As Novas Religiões Japonesas e suas Estratégias de Adaptação no Brasil

Peter B. Clarke[*] []

Resumo

Considero, neste artigo, diversas formas de sincretismo e anti-sincretismo praticadas por religiões japonesas no Brasil, focando especialmente na Soka Gakkai (conhecida no Brasil como Soka Gakkai Internacional do Brasil, ou simplesmente BSGI), na Sekai Kyusei Kyo (Church of World Messianity; no Brasil, Igreja Messiânica Mundial do Brasil, ou Messiânica) e na Seicho No Ie (Lar do Progredir Infinito). Tentarei mostrar como o Soka Gakkai abandonou uma abordagem exclusiva e opositiva em relação a outras formas de Budismo e a outras religiões, para adotar um modelo mais experimental. Esboçarei, então, o crescimento do Messianismo como uma “ultra-religião” e, finalmente, examinarei de maneira breve a estratégia da Seicho No Ie de ambigüidade construtiva que, assim como a posição de ultra-religião do Messianismo, permite abertura para pessoas de todas as orientações religiosas e, ao mesmo tempo, de nenhuma.

Palavras-chave: sincretismo, Brasil, Soka Gakkai, Sekai Kyusei Kyo, Seicho No Ie.

Abstract

In this article I consider several types of syncretism and anti-syncretism practised by Japanese religions in Brazil focusing in particular on Soka Gakkai which is known in Brazil as Soka Gakkai International do Brasil or simply BSGI, and to a lesser extent on Sekai Kyusei Kyo (Church of World Messianity and in Brazil Igreja Messiânica Mundial do Brasil or Messiânica (Messianity) and Seicho No Ie (House of Growth). I will attempt to show how Soka Gakkai moved from an exclusive, oppositional approach to other forms of Buddhism and other religions to a more experimental one. I will then sketch the rise of Messianity as an “ultra religion” and finally, and very briefly examine Seicho No Ie’s strategy of constructive ambiguity which like Messianity’s position as an ultra religion allows it to open itself up to people of all religious persuasions and none.

Keywords: syncretism, Brazil, Soka Gakkai, Sekai Kyusei Kyo, Seicho No Ie.

Introdução

Ao se estabelecerem num novo contexto, como é o caso das religiões japonesas no Brasil, na primeira metade do século XX, e de muitas pequenas religiões que se estabeleceram na Europa a partir da II Guerra Mundial, as religiões normalmente seguem um padrão tripartite bastante previsível no que concerne a seu envolvimento com a sociedade local e com as religiões nela presentes, assim como no que diz respeito à sua maneira de reagir a ambas. Primeiramente, há o período de evitação rigorosa ou de quarentena. Isto é seguido de um envolvimento controlado que, conforme se intensifica, origina o anti-sincretismo, que por sua vez pode ser mais ou menos radical, dependendo do grau em que o senso de identidade da comunidade continua a ser medido em termos de pertença religiosa. Similarmente, quando uma religião recém-chegada é percebida como tendo se tornado muito influente e muito poderosa, isto também pode provocar a emergência de várias formas de anti-sincretismo na população, como foi o caso do Tonghak (Aprendizado Ocidental), posteriormente conhecido como Ch’ondogyo, na Coréia dos séculos XIX e XX, que reagiu contra a crescente influência cultural e intelectual do Cristianismo, e especialmente contra a aceitação da sua noção de Deus, e no Japão, onde o Kokka Shinto surgiu, no século XVIII, como uma reação à influência cada vez maior do Confucionismo. Da mesma forma que o sincretismo, o anti-sincretismo é, certamente, bastante seletivo; a oposição a uma forma pode coexistir com abertura a uma outra (CLARKE 1993). Até aqui, assumi que “sincretismo” e “anti-sincretismo” são, além de ferramentas heurísticas, termos inequívocos, o que não é o caso.

Criticando o conceito de sincretismo

É atribuído a Herskovitz o crédito por haver introduzido o termo “sincretismo” no discurso antropológico, ao usá-lo em 1941 para descrever o encontro de culturas e religiões dos descendentes de escravos africanos com aquelas do Novo Mundo. Nesta e em outras pesquisas posteriores ele empregou o respectivo termo num sentido objetivo ou neutro para significar uma forma de reinterpretação de culturas religiosas.

Stewart e Shaw, dentre outros, mostram-se insatisfeitos com o emprego do termo, alegando que o que Herskovitz oferece em seus escritos e na sua pesquisa é uma concepção de transformação cultural e religiosa como um mecanismo automático análogo à mistura de elementos em um processo químico, uma noção de mistura mecânica (STEWART; SHAW 1994: 6). Os mesmos autores também apontam para a falta de consenso em relação ao seu significado e valor, além da tendência de se usar o termo de forma subjetiva, com o objetivo de afirmar superioridade de uma tradição sobre outra(s). Droogers (1989) identificou nesta utilização subjetiva do termo uma de suas maiores fraquezas, mas, ao mesmo tempo, ressaltava o fato de que o conceito também podia ser usado com um sentido objetivo. Ele descreveu ambos os sentidos assim:

O significado objetivo básico refere-se de maneira neutral e descritiva à mistura de religiões. O significado subjetivo inclui uma avaliação deste revolvimento do ponto de vista das religiões envolvidas. De regra, o miscigenar de religiões está condenado por esta avaliação por violar a essência do sistema de crenças. (DROOGERS 1989: 7).

Ainda que muitas avaliações subjetivas de outras religiões tenham sido negativas e outras mantenham tal padrão, não se pode afirmar que essa seja a regra geral. Por exemplo, diversas religiões japonesas no Brasil veneram a Virgem Maria por verem, nela, um modelo de compaixão similar à representada pela Bosatsu (Bodhisattva) Kannon. A sacerdotisa e asceta Shinto Susuko Morishita, de 97 anos (nascida em 1919), que vive no Brasil desde 1931 e é fundadora do Santuário Shinto de Arujá (conhecido como Kaminoya Yaoyorozu: Morada das Divindades da Miríade; ou Kaminoya do Brasil: Morada Brasileira dos Kami), na grande São Paulo, explica que Jesus está acima de todos os kami “pois o mundo inteiro ora por ele” (M.S., entrevista, 14/12/05, Arujá). Em contraste, um ancião que é monge Shingon, estabelecido na cidade de Suzano (cidade localizada a cerca de 50 km de São Paulo), venera a Virgem Maria mas não Jesus, pela razão de que, enquanto a primeira é do Brasil, o segundo não o é (M.S., entrevista, 11/12/2005, Suzano).

