HIV/AIDS is a distinctive and challenging theme for theology, because it incorporates the dimensions of interreligious reflection, theology, science, and ethics. This article presents a palette of issues that are both challenge and resource for approaching the theme. Three sets of issues are considered: (1) the role of religion in culture, (2) theological interpretation of nature, disease, and evil, and (3) the fashioning of a global ethic.
Keywords: culture, death, disease, evil, global ethic, HIV/AIDS, metanarrative, organization of consciousness.
A AIDS/HIV é um tema especial e desafiador para a teologia porque incorpora várias dimensões da reflexão inter-religiosa: a teologia, a ciência e a ética. Este artigo apresenta uma paleta de questões que são ao mesmo tempo desafio e fonte de recursos na abordagem do tema. São considerados três tipos de questões: (1) o papel da religião na cultura, (2) as interpretações teológicas sobre natureza, doença e mal e (3) a formação de uma ética global.
Palavras-chave: cultura, doença, ética global, HIV/AIDS, mal, meta-narrativa, morte, organização da consciência.
O tema que me foi indicado, “A possibilidade de uma ética global: O potencial de um diálogo entre ciência e religião sobre a AIDS/HIV”, é um dos mais difíceis para a teologia cristã. A dificuldade reside não apenas no desafio da reflexão inter-religiosa, unindo teologia, ciência e ética, mas principalmente nas questões inerentes e perenemente intratáveis que estão na base do tema: “Como a religião produz o comportamento?”, “Como passar do conhecimento à ação?”, “Como compreender a realidade do mal na existência humana?”.
Minhas reflexões sobre o assunto se dividem em três áreas:
(1) A religião no contexto da cultura
(2) A interpretação teológica da natureza, doença e mal
(3) Questões relacionadas à formação de uma Ética Global
Nos últimos dez anos, dediquei-me a compreender a cultura como algo que emergiu do processo evolutivo, enraizada na biologia do nosso cérebro e que transcende a biologia ao produzir uma nova forma de informação, mas sem nunca se dissociar de sua matriz evolutiva. Solomon Katz contribuiu para essas idéias com seu conceito de evolução biocultural (KATZ, 1980; KATZ, 1999: 242-3; HEFNER, 1993: 198) e Gordon Kaufman fez o mesmo ao empregar o termo evolução “bio-histórica” (KAUFMAN, 2003: pp. 8ff.). Entendo a cultura como um conjunto de padrões de comportamento aprendidos e ensinados e de sistemas simbólicos que contextualizam esses comportamentos, interpretando-os e justificando-os.
A cultura está, de um lado, sob o domínio da liberdade e da exploração e, de outro lado, sob o domínio da memória. As duas primeiras constituem o âmbito do novo, por aquilo que está sendo descoberto e construído pela primeira vez; a última é dominada pela sabedoria herdada, os aprendizados do passado que sustentaram a existência da cultura entre as gerações precedentes.
A religião faz parte da cultura, é um fenômeno cultural que reflete a cultura e também um campo de exploração e memória. A religião é constituída por mitos, rituais e comportamento moral. Pode-se falar em uma constelação formada por mito, ritual e práxis (HEFNER, 1993: 157-73). No coração dessa constelação está um núcleo de significado sagrado, que serve para interpretar toda a realidade e a experiência. A origem desse núcleo de significado vai além do conhecimento científico e da especulação filosófica e, em conseqüência, os sistemas mítico-ritualístico-práticos a ele se referem como “revelação” ou algo equivalente. O mito narra “como as coisas realmente são”; o ritual faz a mediação entre o mito e a práxis, sendo um conjunto de ações simbólicas que relacionam a história de como as coisas são à ação concreta na vida diária; e a práxis é a tradução das ações simbólicas em comportamentos efetivos fora dos locais sagrados. No livro Religion and Moral Reason, publicado em 1988, Ronald Green dá vários exemplos em religião comparada dessa constelação.
