, 1983, p.81).
Suas teorias do moderno e da cultura, bem como o diagnóstico de sua época, confluem no extraordinário ensaio Philosophie des Geldes, considerado por muitos a obra máxima de Simmel, publicado em 1900. Para esse pensador, o dinheiro tem afinidade com a formação das cidades às quais impôs paulatinamente seu ritmo. Eminentemente abstrato, o dinheiro atua de forma concreta e incisiva, ao impor-se na troca por objetos e roubar-lhes a qualidade. Valores pessoais resistem a ser trocados por dinheiro, mas se uma pessoa não o possui, aos poucos perde seu valor. O dinheiro é símbolo do moderno, pois, como este, desloca a fixidez e a invariância tradicionais em prol do movimento e da variação. Simmel lembra que tudo flui, inclusive o dinheiro - no entanto, como circular é de sua essência, tudo flui em torno do dinheiro, que dá a impressão de permanecer estático. Estando em toda parte, mas sendo sempre igual, o dinheiro é um ponto fixo em torno do qual indivíduos e bens circulam.
A autonomização do indivíduo, na Modernidade, resultou num incremento da liberdade e do movimento, em oposição à Pré-Modernidade em que a personalidade era atrelada à comunidade e ao círculo social. A monetarização da vida contemporânea promoveu a internacionalização da economia, do indivíduo e da sociedade. O filósofo propõe o sangue como metáfora genial sobre a natureza do dinheiro. Simmel entende o dinheiro como uma categoria teológica secularizada:
Já se disse... que o dinheiro seria o deus de nossa época. De fato, podem-se descobrir relações psicológicas significativas entre as duas idéias aparentemente tão opostas. A idéia de deus tem sua essência mais profunda no fato de que todas as diversidades do mundo atingem nele uma unidade, que ele é a coincidentia oppositorum, na bela expressão de Nicolau de Cusa... a posse do dinheiro oferece paz e a segurança, e corresponde psicologicamente àquele sentimento que o devoto encontra em seu deus (in WAIZBORT, 2000, p. 145).
Simmel foi um pensador rigoroso e original sobre o fenômeno religioso, em cujo interior desenvolve sua reflexão sobre a religiosidade, objeto de nossa pesquisa, a ser apresentada mais abaixo. Não há consenso acerca da nomenclatura, mas, junto com Simmel, decidimos adotar a palavra “religiosidade”, que conceituamos como “uma dimensão humana, histórica e culturalmente determinada, que se abre à transcendência, mobiliza energias e se materializa em formas cognitivas e emocionais na construção de sentido para a totalidade da existência”[2].
Seguindo uma cautela preliminar, esse pensador adota um saudável “agnosticismo metodológico”. Ele afirma que a “dimensão metafísica, aquela que transcende o indivíduo, está contida na religiosidade humana... [no entanto,] a religiosidade subjetiva não garante a existência de uma esfera metafísica para além dela” (SIMMEL, 1997, p.13). Para esse pensador, os objetos religiosos são exclusivamente fatos da consciência, representações dotadas de sentido e fontes de energia para quem acredita neles. Ao postular que a dimensão religiosa é radicalmente humana, Simmel revela sua natureza profunda, a se recriar permanentemente na história, nas manifestações culturais e na multidão de ações interindividuais.
A partir daí, o filósofo aponta no fenômeno religioso uma dinâmica evolutiva. Na base desse processo, certas relações sociais e psicológicas geram atitudes que podem, ou não, tornar-se formalmente religiosas: “... a base subjacente da categoria religiosa é fornecida pela marcante analogia entre o comportamento do indivíduo para com a divindade e o comportamento para com a sociedade. Um aspecto essencialmente importante é o senso de dependência” (SIMMEL, 1997, p.110; 156).
Baseado nessa lógica, Simmel propõe um processo que se inicia com os impulsos íntimos, passa pelas relações sociais e pelo sentimento religioso e pode desembocar no fato religioso. Enraizadas na mesma origem, algumas relações humanas - ser filho, patriota, humanista, operário etc. - “têm um tom comum que só pode ser descrito como religioso. Contêm uma mistura unificada de entrega altruísta e desejo fervente, humildade e exaltação, concretude sensorial e abstração espiritual” (SIMMEL, 1997, p.161).