Da mesma forma que a sacerdotisa Shinto, algumas religiões afro-brasileiras estabelecem comparações “positivas” entre suas divindades, inclusive entre a mais importante delas, Oxalá, e Jesus. Assim, as religiões podem vir a identificar umas nas outras valores e objetivos comuns, assimilando positivamente algumas de suas idéias e práticas.

Ademais, a definição supracitada do sincretismo como mistura requer explanação. Não está claro para mim em que medida a palavra “mistura” descreve, de forma consistente, o que ocorre, tanto no plano subjetivo quanto no plano objetivo, quando as religiões se encontram e participam dos rituais umas das outras, ou quando chegam a se respeitar e, de certa forma, compartilhar as mesmas crenças. Do ponto de vista dos atores envolvidos, geralmente não existe a intenção de simplesmente reunir, sem uma atenção cuidadosa, diferentes crenças. Geralmente, eles descobrem similaridades subjacentes tão significativas que tornam as diferenças irrelevantes, ou mantêm o compartilhamento de rituais como algo separado da aceitação intelectual que diz respeito à doutrina. De acordo com a maioria dos mais de quinhentos monges budistas da tradição Theravada do Sri Lanka que adotavam, em seus próprios templos, o ritual de cura do Messianismo conhecido como johrei, quando visitei aquele país em 2001, não há nenhuma mistura em nível intelectual na sua mente, pois, como eles explicam, esse ritual nada tem a ver com a filosofia Budista (S.L., entrevista, 01/2005).

Muitos praticantes do Candomblé, religião afro-brasileira, partilham da mesma visão no que diz respeito ao seu envolvimento com o Catolicismo neste país. Verger argumentou que esse envolvimento era melhor descrito como um processo de “justaposição” do que como sincretismo. Ele próprio filho de santo, insistiu que os membros do Candomblé eram plenamente conscientes das diferenças entre o Catolicismo e do Candomblé, e que, enquanto pertencentes a ambas as tradições, se esforçavam em não misturar o que consideravam ser católico e o que consideravam ser de origem africana (Verger 1996). Essa separação intelectual nítida entre as duas religiões é, por vezes, dotada de expressão simbólica durante as cerimônias. O Pai de Santo Balbino, por exemplo, líder de um templo de Candomblé em Lauro de Freitas, município próximo de Salvador, capital da Bahia, é contra qualquer convergência intelectual ou doutrinária entre as tradições africanas e católicas às quais pertence, removendo o crucifixo que carrega no pescoço um pouco antes de vir a ser completamente possuído por uma divindade africana. Essa retirada do crucifixo não é um simples gesto, mas constitui um ritual específico de manutenção de limites dentro do ritual maior (B., entrevista, Lauro de Freitas, 15/08/1996).

As objeções de Verger em relação ao uso do termo sincretismo se distinguem daquelas levantadas por Stewart e Shaw e daquela apontada por Leach (1962), dentre outros autores. A razão de Leach para descartar o termo é que o que ele descreve não passa de um lugar-comum. Esse autor insistia em afirmar que o processo de revolvimento de idéias religiosas é um fenômeno tão universal, que não faz sentido tratá-lo como se ele fosse raro e necessitasse de um conceito especial para propósitos de análise. De fato, uma vez que seria difícil imaginar um contexto em que não existe sincretismo, o termo - argumentou ele – esvazia-se de todo conteúdo analítico.

Uma possível resposta a tal objeção seria argumentar que, apesar de o sincretismo estar em todo lugar, isto não nos daria motivos suficientes para abandonar o conceito, como também não nos daria motivos para abandonar o conceito de sectarismo, um fenômeno da religião que se encontra em todo lugar. A fusão ou o sincretismo religioso raramente toma a mesma forma. Ele ocorre em contextos que variam tanto de um para outro, que chegam a abranger uma vasta gama de estratégias e tipos de sincretismo. Ademais, com a globalização, a subseqüente convergência progressiva entre as religiões e o deslocamento de crenças e de rituais que a acompanham, as fontes do sincretismo estão se tornando cada vez mais abundantes, resultando em formas cada vez mais inesperadas e inovadoras no contexto brasileiro, além de outros, conforme mostraram Rocha (2006), Shoji (2004) e Usarski (2002), dentre outros.

Nem todas as formas de sincretismo são voluntárias, no sentido de serem deliberada e conscientemente promovidas. Um caso significativo que alude a isto é a introdução em certos templos budistas no Brasil, os quais, em princípio, se opõem ao sincretismo de um rito batismal “católico” como forma de evitar a possível discriminação contra crianças de pais budistas que não foram “batizadas” e não possuem um padrinho “católico” (SHOJI 2004: 185).

As religiões japonesas no Brasil

A imigração japonesa para o Brasil teve início em 1908 e, atualmente, estima-se que existam cerca de 1,3 milhão de pessoas de descendência japonesa, a maioria vivendo na região da grande São Paulo. Existem outros grupos no Estado do Paraná e populações menores em Estados do nordeste e norte, como a Bahia, o Pará e o Amazonas. Durante os últimos trinta anos, centenas de milhares de descendentes dos primeiros imigrantes japoneses retornaram ao Japão como imigrantes econômicos.

A maior parte dos primeiros japoneses desembarcados no Brasil eram trabalhadores agrícolas e vinham em unidades familiares, sendo que o governo brasileiro insista em, no mínimo, três “enxadas” por grupo. Os salários eram baixos, o analfabetismo alto, os serviços médicos e de nutrição, precários. Número considerável de pessoas morreu, principalmente de malária, e possivelmente, em alguns casos, devido a doenças decorrente do consumo do fumo de corda – não havia cigarros industrializados (HANDA 1980: 128). Alguns romperam seus contratos e fugiram para as colônias, nas quais se assentariam para construir uma vida melhor para eles e suas famílias. “Livres” de agora em diante, investiram em terras de baixa qualidade, montaram cooperativas agrícolas e construíram instalações que tinham a escola elemento fundamental.