Ao discutir os ritos de iniciação no cristianismo primitivo, Green fornece um exemplo de como o mito, o ritual e a práxis interagem de maneira dinâmica (GREEN, 1988: 156-60). Por quarenta dias antes da Páscoa, um grupo de pessoas passa por um período de instrução intensiva, a catequese. Os ensinamentos incluem a narrativa mítica sobre como Deus, o Pai celestial, criou os seres humanos à sua própria imagem e os mandamentos de Cristo para amar a todos como a si mesmo. Na véspera da Páscoa, já tarde da noite, o grupo passa por um ritual de iniciação, que coincide com a memória da noite em que Jesus, morto na tumba, fez a transição para uma nova vida por meio da ressurreição. Os iniciados tiram suas roupas e são mergulhados na piscina batismal. Quando emergem, recebem túnicas brancas idênticas e participam de sua primeira Sagrada Comunhão, comendo o pão e bebendo o vinho que simbolizam a unidade com Jesus e com a comunidade dos seus seguidores. Observe como o ritual se origina do mito: cada iniciado vê o outro sendo despido; um laço de humanidade comum é então formado, deixando de lado as diferenças de classe e status; o que une esses indivíduos despidos é o fato de se identificarem como filhos do Pai Celestial. O ritual estimula a empatia. Depois desse ritual, fora do local sagrado, a solidariedade com o grupo batismal deverá ser traduzida na solidariedade com todas as pessoas - independentemente de como se apresentam em sua existência mundana, todas as pessoas estão despidas diante de Deus. A empatia evocada nas águas batismais é o princípio que governará as interações humanas na praça do mercado. Da empatia podem emergir a moralidade e a ética. A reflexão religiosa ou o pensamento teológico podem ser acrescentados a esse conjunto como recursos que possibilitam a passagem do mito ao ritual e à práxis na praça do mercado.
A religião interpreta o processo da cultura. No exemplo acima, interpreta a união ou a comunhão humana; ela nos diz algo sobre o significado de comunidade. A religião expressa aquilo que é importante no processo cultural — no caso acima, a empatia. Dessa ênfase na “importância”, podem emergir idéias sobre “deve” e “não deve”, “certo” e “errado”. Pode-se argumentar que esse processo que vai do ritual à práxis, que identifica o que é importante para o “dever” ser, representa a entrada da religião na ética – global ou não.
O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi nos ajuda a entender que, para a cultura cumprir sua função, é necessária a organização da consciência para sustentá-la e dirigi-la (CSIKSZENTMIHALYI, 1991: 11-15). A organização da consciência é, significativamente, a questão central da cultura. Os valores que sustentamos, nossas visões de mundo, as decisões que tomamos, tudo se origina no modo como nossa consciência está organizada. A dimensão psicológica da personalidade atua como um filtro para nossos dados de entrada genéticos e culturais, selecionando aquilo ao qual daremos mais atenção e pelo qual seremos influenciados (CSIKSZENTMIHALYI e MASSIMINI, 1985). Essa função de filtro, assim como a tomada de decisões, está na base da organização da consciência. No clássico trabalho As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), o sociólogo Emile Durkheim reconhece que a religião, acima de tudo, diz respeito ao modo como organizamos a nossa compreensão da realidade e, nesse caso, ela é precursora da ciência e não sua antítese (DURKHEIM, [1912] 1995: xxv, 25-6). Em sua contribuição para este simpósio, Gordon Kaufman insiste que nosso repertório cristão para organizar a consciência precisa reformular idéias e, em seu artigo, propõe algumas reformulações.
O modo como nossa consciência está organizada revela se as antigas florestas devem virar metros cúbicos de madeira, rolos de papel, ou se devem ser preservadas como tesouros naturais. O modo como nossa consciência está organizada nos revela como deve se estruturar a relação entre homens e mulheres e se as pessoas devem ser mais bem avaliadas por produzirem ou consumirem mais mercadorias ou não. O modo como nossa consciência está organizada nos revela se as vítimas de AIDS/HIV que vivem nos Estados Unidos devem receber mais atenção que aquelas da África ou da China. O que é a religião senão um agente poderoso para a organização da consciência? É claro que existem outros agentes semelhantes na cultura: marketing e filosofia econômica, educação, ideologias raciais e nacionais. Qual é o papel adequado da religião na cultura? Paul Tillich tinha razão quando falou da “dimensão de profundidade”. A religião busca organizar a consciência de acordo com as mais profundas realidades da vida, que relativizam todas as outras e fazem parte do nosso ser ou não-ser no nível mais profundo (TILLICH, 1988: 3-40).