A reflexão simmeliana articula a religiosidade às sociações, nas quais distingue formas e conteúdos, inseparavelmente unidos na realidade. Conteúdos são as pulsões, interesses, objetivos, tendências e movimentos psíquicos que se tornam sociais quando se inscrevem concretamente no Estado, em comunidades religiosas, grupos econômicos, famílias e outros. Formas são categorias a priori da experiência histórica que permitem estruturar o real numa multiplicidade de perspectivas - ora artística, religiosa, científica, ética ou lúdica. As formas são aplicáveis a todo e qualquer conteúdo, o que explica a diversidade, mas também a unidade de mundos que modelam. Cada forma recorta a totalidade da vida, um mundo inteiro dotado de leis próprias, em concorrência com outros mundos. No entanto, o ser religioso, artístico ou cientista não existem em estado puro - cada pessoa faz combinações singulares dessas formas.
Cientistas sociais das religiões, como J-P. Willaime (2001, pp.116-121), consideram extremamente atual e fecunda a distinção entre religiosidade e as religiões cristalizadas, postulada pelo filósofo já no século XIX. Utilizando a expressão “le religieux”, Danièle Hervieu-Léger se insere na vertente simmeliana, ao abordar as crenças contemporâneas:
O religioso não se define unicamente através dos objetos sociais (as “religiões”) nas quais se manifesta de modo compacto e concentrado. O religioso é uma dimensão transversal do fenômeno humano, que trabalha de modo ativo ou latente, explícito ou implícito, em toda a espessura da realidade social, cultural e psicológica, segundo modalidades próprias a cada uma das civilizações (HERVIEU-LÉGER, 1999, p.19).
Num contexto flutuante como o atual, de desregulação institucional e de crescente número de pessoas religiosas sem religião, a distinção entre religiões e religiosidade mostra-se operacional ao se basear na afirmação de que “a religião não cria a religiosidade, mas esta é que cria a religião” (SIMMEL, 1997, p.150). Sobre as religiões, Simmel tece sua crítica:
De um lado, as formas que ligam a vida religiosa a uma série de objetos não satisfazem mais. Por outro lado, o anseio religioso não foi liquidado, mas procura caminhos e objetivos diferentes... o misticismo permite a suspensão da definição fixa e delimitação de formas religiosas... A religiosidade é o tom íntimo a partir do qual o conteúdo original se desenvolveu e continua a desenvolver-se... [a religiosidade] é análoga não só a uma única melodia, mas à chave na qual toda a sinfonia da vida é tocada. O espaço da vida é permeado por aquela unidade íntima entre humildade e certeza, tensão e paz, perigo e consagração que só pode ser chamada religiosa (SIMMEL, 1997, p.20).
Como, então, o filósofo define a religiosidade? Entende-a como uma disposição irredutível e fundamental da alma, uma invariante da existência humana, uma energia sem forma que confere cor e grandeza aos altos e baixos da vida, um relacionamento espiritual contínuo em relação ao conjunto da existência, e conforme com o destino interno da alma[3]. É um sentimento flutuante que, ou permanece disponível, ou se aplica a objetos, religiosos ou não-religiosos:
A religiosidade é um ser particular, uma qualidade funcional da humanidade, por assim dizer, que determina inteiramente alguns indivíduos, mas existe apenas rudimentarmente em outros. Esse traço fundamental leva habitualmente ao desenvolvimento de artigos de fé e à adoção de uma realidade transcendental... uma pessoa religiosa é sempre religiosa, independentemente se acredita, ou não, em Deus (SIMMEL, 1997, p.5).
Afinado com sua concepção vitalista, o autor faz expressiva aproximação entre a religiosidade e nossa disposição erótica, mesmo na ausência de uma pessoa amorável:
Alguém com uma natureza erótica poderia amar consistentemente apenas uma outra pessoa, mas seu caráter ainda seria intrinsecamente erótico antes e independentemente dessa expressão individual de amor. Da mesma forma, a pessoa que é religiosa por natureza tem certas características inerentes... seu verdadeiro ser é religioso; ela funciona de um modo religioso, por assim dizer, tal como o corpo humano funciona organicamente... ... assim como o artista tem imaginação e habilidade técnica, percepção sensorial precisa e o domínio do estilo, enquanto a substância de seu ser que faz dele um artista é uma identidade que não pode ser dividida em traços específicos... a religiosidade é a qualidade fundamental de ser da alma religiosa, e determina o tom e função de todas as qualidades gerais ou particulares da alma... (SIMMEL, 1997, pp. 10;14).