Conforme demonstrou Handa, inicialmente houve pouco interesse da parte dos imigrantes japoneses em relação a praticar as religiões japonesas, que eles tendiam a encarar como um “fato geográfico” no sentido de que sua devida prática pertencia ao Japão e era verdadeiramente efetiva naquele contexto apenas. Havia muito poucos oficiais religiosos de formação, e aqueles que podiam ler com a piedade e a gravitas necessárias eram convidados a presidir as cerimônias, sendo conhecidos como “bonzos feitos na hora”, monges criados na ocasião, ou “bonzos substitutos”, monges substitutos (MAEYAMA 1983).

Poucos imigrantes da primeira geração tornaram-se de fato cidadãos brasileiros, sendo que muitos se consideravam “kimin”, isto é, pessoas indesejadas. Não apenas eles se opunham à miscigenação com brasileiros não-japoneses, como também mantinham distância da visão de mundo educada, menos insular e mais moderna, dos nissei, ou segunda geração de imigrantes. Ademais, os imigrantes japoneses após a II Guerra referiam-se a si mesmos como homens “Meiji”, ou seja, verdadeiros japoneses, em contraste com outros modos, que viam como superficiais, de ser japonês.

Uma mudança dramática ocorreu após a II Guerra Mundial, quando muitos nissei se resignaram a permanecer no Brasil para, conforme expressavam, ter seus restos mortais enterrados no país onde estavam os seus filhos (SMITH 1979: 59). Seus sentimentos em relação à terra natal eram complexos: muitos se sentiam ignorados e negligenciados pelo Japão, consideravam as relações interpessoais lá bastante fechadas e formais, e começaram a preferir o estilo de vida brasileiro, com sua particular tendência à extroversão e à tranqüilidade das relações interpessoais. Eu conversei com muitos nissei que retornaram ao Japão pouco antes ou logo em seguida à II Guerra, com a intenção de lá permanecer, e que tiveram de voltar ao Brasil após alguns anos por não terem conseguido se adaptar àquela que era uma vida mais “regrada”.

Com a decisão de permanecer no Brasil e seus descendentes cada vez mais conscientes de sua identidade brasileira, deu-se o desenvolvimento de uma vida religiosa mais formal entre os japoneses. Conforme vimos, muitos dos imigrantes da primeira geração acreditavam que as religiões estavam associadas a regiões culturais e geográficas específicas, o que significava que os rituais japoneses só podiam ser devidamente realizados no Japão. No entanto, conforme um número cada vez maior de japoneses decidia fazer do Brasil o seu novo lar, tornava-se necessário para a geração mais antiga introduzir ritos funerais ancestrais, que eram executados da maneira correta, de acordo com a tradição - caso contrário, seriam ineficazes.

A partir da década de 50, um número cada vez maior de novas religiões japonesas, incluindo a Seicho No Ie, a Igreja Messiânica e a Soka Gakkai, começaram a disseminar seus ensinamentos no Brasil, especialmente para os descendentes de imigrantes japoneses. Logo ficou claro que, se uma nova religião quisesse sobreviver e prosperar, teria de ir além das fronteiras da comunidade japonesa, em direção à própria sociedade brasileira, em busca de seus cidadãos. Caso contrário, o destino seria permanecer como apêndice em relação ao mainstream, sem influência e economicamente inviável, com pouca ou nenhuma perspectiva de futuro. Assim, para evitar esse fim, muitas das novas religiões começaram a considerar maneiras de ampliar o seu apelo e de mudar sua imagem e identidade. Vistas até então como religiões étnicas cuja missão estava confinada à comunidade japonesa no Brasil, agora elas buscavam tomar a aparência de religiões universais, ainda que com características japonesas específicas. A retenção destas foi vista como essencial não apenas no sentido de que proporcionavam uma base sólida, como também porque o sucesso em um mundo progressivamente sujeito às forças da globalização, tanto no sentido objetivo quanto objetivo, exigia que as novas religiões oferecessem algo específico, que não estivesse prontamente disponível, através dos seus ensinamentos e de suas práticas.

A primeira e mais eficaz reforma foi a introdução do português, junto com o japonês, como idioma oficial dos ensinamentos e dos rituais. Em seguida, as novas religiões japonesas, ou shinshukyo, com a experiência acumulada no Japão, ofereceram aos brasileiros que passavam por uma acelerada modernização - e que experimentavam seus piores efeitos, tanto no âmbito social quanto no psicológico - não apenas uma forma de cura, como também uma ética para o dia-a-dia em um ambiente competitivo, dominado pela insegurança, além de novas formas de comunidade, ritos para reafirmar os laços familiares rompidos pela imigração, técnicas de lidar com o stress e de preparação mental para superar os desafios impostos pela nova ordem econômica e, por fim, reverter esta última para o seu próprio benefício espiritual e material.

Conforme se expandiam e se urbanizavam, estas religiões foram forçadas a lidar com a questão das suas relações com outras religiões, em particular o Catolicismo, um número cada vez maior de igrejas protestantes, as religiões afro-brasileiras e o Espiritismo. Além disso, o crescimento fenomenal dos adeptos das novas religiões japonesas discutidas aqui, entre as décadas de 70 e 80, começou a diminuir no início dos anos 90, e já em meados dessa década começaram a aparecer sinais visíveis de declínio. O impacto econômico desse declínio foi inevitável sobre esses movimentos que haviam empreendido projetos em larga escala para o seu crescimento, incluindo a construção de locais sagrados e fazendas dedicadas ao cultivo de bens naturais (orgânicos), dentre outros. A partir desse revés vieram novas maneiras de se pensar a questão do recrutamento e da expansão. Algumas se reformularam para aparentar ser mais budistas do que antes supunham ser desejável, acreditando que a nova imagem seria mais atraente agora aos brasileiros, enquanto outras despiram suas roupagens budistas ou xintoístas.