Mencionei acima que a religião compartilha a dialética da cultura ao mover-se entre os domínios da livre exploração e da memória, entre o que é novo e a sabedoria herdada do passado. A religião é desafiada a equilibrar ambos os domínios. O estudo científico da religião tende a enfatizá-la como um receptáculo da sabedoria herdada. A maioria dos antropólogos considera a religião um fator de preservação da cultura. Roy Rappaport foi uma notável exceção a esse julgamento (ver seu livro “Ritual and Religion in the Making of Humanity”). As comunidades religiosas, em geral, concordam com esse veredicto científico. E geralmente pregam e praticam máximas como “o antigo é melhor”, “a Era de Ouro está no passado” e “a inovação é uma heresia”.
Uma análise mais cuidadosa revela, porém, que a exploração é tão importante para a religião quanto a memória, mesmo que a opinião pública e a doutrina neguem isto. A exploração é importante porque a religião procura interpretar o significado do presente e do futuro do mesmo modo que organiza a consciência para ação presente e futura. A religião busca o sagrado, Deus, no presente. A religião preocupa-se com a manifestação da presença de Deus no presente e no futuro tanto quanto no passado. Se observarmos com atenção as figuras paradigmáticas da religião – Moisés, Davi, Buda Gautama, Jesus e Maomé – o que mais impressiona são seus esforços em explorar e inovar do que obediência diante da sabedoria recebida. É mais freqüente o interesse ideológico das gerações posteriores, que tentam descrevê-los como conservadores.
Para o propósito de nossa discussão, não apresentarei conclusões consolidadas a respeito da religião na cultura, embora isso seja possível. Simplesmente irei sugerir que a atividade da religião em organizar a consciência através do mito, ritual, práxis e interpretação da doutrina, assim como seu esforço em superar a distância entre exploração e a memória, podem servir para a criação de uma ética global em geral, e em particular de uma ética para a AIDS/HIV.
Uma das afirmações discutidas neste simpósio é (citando uma nota preparatória do grupo responsável pela organização) é a de que “as doenças, epidemias e pandemias são ocorrências naturais, causadas por organismos que, ao entrar em contato com o organismo humano, na maioria dos casos, levam à morte”. A AIDS/HIV é uma dessas doenças e, como tal, levanta três importantes tarefas conceituais para a teologia. A primeira diz respeito à natureza. Mesmo que a teologia cristã tenha falado muito sobre a natureza, o conceito precisa de uma revisão, como propôs Gordon Kaufman, porque o nosso entendimento da natureza passou por incríveis mudanças nos últimos cinqüenta anos de desenvolvimento científico. Aumentamos nosso conhecimento sobre diversos aspectos da natureza nos últimos cinqüenta anos mais do que em todos os anos anteriores da história da humanidade - do cosmo às partículas e moléculas, dos genes aos neurotransmissores. Num sentido real, a natureza não é mais o que costumava ser - para nossa vida comum como pessoas humanas ou para nossa reflexão teológica. A natureza e a transformação de nossa percepção dela são inerentes à consideração do fenômeno da AIDS/HIV.
A conceptualização de doença nos apresenta uma segunda tarefa. Ao contrário do que acontece em outras áreas do pensamento religioso e teológico, não existe uma teologia da doença disponível nas bibliotecas. A nota preparatória fala de doenças que causam a morte de seres humanos. Como a HIV/AIDS é a doença que está sendo discutida, substituí morte por mal como a terceira tarefa conceitual apresentada a nós. As tradições das religiões mundiais podem revelar uma atenção maior ao mal do que a qualquer outra questão. Depois da reflexão sobre Jesus Cristo, a teologia cristã concede um importante espaço ao mal em seu trabalho teológico. O problema com o qual nos deparamos é que cada teólogo com um mínimo de autoconsciência admitirá que essa questão nunca foi resolvida. Entretanto, não podemos evitá-la.