A religiosidade introduz na existência uma unidade de sentido mais profundo. Através dela, as tendências opostas e incompatíveis da alma encontram repouso e solução para suas contradições. Aqui, Simmel retoma um de seus temas prediletos e fonte de sua inspiração:
Coincidentia oppositorum é a descrição de Deus proposta por Nicolaus Cusanus, o filósofo mais inquiridor do século XV, um precursor de Copérnico e do individualismo moderno... Tal como o misticismo teísta e panteísta reconciliam a natureza fragmentária dos elementos do mundo mediante sua unificação em Deus, assim o comportamento religioso traz a paz às forças opostas e incompatíveis que trabalham no interior da alma, solucionando as contradições que criam. O significado subjetivo da religião para a alma é reflexo do que Deus, como objeto da religião, realiza por nossa visão de mundo... humildade ou elevação, esperança ou remorso, desespero ou amor, paixão ou repouso... a essência da religiosidade é criar espaço igual para pares de opostos... Essas forças conflitantes sugerem uma unidade mais profunda e escondida como se fossem as funções de diferentes membros que sustentam a vida de um organismo comum (SIMMEL, 1997, p.36).
Esse filósofo entende que, unificadora e originada de uma camada profunda, a religiosidade pode tornar tudo religioso embora, em si, nada seja religioso. No entanto, diz ele, algumas relações “talvez” sejam mais religióides, tais como as desenvolvidas entre o indivíduo e a natureza, o destino e a sociedade: tudo dependerá da atitude com que ele se engaja nessas relações. O filósofo faz estimulante síntese entre as predisposições da subjetividade individual e as formas de interação social: “Há uma extraordinária analogia entre o comportamento do indivíduo com relação à divindade e seu comportamento para com a sociedade” (SIMMEL, 1997, p.157). A esse comportamento, o filósofo denomina “piedade”, uma qualidade da fé, uma disposição que colore a alma e que se traduz como respeito aos semelhantes e à divindade. A piedade sintetiza dependência e ânsia por liberdade (ser membro do todo, e ser o todo):
O sentimento de dependência é considerado a essência de toda religião. Essa emoção pode ser rastreada na relação do indivíduo com a espécie: com as gerações anteriores (culto aos antepassados, heróis); com os contemporâneos, que condicionam o modo e extensão de seu desenvolvimento. A humildade com que a pessoa piedosa se dá conta de que tudo o que é e tem vem de Deus, e reconhece nele a fonte de sua existência e poder, é adequadamente rastreada na relação do indivíduo ao todo...
... a piedade pode ser descrita como "religiosidade em forma fluida”, um comportamento devoto para com humanos ou deuses (às vezes nem esses). Há pessoas de natureza piedosa que nunca dirigem sua piedade para um Deus: há pessoas religiosas sem religião... observa-se que o amor cria seu objeto; enquanto objeto do amor, a pessoa amada é sempre uma criação do amor (SIMMEL, 1997, pp.115; 162).
Fonte da piedade, a fé é, sobretudo, uma atitude de confiança, uma relação entre humanos. Segundo Willaime (2001, p. 122-127), essa fé prática pode estabilizar-se na sociedade, na família, em si mesmo e em Deus (objeto de crença por excelência). Para Simmel, esses aspectos manifestam a capacidade de a fé harmonizar a vida em suas fontes mais profundas:
É usual que a fé em Deus e em si-mesmo ofereçam um senso de confiança no futuro. Considere-se quantas coisas se pode fazer pelo simples motivo de que se acredita que se pode fazê-las. A fé prática é uma qualidade fundamental da alma e é sociológica na essência, isto é, se concretiza como uma relação com alguém exterior ao eu. Ela é a base da natureza humana. As diferentes formas de fé (em outra pessoa, em si-mesmo, em Deus) encontram-se tão relacionadas porque são variadas expressões (sociológicas) da mesma tensão espiritual. (SIMMEL, 1997, p.169).