A Soka Gakkai em relação ao “puro” Budismo e outras religiões

Com o propósito de ilustrar estas transformações, considerarei aqui as mudanças nos ensinamentos da Soka Gakkai e em suas atitudes em relação às outras religiões. A isto, se seguirá uma consideração acerca das manobras da Igreja Messiânica para se apresentar como uma ultra-religião e, finalmente, farei uma breve revisão da estratégia de ambigüidade construtiva da Seicho No Ie.

A Soka Gakkai (Sociedade Educacional de Criação de Valores) foi oficialmente fundada em 1937, por Tsunesaburo Makiguchi (1871-1944), como uma organização budista laica. Entre 1944-1958, sob a liderança de Josei Toda (1900-1958), tornou-se um movimento budista muito bem organizado, administrado com eficácia, altamente separatista, senão fundamentalista. O conteúdo da doutrina de proselitismo da Soka Gakkai, baseado no Kyohan[1] do Budismo Nichiren, em sua forma aprovada em 1954 por Toda, reflete sua abordagem exclusiva em relação a outras escolas budistas e a outras religiões (KAMSTRA, 1989). O propósito último do cânone era a supressão (do japonês, shakubuku) de todas as formas de Budismo e de todas as outras religiões cujos ensinamentos e práticas não estavam de acordo com os critérios estabelecidos pelo verdadeiro Budismo ou a verdadeira religião.

O cânone divide as religiões em dois tipos: aquelas de fora (gedo) e as de dentro (naido), incluindo na segunda categoria as religiões superiores e a forma superior do Budismo, a tradição Mahayana. Ao mesmo tempo em que o cânone afirma ser o Budismo Mahayana superior ao Hinayana, ele diferencia entre as formas verdadeira e provisionais do primeiro. Ele afirma que certas escolas, incluindo a esotérica Shingon, não compreenderam o verdadeiro significado do Budismo e que, portanto, seus ensinamentos são apenas provisionais. Dentre os critérios adotados para distinguir o Budismo Mahayana verdadeiro daquele provisional, o mais importante é o Sutra de Lótus, o que Toda estudou enquanto estava na prisão em 1944 e que lhe teria agraciado, então, com o sentido da vida (MURATA, 1971: 89). De acordo com a versão de 1954 do cânone da Soka Gakkai, o verdadeiro Budismo Mahayana consiste na adesão às doutrinas do Sutra de Lótus, que se completam com os ensinamentos de Nichiren e com a recitação do mantra previamente mencionado, por ele desenvolvido – “Ponho minha fé na maravilhosa Escritura de Lótus” (do japonês, Nam-myoho-Rengekyo). Na prática, isso significava que apenas as seitas derivadas de Nichiren eram autenticamente budistas, e a mais autêntica dentre elas era a Nichiren Shoshu.

No que diz respeito à distinção entre religiões “verdadeiras” e “falsas”, o cânone diz que todas as religiões, à exceção, do Budismo são falsas. O que torna o Budismo verdadeiro é seu caráter alegadamente científico, uma reivindicação que veremos se repetir na Brasil Sekyo, o jornal brasileiro do movimento. Ademais, o Budismo se coloca como relevante, em sentidos que o Cristianismo e outras religiões não o são, em relação ao mundo moderno no qual a mentalidade científica prevalece. O Cristianismo seria, portanto, inferior ao “verdadeiro” Budismo, e similar ao tipo de religião de nível inferior que é o Budismo Amida, desqualificado como ilegítimo na alegação de que se baseia em uma fábula vazia da Terra Pura do Oeste (“The Western Pure Land”) (KAMSTRA 1989: 42).

Em relação às crenças cristãs centrais, que são aceitas quase universalmente no Brasil, sem nenhum questionamento, o cânone é desdenhoso, descrevendo a concepção imaculada, a ressurreição e a ascensão de Jesus como fábulas. Ademais, ele enfatiza que o Cristianismo não tem nenhuma explicação lógica e científica para as curas e outros milagres atribuídos a Jesus. O Budismo, por sua vez, possui, na lei da causalidade, uma explicação para certas curas. Os ensinamentos fundamentais do Cristianismo seriam reprovados no teste definitivo de uma pretensão de verdade por contradizer as chamadas “leis da ciência do universo” (KAMSTRA 1989: 41). Dentre os exemplos dados estão a ressurreição de Jesus e a concepção imaculada de Maria, a santa mais popular do Brasil.

Sobre este último milagre, o cânone afirma: “Não importa de que ângulo se considere... uma concepção imaculada é contrária às leis da ciência do universo. É absolutamente impossível que uma virgem possa engravidar sem um pai humano...” (KAMSTRA 1989: 41). Quanto à base empírica de uma crença cristã ainda mais fundamental, a ressurreição de Jesus, este não teria sido um evento real, mas o resultado da imaginação das pessoas que se encontravam num estado anormal (Idem).

Rejeitada também é a noção de um Deus Criador. Neste aspecto, o cânone afirma que todos os seres vivos e mortos do universo, sem nenhuma exceção, não foram criados por outro Ser. Nós recebemos nossas vidas dos nossos pais e não fomos feitos por Deus ou por Buda (Ibid.). A noção de Deus como espírito é considerada uma concepção errônea, pois todos os seres possuem corpo e mente. Um espírito separado da matéria não pode existir (KAMSTRA 1989: 42). Todas as qualidades atribuídas a Deus pelos teístas são, na verdade, qualidades humanas, pois não existe nenhuma outra lei além da causalidade, assim como não existe nada tal como um Deus absoluto.

A intenção aqui era claramente fazer com que a Soka Gakkai se afirmasse soberana, como a forma mais genuína e mais autêntica não apenas de Budismo, mas de religião. O cânone busca, desta forma, excluir todas as outras formas de Budismo e de religião, relegando-as à categoria de caminhos exteriores (“outer”) ou provisionais ou de nível inferior. É contra essa perspectiva filosófica e doutrinária, e em resposta às outras formas de Budismo e demais religiões, que a abertura e a tolerância mais recentes em relação às outras tradições filosóficas precisam ser avaliadas.