R. G. Collingwood (1945), filósofo britânico da primeira metade do século XX, afirmou que nosso acesso à natureza é sempre condicionado por nossas idéias a respeito dela. Não pode haver uma transação com o mundo natural separada das idéias que carregamos sobre a natureza. Essas idéias, é claro, são produto da cultura, então, podemos dizer que a cultura governa tanto nosso entendimento da natureza como nosso comportamento em relação a ela. As idéias centrais para a organização da consciência levantam a questão das metanarrativas. Atualmente, somos sensíveis às possibilidades prejudiciais e até opressivas que surgem quando uma ou mais idéias são elevadas à posição de norma como se fossem narrativas que abrangem tudo. A organização da consciência está no cerne desse problema porque a organização de nossas idéias e, por conseguinte, de nossos comportamentos é um ponto nevrálgico. Precisamos de um pluralismo de idéias organizadoras, de modo a evitar que as narrativas de um único grupo dominem nossos pensamentos e ações. Essa tensão entre unidade e pluralismo, universalidade e particularidade, constitui um desafio fundamental aos nossos esforços de organizar a consciência.
O papel das idéias é especialmente vívido quando a natureza abrange a doença. As células cancerosas e o vírus da AIDS não podem saber que aquilo que estão fazendo é se manter, sobreviver, como fazem todas as formas de vida, poder-se-ia dizer. Mas praticamente todos os seres humanos irão associar a idéia do mal às doenças que nos afetam no meio natural. De fato, as estratégias de sobrevivência dos vírus e seres humanos são desastrosamente conflitantes.
O que é a seleção natural para o vírus da AIDS é o mal para suas vítimas e para a maioria de nós, que vê as vítimas do vírus.
Isso traz uma série questões sistemáticas para a lógica da crença cristã. A primeira questão é: como a natureza da natureza está relacionada à natureza de Deus? Como a crença cristã, ao menos em sua tendência dominante, sustenta que Deus é o criador único de tudo o que existe (a criação a partir do nada), tudo o que ocorre na natureza (e na cultura, em conseqüência) deve estar relacionado a Deus - ao poder de Deus, às intenções e propósitos de Deus e ao plano de Deus. Como o mal e o sofrimento estão relacionados com Deus? Como poderiam emergir num mundo que tem um Deus bondoso como único criador? Na melhor das hipóteses, a lógica da fé cristã pode afirmar que o mal não é intencional, mas conseqüência de outras intenções divinas.
Ou Deus tem uma estratégia que inclui o mal? Qual seria o propósito divino para o mal? Poderíamos falar de HIV/AIDS nesse esquema? Ou seria uma blasfêmia sequer sugerir que Deus teria um propósito para a doença? Outro sociólogo clássico da religião, Max Weber, ([1922] 1964), entendia que uma das principais funções da religião é refletir sobre tais questões e construir teorias sobre como o mal está relacionado com Deus. Tecnicamente, essas teorias são denominadas “teodicéias”, que derivam do grego “justificar (ou vindicar) a tolerância de Deus ao mal”. A história da filosofia e da teologia ocidentais está entulhada dessas teorias – muitas delas provocantes, mas na maioria inadequadas.
Segunda questão: a criação na imagem de Deus. Para o grosso da tradição, a imagem de Deus pertence apenas aos seres humanos e freqüentemente tem sido utilizada como meio de afirmar a superioridade do homem sobre o restante da natureza. Diversos teólogos da atualidade (veja LANGDON GILKEY, 1993: 175-92) insistem que, em algum sentido, o mundo criado reflete a imagem de Deus. Em que sentido poderia o vírus da AIDS refletir a imagem de Deus?
Terceira questão: o que é a cura? Em muitas línguas, saúde e salvação têm a mesma raiz etimológica. Será que a saúde pode ser definida como cura, tratamento ou cuidado? E o hospital (onde o tratamento acontece) ou asilo de doentes (onde o cuidado é exercido)? A maioria dos hospitais, em sua história, têm sido, de fato, locais de cuidado e conforto. O hospital moderno é uma invenção recente, já que foi apenas com o advento da medicina científica que os asilos de doentes se transformaram em centros de cura. Por milênios, as comunidades religiosas do mundo possuíam e administravam tanto hospitais quanto asilos de doentes.