A predisposição do indivíduo para ter fé - presente na oração, aparentemente contraditória, “Senhor, que eu creia” - mostra que ela é um estado de alma íntimo, anterior aos conteúdos dogmáticos, oriundos do ambiente externo. Assim, crer já é suficiente, podendo gerar, ou não, um objeto formalmente religioso:
A fé é que insufla conteúdo na solidez de ser, que o intelecto e a imaginação não conseguem cercar com suas definições. A fé é o órgão sensorial pelo qual este ser é levado a nós. A fé é o elemento essencial, e seu conteúdo tem significado secundário, embora uma pessoa possa sacrificar sua vida pela verdade desse conteúdo. Muitas pessoas profundamente religiosas são indiferentes a qualquer tipo de dogma, produto fortuito da história - a religiosidade delas é inquestionavelmente a mesma na essência, mesmo que o seu conteúdo seja diverso (SIMMEL, 1997, p.45).
Simmel entende que, sendo idiomas particulares, a religião e a arte nada têm entre si. Por serem totalidades, ambas se excluem, pois cada uma exprime o ser inteiro. No entanto, enquanto atitudes vivenciadas nas camadas mais profundas da alma, ambas se nutrem mutuamente. Elas retiram sua aura de um mesmo dinamismo, que sintetiza o próximo, o distante e o íntimo:
Ainda é preciso elucidar as forças motivadoras enraizadas na essência da religião e da arte, pelas quais ambas se atraem e repelem e que fazem com que elos históricos surjam como realizações mais ou menos perfeitas de associações mais profundas e fundamentais... somos freqüentemente forçados a impor a metáfora da proximidade e distância em relações espirituais... tanto o comportamento religioso como o artístico transportam seu objeto para uma distância muito além de qualquer realidade imediata para trazer esse objeto muito mais próximo do que qualquer realidade imediata poderia fazê-lo (SIMMEL, 1997, p.65).
Postulando a idéia de que “a beleza é promessa de felicidade”, Simmel afirma que a arte é irmã gêmea da religiosidade. Ambas operam a coincidentia oppositorum, que une a imagem sensível à explicitação da alma do artista. Essa unidade é a “mais acabada, a totalidade que se basta a si mesma... e exige apenas um homem, mas o exige por completo e de acordo com sua interioridade mais central... é talvez a graça mais profunda que a arte nos oferece, o penhor de que os elementos da vida em última instância não são tão sem nexo como a vida quer nos fazer crer” (in WAIZBORT, p.180). Porque brotam dessa unidade profunda, a religiosidade e a artisticidade moldam os elementos que têm à disposição e, desinibidamente, fazem a criação de seres e mundos religiosos e artísticos, já que tudo é religiosável e/ou artistizável:
... o significado artístico de uma obra é independente de se o seu conteúdo deriva de uma realidade previamente existente... o truísmo de que deuses são produto da religiosidade (entendida como qualidade da alma) pertence a um esquema conceitual mais amplo... Quando certas forças e impulsos fundamentais da alma entram em ação, criam um objeto para si.
... há obras de arte cujo tema de forma alguma precisa ser religioso, tal como é cada vez mais reconhecido que há obras totalmente irreligiosas, que carregam tema religioso... pinturas que não requerem nenhum detalhe religioso; elas são religiosas em sua inteireza, pois a função a priori que as criou é religiosa. (SIMMEL, 1997, pp.163; 88).
Para realizar sua obra, o artista deve possuir liberdade absoluta, pois artistas são seres absolutamente individuais. Em contraposição ao ideal superado do Classicismo, que propugnava o acabamento e o sistema sem lacunas, Simmel proclamava seu amigo Rodin como um dos ápices do panta rei heracliteu, um símbolo da modernidade e chave de compreensão do nosso mundo, ao fazer valer a soberania da alma pessoal frente a toda a existência. Em suma, Rodin teria elevado ao nível do sublime o encanto da sugestão e do fragmento:
As esculturas de Rodin são freqüentemente incompletas, nos graus mais variados, até casos em que a figura se destaca apenas em partes isoladas, em contornos que são difíceis de reconhecer... para nós, frente a um número sempre crescente de valores, o estímulo e a sugestão significam mais do que a realização definida, que não deixa nenhum resto para que nossa fantasia possa complementar. Nós queremos um minimum de realidade objetiva que desencadeie em nós um maximum de atividade própria (in WAIZBORT, 2000, p. 294).