Soka Gakkai e a coexistência pacífica

O presidente da SGI (Soka Gakkai International), Daisaku Ikeda (1928-) estava consciente, quando fundou a filial brasileira do movimento, em outubro de 1960, de que a distância teológica e cultural entre o Budismo Nichiren e o Catolicismo latino era um potencial obstáculo para o desenvolvimento da Soka Gakkai no Brasil. Ele comparava sua jornada pioneira ao Brasil, em outubro de 1960, àquela dos primeiros missionários católicos no Japão no século XVI: era uma viagem a um território desconhecido, sem informações acerca da cultura, dos costumes e da língua das pessoas que ele buscava converter (IKEDA 1994: 181). Não obstante, insistia Ikeda, o Brasil desempenharia o papel central na estratégia global do movimento. Ele seria encarregado, anunciava, da missão de difundir o Budismo Nichiren não apenas através da América Latina, mas pelo mundo todo (IKEDA 1994: 191).

Apesar dos interesses de Ikeda e a sua ambição global, há bastante evidência de que o cânone do shakubuku influenciou em grande medida o pensamento e a atitude da Soka Gakkai em relação a outros grupos budistas e ao Catolicismo no Brasil até a década de 70. De lá até o começo da década de 90, a Soka Gakkai do Brasil parece ter optado por uma combinação estratégia entre shakubuku, sua evangelização agressiva, que visava à anulação de outras religiões, e shoju, ou coexistência, a abordagem aconselhada pelo presidente Ikeda em 1964 para todos os países onde a Soka Gakkai estivesse além do Japão. Em relação às religiões afro-brasileiras e ao Espiritismo, a estratégia era decididamente shakubuki até a metade dos Anos 90.

Apesar do seu missionarismo agressivo, a Soka Gakkai adotou desde o começo o que poderia ser considerada uma atitude pública “politicamente correta” face ao Catolicismo, reconhecendo, como o fazem todas as religiões japonesas, sejam elas antigas ou recentes, que este constituía uma parte integral da vida religiosa e cultural brasileira. Assim, dentre as medidas recentes tomadas para garantir a adaptação do movimento à cultura brasileira, estava o abandono do hobo barai, uma prática que obrigava os novos adeptos a eliminar de suas casas e de suas vidas quaisquer traços de sua religião anterior, incluindo medalhas, estátuas e cruzes. Ao mesmo tempo, a doutrina do karma era interpretada de uma maneira bastante positiva. Ela era entendida não como a causa da sorte ou do azar atual do indivíduo, mas como fundamentalmente motivacional, sendo seu principal propósito inspirar pessoas para alcançar realizações cada vez maiores (CLARKE 2000a, 2000 b, 2005).

A abordagem politicamente correta da Soka Gakkai fica evidente através do seu periódico semanal, Brasil Seikyo, que inclui artigos instruindo os membros sobre como relacionar-se com o Catolicismo, um dos quais, escrito pelo Sr. Sato, o então diretor executivo da filial brasileira do movimento, é digno de ser comentado com a devida atenção. Intitulado “Sejamos úteis ao Brasil”, o artigo enfatizava que o Budismo Nichiren era a única forma autêntica e legítima de Budismo e a religião que salvaria a humanidade, pois “era a mais correta e maravilhosa religião do mundo” (Brasil Seikyo [Arquivos da Soka Gakkai], São Paulo, 15 de abril de 1966, 3). Esta verdade, continuava o artigo, merecia toda a fé e deveria ser difundida com convicção e energia, mas sem a diminuição das demais religiões e sem o hobobarai, cuja prática os membros eram aconselhados a não estimularem, à época, no Brasil. Assim, neófitos e outros membros que ainda possuíam ícones e outros símbolos de suas religiões anteriores eram dispensados da obrigação de removê-los de si e de suas casas. Tais objetos podiam ser mantidos, conforme os membros eram informados, até o momento em que, através da prática do Budismo Nichiren, eles adquirissem sua própria cópia do objeto de devoção, a escritura sagrada ou Gohonzon, do monge e fundador do Budismo Nichiren, Nichiren Daishonin (1222-1282).

Ademais, os membros desfrutavam da liberdade de se relacionar com os católicos e até participar em algumas de suas cerimônias. Assim, caso fosse solicitado por um familiar ou amigo freqüentar um batismo ou outros ritos de passagem numa igreja católica, os membros deveriam fazê-lo sem hesitação, pois “seria pior para nós proibi-los de ir” (Brasil Seikyo, 15 de abril de 1966, 3). Esta sensibilidade direcionada à cultura e ao sentimento católicos era motivada mais do que por mero pragmatismo. Também se baseava na crença firme e na confiança sólida em relação à eficácia e ao poder singular da prática da própria Soka Gakkai em proteger os seus membros contra más influências advindas do contato com o Catolicismo e com qualquer outra religião, e, ao mesmo tempo, na noção de uma clara separação entre a esfera religiosa e as demais esferas da vida.

Assim, ao traçar uma clara distinção entre a religião e outras esferas da vida, a Soka Gakkai foi capaz de permitir um nível considerável de interação com o Catolicismo, isto inclusive no importante âmbito da educação. Os membros eram instados a não se preocupar com o fato de seus filhos freqüentarem escolas Católicas, “porque isso não tem nada a ver com religião” e, mesmo que aparecem dificuldades no âmbito da fé, as crianças seriam protegidas pelo poder invencível do Gohonzon ou objeto de veneração (Brasil Seikyo, 15 de abril de 1966, 3).