Acredito que a cura tem um caráter sacramental, no qual se exercita a intenção de Deus de que nós sejamos completos. Essa intenção não depende de nossos atos de cura serem bem sucedidos, assim como as intenções simbolizadas nas refeições sacramentais da Comunhão Sagrada, por exemplo, não dependem das qualidades nutricionais, literalmente falando do que é comido naqueles rituais. Sejam bem sucedidos ou não, eles representam a intenção de Deus. Será que essa visão sacramental abarca tanto cuidado como a cura? E a prevenção? Essas questões são particularmente relevantes para a nossa consideração de HIV/AIDS. Até o aparecimento de “coquetéis” farmacêuticos, o consolo e o cuidado nos centros de reabilitação era a principal opção para o tratamento. Com o advento dessas intervenções médicas, a cura não é possível, mas as prevenções tomam um novo significado, prevenção de sintomas virais e prolongamento da vida sob circunstancias que vão de tolerável a bom. Esforços para produzir a vacina levam à prevenção ainda que por canais diferentes.
Mal e morte estão sempre ao fundo quando nós pensamos em cuidado nos centros de reabilitação, por um lado, e cura médica e prevenção, por outro. Os centros de reabilitação, de fato, preparam seus clientes para a morte, enquanto cura e prevenção procuram afastar a morte. A discussão pública freqüentemente fala de todas essas realidades em termos de batalha – a guerra contra a doença, morte e mal. Seria, em termos cristãos, uma guerra contra os inimigos de Deus, já que Deus está no lado da cura?
Quarta questão: o Rabino Kushner, em seu livro “When bad things happen to good people” (“Quando coisas ruins acontecem a pessoas boas”), abandona a tradição do “criado a partir do nada”. Como o fazem a maioria dos teólogos do processo (da qual ele faz parte), defende que é mais confortador reconhecer que Deus não é todo-poderoso. Deus compartilha nossas frustrações e desesperos de que a doença má não pode ser derrotada. Essa estratégia pode, no entanto, ser autodestrutiva. É certamente incompreensível que um bom Deus, que é o único criador, pudesse fazer um mundo com o mal do HIV/AIDS. Por outro lado, nós bem podemos encontrar conforto no fato de que o mal é incompreensível precisamente porque contradiz a natureza da natureza como Deus a criou. A natureza não é para ser má. Esse entendimento pode nos motivar a lutar contra o mal, já que enfatiza que, quando julgado pela natureza normativa da natureza como algo que provém de Deus, o mal não deveria existir, é anormal.
Quinta questão: questões ligadas à justiça. Se a cura tem uma dimensão sacramental, então ela pertence a todas as pessoas, porque a intenção de Deus concerne a todos igualmente. Limitar o acesso a estratégias de tratamento e medicamentos é uma tentativa de restringir a intenção de Deus.
Nós podemos concluir essas reflexões com outra série de questões:
A base para uma ética global se funda no fato de que nós somos uma espécie humana, vivendo em um complexo interconectado de distintas comunidades, em um ecossistema global que fornece tanto recursos quanto obstáculos para a vida humana, encarando os mesmos problemas fundamentais. A formação de uma ética global enfrenta desafios em duas perspectivas maiores. Por um lado, a diversidade de culturas torna difícil determinar um único programa de ética que se aplique a toda instância particular. Por outro lado, uma preocupação pela liberdade e autenticidade das culturas particulares levanta a questão da possibilidade de construir um programa ético-global, que não resulte no domínio de valores éticos de uma cultura sobre outras. Essa preocupação surge em torno da pergunta de se deveria mesmo existir uma ética global. Uma ética global repousa em uma metanarrativa global, e hoje é precisamente o prestígio de tais metanarrativas que é questionado.
O esforço de se construir uma ética global pode ser iluminado ao se observar quatro conjuntos de idéias que procedem de quatro pensadores que acreditam que tal ética é uma necessidade urgente hoje. Eu categorizei esses recursos sob as rubricas: metaproblemas, metanarrativas, metanatureza e metamétodo. Cada uma dessas abordagens é sensível tanto à questão da universalidade versus particularidade quanto à questão do potencial opressivo da metasistemas.