Rembrandt foi outro artista que mereceu um olhar mais que admirado, reverente, da parte de Simmel. Este o aponta como um pintor da modernidade religiosa desencantada: “Não estamos mais num mundo religioso objetivo, mas os personagens de Rembrandt são subjetivamente religiosos num mundo objetivamente indiferente” (in WILLAIME, 2001, p. 140). Em seus quadros, o pintor expressa uma religiosidade moderna ao banhar suas figuras com um brilho suave, sem se impor mediante a óbvia temática bíblica ou artefatos identificados como sagrados. A religiosidade em Rembrandt aflora desde o íntimo, como profundidade da vida e da postura individual; nessa atmosfera, os personagens são eles mesmos ao invés de representarem princípios universais:
Cada vez mais, Rembrandt pinta cenas bíblicas que quase não se parecem com arte religiosa, de tão desprovidas de elementos dogmáticos e transcendentes... A religiosidade é uma qualidade dessas figuras - um atributo íntimo, tal como sua sabedoria ou estupidez, sua energia ou indolência... Essa religiosidade não está ligada a nenhum conteúdo específico...
... as figuras de Rembrandt estão de tal forma distantes de uma unidade universal porque sua religiosidade não é a aura de um conteúdo doutrinal da fé (embora esse conteúdo não seja de forma alguma negado), mas um processo de vida, função que só pode ser preenchida no âmbito individual... Jesus possui uma religiosidade forte, a mais forte, aquela certeza íntima incondicional, que é uma qualidade de sua humanidade (SIMMEL, 1997, p.82; 84).
Para Simmel, o Impressionismo - que confere ao artista e ao receptor a capacidade de construir a obra, cada um a seu modo - se relaciona ao estilo moderno e ao nervosismo da vida do indivíduo na cidade grande: é moderno porque traduz o movimento para a arte. Segundo Lukács, “Georg Simmel foi sem dúvida o fenômeno de transição mais significativo e mais interessante de toda a filosofia moderna... ele é o verdadeiro filósofo do Impressionismo”[4].
Waizbort (2000, pp. 471-488) propõe o Cubismo como a melhor expressão da abordagem de Simmel, por considerar o objeto sob diversas perspectivas simultâneas. O mesmo autor também acena o Expressionismo como espelho do pensamento simmeliano, pois ambos coincidem em tentar registrar a imediaticidade e o choque da coisa em si. Cada uma dessas abordagens a seu tempo, uma só, ou todas elas? Em se tratando de Simmel, as definições, como labirintos, estão abertas.
Em determinado momento, o pensamento de Simmel passou a guiar e a inspirar nossa pesquisa de campo. Intitulada “Perfil da religiosidade do universitário - um estudo de caso na PUC-SP”[5], ela vem sendo desenvolvida desde 1997 no âmbito do Departamento de Teologia e Ciências da Religião daquela Universidade.
O solo dessa pesquisa é a experiência de longos anos na docência praticada por uma equipe de professores e no qual se misturam práticas pedagógicas, intuições, teorias, partilhas e de outras pesquisas (RIBEIRO, 1998). O trabalho se iniciou com a delimitação de conceitos-chave, do campo, de objetivos e hipóteses. Fizeram-se entrevistas abertas envolvendo vivências, atitudes, prática ritual, relação com Deus e religiões: os depoimentos forneceram elementos para um pré-teste a partir do qual elaborou-se um questionário final com 68 afirmações, aplicado no ano de 2000 a 1.032 estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Após a interpretação dos resultados, o grupo aperfeiçoou o instrumento mediante novas entrevistas qualitativas, a permuta com pesquisadores e um novo pré-teste.