Não obstante tais concessões ao envolvimento religioso, social e educacional, em nenhum momento as fronteiras teológicas foram borradas. Outro artigo publicado na Brasil Seikyo (11 de novembro de 1967, 3), definia os critérios de acordo com os quais a autenticidade das outras religiões deveria ser avaliada. Os leitores se deparavam com três testes de autenticidade: a primeira era uma prova de literatura, a segundo teórica, e a terceira, derivada da experiência. A primeira prova –literatura – poderia ser encontrada nos escritos (do japonês, gosho) de Nichiren Daishonin, descritos como impecavelmente lógicos, racionais e científicos - relevantes, portanto, para o mundo moderno. A segunda prova era uma conseqüência lógica da primeira, no sentido de que, comparados ao Cristianismo, os ensinamentos de Nichiren Daishonin ofereciam uma filosofia totalmente compreensiva e apropriada ao mundo moderno, pois diferentemente dos ensinamentos cristãos, não se baseavam em milagres, considerados irrelevantes à vida contemporânea. A prova da experiência, ou prova real, conforme se explicava, era derivada do princípio de que a crença tanto pode beneficiar como prejudicar o indivíduo. O maior benefício do Budismo Nichiren seria, conforme se alegava, a realização da felicidade plena, adquirida através da prática nesta vida. Os leitores não precisavam se preocupar com uma investigação detalhada e com uma análise das “escrituras” para confirmar isso, pois os detalhes mais intrincados do verdadeiro Budismo teriam sido incorporados ao Gohonzon, assim como “o princípio da eletricidade foi incorporado nos diversos aparelhos domésticos” (Brasil Seikyo, 11 de novembro, 1967, 3).

Durante as décadas de 60, 70 e 80, a BSGI investiu um grande esforço para demonstrar a compatibilidade entre o pensamento científico moderno e o Budismo. O periódico Brasil Seikyo publicava artigos e mais artigos a respeito da relação entre o Budismo e a ciência contemporânea, incluindo explicações detalhadas que ilustravam, por exemplo, a completa sintonia entre a doutrina Budista e a teoria da relatividade (Brasil Seikyo, 30 de março de 1968, 3). Outro artigo abordava a teoria da evolução para sustentar a concordância entre a visão do Budismo acerca das origens da vida humana e aquela da ciência moderna, e como a teologia cristã falhava em acompanhar esta “... questão sumamente importante levantada pela biologia” (Brasil Seikyo).

Para além da tolerância: o caso da Soka Gakkai

No meio dos anos 90, após vários anos sem crescimento e sem perspectiva de que a maré viraria a seu favor novamente, a Soka Gakkai começou a desenvolveu uma abordagem mais flexível em assuntos religiosos relacionados ao Catolicismo, às religiões afro-Brasileiras, ao Espiritismo e até mesmo às outras formas de Budismo. Esta mudança acarretou mais do que a substituição do shoju, ou coexistência pacifica com outras religiões e filosofias, pelo shakubuku.

Muitos dos mesmos princípios adotados pelo movimento na década de 50, e por muito de sua história no Brasil, para distinguir entre Budismos “verdadeiro” e “provisional” e as religiões “externas” e “internas” (outer, inner), vieram progressivamente a ser interpretados de maneira inclusiva, em oposição a uma maneira exclusiva. Além disso, crenças fundamentais sustentadas por outras religiões, como a crença em Deus, outrora consideradas “irreconciliáveis” com os ensinamentos da Soka Gakkai, deixaram de ser consideradas doutrinas “não-científicas”, que relegavam aquelas religiões às categorias de “nível inferior” e “externa”. Contrariamente, uma estratégia de sincretismo reflexivo era agora encorajada, buscando encontrar paralelos entre os ensinamentos da Soka Gakkai e das outras religiões.

Esta nova versão da BSGI não deixava de estabelecer os seus limites próprios, e um deles dizia respeito à crença em um Deus pessoal que intervém nos assuntos humanos e é considerado responsável por tudo o que acontece. Os adeptos brasileiros entrevistados enfatizaram que são obrigados a refutar esta idéia, ainda que com sensibilidade e respeito, já que ia contra um princípio fundamental da Soka Gakkai, segundo o qual cada indivíduo é responsável por suas ações. Por outro lado, eles são livres para estabelecer paralelos entre as idéias budistas fundamentais e a noção de um Deus Criador, e até mesmo propô-los a potenciais recrutas. Em conversas com membros no Estado da Bahia – região ainda profundamente influenciada por uma tensa mistura de Catolicismo, religião popular, várias formas de religião Afro-brasileira e Espiritismo, mas que desconhece os princípios fundamentais do Budismo – essa noção era freqüentemente justaposta com o mantra Nam-myoho-Rengekyo do movimento (“Ponho minha fé na maravilhosa Escritura de Lótus”) (CLARKE 2000a).

Aquele que outrora fora um movimento excludente também passou a abrir-se às demais religiões de outras maneiras, como aceitar o princípio de diversidade religiosa entre os seus adeptos e a filiação a mais de uma fé. Novos recrutas não eram mais obrigados a rejeitar sua religião anterior. “Antigamente”, explicou o líder atual da Soka Gakkai no Brasil, “havia muito disso, mas agora terminou. Ir à Igreja ou à Umbanda ou a uma sessão Espírita é decisão de cada um.”[2]. Os líderes passaram a aceitar que os interessados em entrar para a Soka Gakkai teriam de decidir por si mesmos em que acreditar, “pois todo mundo tem inteligência suficiente para saber o que é melhor para si.”[3] Esta perspectiva permite à Soka Gakkai competir em termos mais favoráveis com as novas religiões japonesas no Brasil e, em particular, com a Seicho No Ie (Lar do Progredir Infinito) e com a Sekai Kyusei Kyo (Igreja do Messianismo Mundial), ambas com um número muito mais elevado de adeptos (CLARKE 2000a).

Se a abertura não levou a um forte crescimento, parece ao menos ter segurado o declínio de meados ao fim da década de 90. Além disso, muitos daqueles que entram para a BSGI são atraídos por seus programas ecológicos e de direitos humanos, que se tornaram o foco principal (“which have moved center stage”), criando uma imagem do movimento no Brasil como sendo uma filosofia humanista radical oriunda do Budismo mais do que uma religião per se. Os próprios membros enfatizam que a BSGI é mais do que uma religião ou, conforme comentou um membro carioca: “Não é religião por ser religião”. Para os membros, a Soka Gakkai é um movimento de “Budismo engajado” e, mais do que citar a doutrina para sustentar sua autenticidade, a prova de que a Soka Gakkai é a verdadeira forma de Budismo deve ser buscada no impacto que ela tem nos indivíduos e na sociedade; se falha em transformar as pessoas e o ambiente, então não pode ser, segundo os entrevistados, nem Budismo genuíno nem religião genuína - uma clara mudança no modo de pensar desde a época de Josei Toda.