METAPROBLEMAS: A ANÁLISE DE SOLOMON KATZ DOS PROBLEMAS UNIVERSAIS QUE AFETAM TODAS AS SOCIEDADES
Katz usa a “macroperspectiva da antropologia” para uma interpretação dos desafios colocados à comunidade humana no mundo contemporâneo (KATZ, 1999: 238). Ele identifica “os mais sérios desafios a confrontar o mundo nas áreas de saúde, ambiente e segurança [problemas de cooperação e agressão]” (idem: 237). Na sua visão, esses “mais sérios” desafios são obviamente globais em sua natureza e extensão e, por essa razão, requerem uma resposta ética global. Ele julga que, apesar de a ciência e a tecnologia já estarem a par desses problemas e dividirem estratégias de respostas, o sucesso não é possível a não ser que os recursos religioso-espirituais da comunidade humana global se unam com a ciência e a tecnologia.
METAHISTÓRIA: A NARRATIVA DE EWERT COUSINS SOBRE A SEGUNDA ERA AXIAL
Ewert Cousins vê a situação humana sob a perspectiva das religiões mundiais e das tradições de espiritualidade. Ele descreve uma já nascente narrativa histórica que ele considera como sendo a Segunda Era Axial. Essa terminologia segue a teoria de Karl Jaspers do Primeiro Período Axial da História, de 800-200 a.C., que descreve a transformação do espírito humano em resposta a profundos movimentos culturais no Oriente e Ocidente, resultando na emergência do Confucionismo e de Lao-Tzé, dos Upanishads, de Buda e Mahavira, dos profetas judeus Elias, Isaías e Jeremias e da filosofia grega dos pré-socráticos, Platão e Aristóteles (COUSINS, 1999: 211-2).
O paralelo contemporâneo, a Segunda Era Axial, também descreve a transformação do espírito humano que rodeia o mundo inteiro. Cinco componentes marcam esta transformação: (1) Um complexo processo de convergência que transforma o anterior mais em direção à diferenciação sem abolir as diferenças. (2) A espiritualidade da terra que celebra nossas origens no mundo natural. (3) A recuperação da visão dos primeiros povos de que a raça humana é uma única tribo. (4) Uma volta para o mundo material como um locus de realidade espiritual, colocando os problemas globais do mundo real na pauta espiritual. (5) Cooperação dialogal das religiões mundiais com esforços de comprometer-se com esses problemas do mundo real, mais notavelmente paz, justiça, pobreza, discriminação e cuidado da terra (COUSINS, 1993).
Para Cousins, o mandato para uma ética global não é propriamente imposto sobre a comunidade humana global, já que emerge da narrativa da história contemporânea.
METANATUREZA: A DESCRIÇÃO DE MIHALY CSIKSZENTMIHALYI SOBRE O DESENVOLVIMENTO DO FUTURO
Csikszentmihalyi interpreta a ordem do futuro humano dentro da longa estrutura dos processos contínuos da evolução, que incluí a história humana e a localização das espécies humanas no ecossistema planetário. Ele não fala explicitamente de uma ética global, mas sua representação do futuro evolutivo se torna uma estrutura para tal ética. Essa descrição do futuro evolutivo é, de fato, uma “meta” visão da natureza na qual qualquer ética global deve funcionar.
As propostas de Csikszentmihalyi compartilham com as de Ewert Cousins uma concentração na evolução do espírito humano. Ele identifica três condições fundadas na metanatureza que são críticas a um “sistema ideacional” viável (que ele também chama de “espiritualidade”). (1) Para ser viável, tal sistema deve manter um respeito dialético pelo sagrado e o profano. Isto significa que interpretações religiosas e espirituais, embora não redutíveis a explicações científicas materiais, devem ser comensuráveis com elas. (2) As estruturas da consciência humana em desenvolvimento devem ser tomadas seriamente. Essas estruturas são descritas na teoria psicológica do fluxo de Csikszentmihalyi, que afirma que “as pessoas se sentem melhor quando fazem coisas que as fazem sentirem envolvidas, concentradas e competentes...As experiências do fluxo engajam a habilidade individual através de demandas esclarecedoras e desafiadoras por ação, e assim produzem o estado dinâmico de consciência que requer um constante reequilíbrio da razão entre desafio e habilidades” (CSIKSZENTMIHALYI, 1991: 24). A relevância dessa teoria para uma ética global começa a ficar clara na seguinte descrição:
O fato de as pessoas procurarem por experiências de fluxo até na ausência de recompensas materiais ilustra o fato de que nós precisamos mais do que a realização de necessidades genética e socialmente condicionadas. O estado de fluxo é um paradigma para o futuro porque, enquanto durar, as pessoas perdem seu sentido auto-consciente de individualidade e freqüentemente relatam um sentimento de união com entidades maiores do que o indivíduo. (idem)
(3) Terceiro, uma ética global
moverá o fulcro de sua visão de mundo do ser humano para uma rede de seres, para o processo da evolução como tal... Uma nova ética terá que dar conta dos interesses de tantas formas de vida quantas forem possíveis; e também terá que considerar a sacralidade das condições inorgânicas que tornam a vida possível. Ela terá que reconciliar a natureza humana com as leis do universo como nós as conhecemos. (ibid)
Csikszentmihalyi, como Cousins, entende que a tentativa de modelar uma ética para o futuro deve aceitar a reestrutura da consciência humana que está a caminho até mesmo agora. A nova ética estará em continuidade com o passado, como a evolução sempre está, mas sempre nos força a reconsiderar assuntos perenes sob novas perspectivas, com nova intensidade (Ibid: 25).