Em 2004, dando mais um passo na série histórica, 520 universitários da PUC-SP responderam a um novo questionário que se divide em três partes: questões fechadas (qualificando o sujeito, seu capital cultural e situação religiosa familiar, as realidades prediletas e atividades preferidas); 39 afirmações sobre aspectos da experiência religiosa (com graus de concordância de 1 a 6); quatro questões qualitativas abertas (sobre as principais experiências, de vida e religiosas; o que se valoriza e se critica nas religiões). Nossa pesquisa segue uma lógica heurística e, à medida que avançou, suas intuições e resultados exigiram novos fundamentos teóricos. A descrição detalhada de nossa pesquisa, sua metodologia, instrumentos e resultados tem sido objeto de outros escritos.
Nesse processo deu-se nosso encontro com Simmel, feliz porque confirmou alguns de nossos achados, inesperado porque esse autor é escassamente conhecido no ambiente acadêmico e editorial brasileiro. A concepção simmeliana mostra como a religiosidade integra a existência: “A religiosidade, em sua pura essência livre de toda matéria empírica, é a vida: a pessoa religiosa é alguém que vive de certa maneira que lhe é peculiar” (SIMMEL, 1997, p. 143). Ao postular a religiosidade como uma “qualidade da alma”, anterior a formulações doutrinárias e rituais, esse filósofo ilumina uma vivência profunda, encontrada nos sujeitos pesquisados por nós. A pesquisa aponta, no seio de uma população altamente secularizada como os universitários, uma intensa disposição “piedosa” presente na dependência a grupos da sociedade, em situações envolvendo uma sociabilidade que freqüentemente assume características de sacralidade. Por isso, os universitários pesquisados atribuem médias altas a afirmações como “Às vezes converso em profundidade com outra pessoa e isso me traz energia” e “Sinto muita alegria em reuniões em que todos estão alerta para a realidade”. A sacralidade também aflora em outra parte do questionário na qual, dentre as seis “questões mais importantes para mim”, a família e os amigos vêm em primeiro lugar.
Chama atenção a confluência de resultados de nossa pesquisa e a reflexão de Simmel sobre a fé, entendida como uma atitude “humana” de confiança e considerada o cerne da religiosidade. Em várias ocasiões, o jovem reconhece que algum tipo de fé lhe é imprescindível, pois oferece confiança no futuro e fundamenta determinadas ações e opções. Para quem avança no desconhecido e ensaia seus projetos rumo à adultez e à autonomia, a fé prática significa confiar no outro (a sociabilidade acima mencionada), na vida e em si mesmo. Nas duas aplicações de nossa pesquisa, essa atitude está presente nas mais altas médias, atribuídas às seguintes sentenças: “Para mim, a vida tem sentido”, “Cabe principalmente a mim definir os rumos da minha vida” e “Lutar pelo que acredito é um de meus rituais”. Essa disposição de construir a própria existência e elaborar sentidos para ela (o “individualismo qualitativo”) é encontrada em vários momentos de nossa pesquisa: no significado quase sagrado atribuído ao ingresso na universidade (concebida como porta de acesso ao trabalho e, conseqüentemente, ao mundo adulto) e na realização de viagens, que provaram ser ambiente de múltipla experimentação.
Já explicitada por Simmel, a percepção de algum grau de inadequação entre a vida moderna e as tradições religiosas, também está presente em nossos sujeitos: eles distinguem entre, de um lado, as formulações religiosas do crer e, de outro, a fé-atitude. Esta merece prevalência, verificada na alta média conferida à afirmação “Ter fé é mais importante que ter crenças e religiões”. É freqüente uma sensibilidade “tolerante” frente às religiões, manifestada na mais baixa média (alto índice de discordância) conferida à frase “Apenas a minha religião é a verdadeira”. Essa atitude se manifesta, por exemplo, em resultados qualitativos que expressam forte criticismo frente às igrejas, no que nossos sujeitos qualificam como fanatismo, dogmatismo, conformismo e disputa por fiéis. Acresce o fato de que, em 31,6% das respostas, os jovens marcam sua distância das religiões ao afirmar “Acredito em Deus, mas não tenho religião” (19,6%), ou se reconhecerem ateus, ou agnósticos (6% em cada grupo). Enfim, dentre as seis “questões mais importantes”, a religião é situada em quinto lugar, pouco acima da política, em último. Ao deixarem de ocupar a centralidade na existência de nossos sujeitos, as religiões se restringem ao papel de “estoque simbólico” - fica, assim, aberto o espaço para o conhecimento de sua religiosidade na expressão mais natural e simples. A religiosidade permanece como pano de fundo sobre o qual a juventude tece seu patchwork de crenças e elabora sentidos totalizantes para sua trajetória.