Sendo o seu objetivo a transformação mundial, a Soka Gakkai Brasil não mais se preocupa em converter todas as pessoas. Sua meta agora é moldar o pensamento e a atitude de uma minoria substancial do Brasil, fazendo-os engajar-se na transformação do seu meio-ambiente como pré-condição para transformar o mundo. A mentalidade e o comportamento dessa minoria, acredita-se, terá um profundo e duradouro impacto no resto da população. Enquanto isso, dada sua nova postura inclusiva em relação às outras religiões, todos aqueles para quem é importante a fé em Deus, Jesus, a Virgem e nos milagres, podem manter suas crenças mesmo dentro da BSGI. A tendência do movimento a ser tolerante em relação à diversidade em termos de crença e pertença religiosa não diminuirá a importância crucial que atribui ao poder de sua fé na Escritura de Lótus e no seu mantra.

A estratégia de ultra-religião da Igreja Messiânica Mundial

Conforme veremos, a Igreja Messiânica também distingue entre religiões “verdadeiras” e “falsas”. Foi fundada por Mokichi Okada (1882-1955) no ano de 1938 em Tóquio, e iniciou suas atividades no Brasil em 1955. Dentre os seus membros não há uma visão uniforme sobre quem é Okada, conhecido como Meishu Sama, ou líder espiritual iluminado, e seu papel desde que morreu. Para a maioria dos membros brasileiros, ele é o intermediário entre Deus (Natureza) e a humanidade, enquanto outros o descrevem como o salvador; outros, ainda, referem-se a ele como uma espécie de Jesus. Ele é o profeta de Deus para a Nova Era que em breve se iniciará. Okada se apresentava como o profeta escolhido por Deus para explicar a Verdade à época presente (OKADA 1999: 19).

Okada definia a religião verdadeira como uma daijo, ou religião universal (OKADA 1999: 134). Ele insistia que o propósito de tal religião deveria ser a busca da harmonia e a eliminação do conflito, de modo a melhorar a vida das pessoas. As religiões que fazem isso são descritas como progressivas (OKADA 1999: 146). Outras características de uma religião progressiva são a sua determinação de engajamento com o mundo em transformação e não ficar voltando ao passado, para o ponto de partida de seus fundadores. Ele afirmava que a religião é uma questão de realização da Verdade, e esta está em viver de acordo com as leis da Natureza em seu estado simples. Okada dizia que o que distinguia o Messianismo de outras religiões era sua abordagem inclusiva. Sua missão proposta por Deus era trabalhar como um movimento espiritual que transcende a religião nela mesma, bem como os particularismos e o caráter exclusivista de cada uma delas (OKADA 1999: 18-19).

Okada foi fortemente motivado em tudo o que fez pelo desejo de colocar o Japão e a espécie humana em um novo curso após a catástrofe da II Guerra Mundial. Ele acreditava que a humanidade ainda se encontrava num estágio de barbárie, e que o remédio deveria ser buscado na sua elevação através da artes e ofícios. O Japão, tão favorecido por natureza e tão talentoso nesse campo, estava predestinado a desempenhar um papel especial nisso. Ele poderia contribuir determinantemente para uma revolução da consciência humana através da arte e da religião daijo, levando a humanidade à paz duradoura. Deriva daí a construção de modelos de paraíso terrestre, empreendidos por Okada no Japão, dos museus de arte e do papel do sangetsu e da distribuição de flores como método de aumentar o nível de consciência espiritual entre as pessoas. Ele insistia que os seres humanos receberam uma completa liberdade de escolha para construir o paraíso ou o inferno na Terra.

Assim como outras religiões japonesas, novas ou antigas – as escolas do Budismo Terra Pura, Zen, Shingon e Tendai possuem templos no Brasil –, a Igreja Messiânica começou como uma religião pequena e étnica. Ao tempo de sua chegada, as relações da comunidade japonesa e do resto da sociedade ainda eram, muito embora isso estivesse mudando, consideravelmente restritas a contatos sociais e comerciais imprescindíveis. Contudo, num período de tempo relativamente curto, começando na década de 60, a Igreja Messiânica do Brasil experimentaria um rápido crescimento, fazendo da sua fortuna e da sua influência no país algo bastante diferente em relação ao contexto norte-americano, seja no continente quanto no Havaí, onde não possui mais que 5 mil membros, e ao europeu e ao australiano, onde seu número de adeptos é também relativamente pequeno (CLARKE 2000b).

Ao mesmo tempo em que o veloz progresso da Igreja Messiânica no Brasil indica o poder mobilizador e motivador da crença milenarista, o dinamismo que esta crença pode gerar está inclinado a evaporar rapidamente. Assim, tem constante necessidade de estímulo e cultivo, especialmente onde estão envolvidos compromissos financeiros de peso, tais como os relacionados à construção de um modelo de paraíso terrestre e de uma Cidade da Nova Era. A Igreja Messiânica no Brasil, portanto, está constantemente elaborando esquemas para garantir que a crença milenarista permaneça ativa e forte, e entre as iniciativas mais recentes voltadas a este propósito está a campanha “Flor para um mundo melhor”. As flores aparecem proeminentemente como um símbolo de transformação na espiritualidade Messiânica, e tais campanhas envolvem a feitura e distribuição de flores para cada lar brasileiro – uma operação em massa.

Dois outros projetos de peso, um já concluído e o outro em fase de planejamento, reforçam a auto-percepção da Igreja Messiânica como ultra-religião. O primeiro, o Solo Sagrado, já foi substancialmente concluído. O Solo Sagrado está situado em Guarapiranga, no Estado de São Paulo, e foi oficialmente inaugurado em 9 de novembro de 1995. Milhares de membros brasileiros se voluntariaram, oferecendo suas habilidades e força de trabalho, para construir estes 370 mil metros quadrados de espaço, um modelo do paraíso na terra, contornando a represa de Guarapiranga que fornece água para a cidade de São Paulo. O Solo Sagrado levou quatro anos para ser construído e provou ser um meio altamente eficaz de motivar os membros já existentes e atrair novos membros, resultando por fim na criação de um vasto complexo de jardins, salas de leitura para estudantes de artes e ofícios, além de espaços para meditação, recreação e atividades de lazer.