METAMÉTODO: A PROPOSTA DE DON BROWNING PARA A RAZÃO PRÁTICA UNIVERSAL
A contribuição de Browning para formar uma nova ética global procede de sua proposta para uma razão prática universal, que se forma em cinco níveis (Browning, 2003).
(1) Do nível visual, que é “conduzido por narrativas e metáforas sobre o caráter do contexto final da experiência”. Com respeito ao problema do HIV/AIDS na África, por exemplo, a visão de mundo da “africanidade”, que inclui idéias características sobre a relação das crianças com o divino até sua sacralidade, é imediatamente relevante ao grande número de casos de positivo para HIV em mulheres grávidas. (2) “A dimensão obrigacional”, que é “guiada por alguns princípios morais implícitos e explícitos de um tipo bastante geral”. A santidade de indivíduos e o respeito por eles podem ser um princípio relevante ao tema HIV/AIDS. (3) “Premissas sobre as regularidades básicas, tendências e necessidades humanas”, o que pode incluir hipóteses sobre as necessidades das pessoas positivas ao HIV para a expressão social e sexual. (4) “Premissas sobre padrões ecológicos e sociais disseminados, que canalizam e restringem essas tendências e necessidades”. (5) “Práticas concretas e regras informadas pelas dimensões precedentes, como os costumes relativos a monogamia e fidelidade marital, responsabilidade paterna, e assim por diante.
As propostas de Browning para a razão prática são contextuais, mesmo quando se ajustam a uma “estrutura profunda” metodológica, que eu conceituo de “metamétodo”. Esse método torna obrigatórios esforços em modelar uma ética moral de modo a levar em conta realidades encarnadas das várias culturas do mundo.
Estas reflexões certamente não esgotam as possibilidades e necessidades (expostas pelo meu tema para a Teologia Cristã). Elas são, melhor, uma paleta de considerações que sugerem não só as dificuldades do tema, mas também os recursos e possibilidades de explorar as muitas dimensões deste tema. As dificuldades apontam para a complexidade do desafio enquanto que ao mesmo tempo nos dá uma noção da urgência e excitação das tarefas que o tema põe ante de nós.
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Recebido: 15/02/2007
Aceite final: 15/05/2007
[*] Este artigo é resultante de uma palestra proferida no Simpósio “The Possibility of a Global Ethic: The Potential of a Religion-Science Dialogue on HIV/AIDS” ("A possibilidade de uma Ética Global: O Potencial de um diálogo religião-ciência sobre a AIDS/HIV"), organizado pelo Zygon Center for Religion and Science em 29-30 de Setembro 2001. Originalmente publicado como "Religion in the Context of Culture, Theology, and Global Ethics" em Zygon 38/1 (março/2003), 185–195. Tradução de Karen Alejandra Validivia e Michelle Veronese. Direitos para a língua portuguesa cedidos pelo autor e pela editora.
[**] Philip Hefner é professor emérito de Teologia Sistemática na Lutheran School of Theology de Chicago. Endereço: 11 East 55th Street, Chicago, IL, 60615-5199.