Para os que acreditam em Deus, são geradas diversas imagens - um tema específico em nossa pesquisa. As imagens se situam no entrecruzamento de vivências da juventude, da condição de universitário, de fatores sócio-culturais. Simmel (1997, p.181) explicita bem esse complexo ao afirmar que os deuses não são simplesmente uma idealização de características individuais - força, qualidades morais ou imorais, os gostos e necessidades de indivíduos -, mas as formas interindividuais de vida social sempre determinam o conteúdo das imagens religiosas. Num eixo empregado por Simmel, a maioria de nossos sujeitos situa Deus mais próximo do pólo “distância” do que o pólo da “proximidade”. Assim, as imagens divinas mais importantes para os universitários são “um ser superior” e “uma forma de energia”, permanecendo em terceiro plano a idéia de “um ser pessoal”, oriunda do Judaísmo e do Cristianismo, embora nesta religião se situe a origem da maioria dos pesquisados.
Simmel aponta similaridades entre a sensibilidade artística e a religiosidade, sendo ambas atravessadas pela dialética “próximo/distante/íntimo”, além de suscitarem experiências significativas. Nesse sentido, nossa pesquisa fornece indícios de que as artes - sobretudo a música, presente em atividades como escutar, dançar, tocar instrumentos e participar de eventos - suscitam nos universitários “uma dimensão superior”, sinônimo de religiosidade.
Embora ainda não inteiramente apropriado por nosso meio acadêmico, o pensamento de Georg Simmel apresenta um vigor e fecundidade que tornam urgente sua descoberta pelos interessados nas mais diversas disciplinas. Ao apontar no fenômeno religioso sua radical humanidade, esse pensador abriu caminho para uma compreensão mais profunda de sua permanente decomposição e recriação através da história e da diversidade das culturas, em meio à multidão de manifestações e de ações interindividuais. As estimulantes trilhas abertas por Simmel certamente conduzirão a todos os que se interessam por demarcar novos horizontes.
HERVIEU-LÉGER, Daniele. Le pèlerin et le converti. Paris: Flammarion, 1999. 198p.
MORAES Fº, E. (org.). Simmel. São Paulo: Ática, 1983. Col. Grandes Cientistas Sociais. 188p.
RIBEIRO, J.C. “Um perfil de docente - a dimensão existencial em Introdução ao Pensamento Teológico”. São Paulo: PUC-SP (mimeo), 1998. 76p.
SIMMEL, G. Essays on Religion. Yale: Yale University Press - Durham, 1997. 223p.
WAIZBORT, L. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Ed. 34, 2000. 590p.
WILLAIME, J-P. e HERVIEU-LÉGER, D. Sociologies et Religion - approches classiques. Paris: PUF, 2001. 288p.
[*] Professor titular do Depto. Teologia e Ciências da Religião/ PUC-SP, pesquisador, editor da Olho d'Água e escritor. Endereço eletrônico: .
[1] Schleiermacher (1768-1834) define a religião como "o sentido e o gosto do infinito" e a considera como um sentimento primário, sendo secundárias a crença e a ação. Ele descreve o sentimento religioso como "dependência absoluta", acreditando que ele seja universal no ser humano.
[2] Agradeço as sugestões da socióloga Danièlle Hervieu-Léger (em entrevista com o autor).
[3] WAIZBORT, op. cit., p. 19.
[4] in WAIZBORT, op. cit., p. 477.
[5] Participam os professores Jorge Claudio Ribeiro, Regina Pereira Lopes, Eulálio Figueira, Maria Celina Q. Cabrera Nasser, Antônio Martini, e Yara G. de Castro (assessoria estatística) e 40 bolsistas de Iniciação Científica. Agradeço ainda as preciosas indicações dos antropólogos Reginaldo Prandi e Eliane Gouvêa, e dos teólogos João Batista Libânio e Edênio Valle.