Cumpre notar que o desenho do templo principal e da parte central do Solo Sagrado baseia-se no formato de Stonehenge, e se erige como uma praça no meio dos jardins. A decisão de usar esse modelo foi inspirada por uma “fonte sobrenatural” que, em sonho, revelou ao presidente da Igreja Messiânica no Brasil, o Reverendo Tetsuo Watanabe, seu desejo de que o desenho fosse daquele jeito (T.W., entrevista, 08/2006).[4] A escolha do modelo também foi feita para demonstrar a singularidade da missão da Igreja Messiânica. A escolha de um símbolo distante de qualquer uma das grandes religiões mundiais era, conforme explicou seu presidente, uma maneira tanto de expressar a singularidade da Igreja Messiânica quanto de evitar rivalidade com as mesmas. Na condição de símbolo anterior às outras religiões, seus princípios fundamentais encapsulavam aqueles de outras religiões e não excluíam nenhum.

Ainda mais ambicioso e mais caro do que o Solo Sagrado será o projeto de construção da Cidade da Nova Era - o sonho da Igreja Messiânica de construir uma Cidade da Nova Era em um local apropriado, que permita a implementação da sua filosofia de vida através da agricultura natural.

Diferentemente da cidade milenarista típica da história, esta estará aberta a todos. Na compreensão da Igreja Messiânica, ser intolerante e excludente seria auto-prejudicial na medida em que todos devem aprender a viver de acordo com a Lei da Natureza. Deste modo, outras religiões serão bem-vindas e a relação com elas será de cooperação. Lhes caberá decidir, conforme explica o presidente mundial do movimento, se farão o johrei, a cura espiritual da Igreja Messiânica, em nome de Jesus, Alá ou Krishna (T.W., entrevista, 08/2006). Padres católicos já celebram missas em Guarapiranga e também recebem o johrei, assim como inúmeras freiras e católicos leigos. Por sua vez, os membros da Igreja Messiânica, particularmente os mais velhos, que aparentemente acham mais difícil, nas palavras de um dos ministros veteranos da igreja, “lançar luzes sobre a história” (entrevista, 12/2005, São Paulo)[5], continuam a freqüentar os serviços católicos.

Um aspecto intrigante da estratégia da Igreja Messiânica em relação a outras religiões é a maneira com que parece se mover através de dois caminhos distintos simultaneamente: por um lado, na direção de uma “ultra-religião”, ou religião daijo, e, por outro, na direção de uma religião shojo particularista. Seu compromisso com a “ultra-religião” pode ser interpretado como parte de uma estratégia de ir além das comunidades japonesas e atrair a população não-japonesa do Brasil, e não necessariamente como um desejo de integração religiosa. É possível que quanto mais forte numericamente e mais amplamente aceita cultural e socialmente a Igreja Messiânica tenha se tornado, mais tendeu a desprender-se de seus rituais, orações e crenças católicas e/ou cristãs em direção a uma abordagem humanística, filosófica e cultural de inspiração obviamente mais japonesa. Agora que o crescimento substancial foi alcançado, a prioridade é dada às formas japonesas de expressas e simbolizar a Nova Era. Assim, a abertura e o ecletismo que caracterizam as relações de uma religião com outras, em um dado estágio de sua inserção social e cultural num novo ambiente, não devem ser compreendidas como sendo necessariamente permanentes, como características fundamentais. Conforme previamente mencionado, uma tendência de anti-sincretismo aparece em determinados momentos durante o desenvolvimento de um movimento, e, em especial, quanto mais ele cresce numericamente ou corre perigo de perder sua identidade. O legado de Omoto (Grande Origem) no Brasil pode, em parte, ser explicado pela super-adaptação “excessiva” e/ou pela ausência de uma estratégia anti-sincretista (MAEYAMA 1983).

A Seicho No Ie e a ambigüidade estruturada

A Seicho No Ie (“Lar do Progredir Infinito”), fundada em 1930 na cidade japonesa de Kobe, por Masaharu Taniguchi (1893-1988), e originalmente uma organização de educação e trabalho social, também está presente no Brasil desde a década de 50. Ela ensina que os seres humanos têm uma relação filial com o divino e que o pecado e a doença, que não possuem nenhuma realidade em si, são resultados da distorção desta relação. A principal cura para a doença é tornar-se consciente desta relação com o divino e viver a vida de acordo com esta realidade.

A Seicho No Ie é indiscutivelmente considerada a religião com o maior número de adeptos – estimados em mais de dois milhões – dentre as mais de trinta religiões japonesas, e, assim como no caso da Soka Gakkai e da Igreja Messiânica no Brasil, este crescimento pode ser consideravelmente atribuído às medidas que ela tomou, incluindo o uso da língua portuguesa, para se adaptar à sociedade brasileira em meados da década de 60.

Parte do seu sucesso pode ser atribuído à decisão de permitir que sua identidade permanecesse uma questão em aberto. Ela nunca se definiu como uma religião e tampouco descartou essa possibilidade (CARPENTER; ROOF, 1995). Assim como nem todos os membros da Igreja Messiânica querem que o movimento se descreva como uma religião, incluindo seu atual presidente mundial, que certamente não se compromete com este rótulo e prefere o termo “espiritualidade” (P.W., entrevista, 02/11/2005, São Paulo). Quando entrevistados por este autor, porta-vozes da Seicho No Ie no Japão rejeitaram o rótulo de religião, sob o argumento de que ele fora corrompido pelo uso que dele fizeram os sucessivos governos, desde os tempos de Meiji (1868-1912) até o fim da II Guerra Mundial (entrevista, 08/04/1994, Tóquio)[6].

Se, por um lado, isso pode ter algo a ver com a ambigüidade que cerca a identidade da Seicho No Ie no Brasil, por outro essa não é a explicação toda. Conforme Carpenter e Roof demonstraram, a ambigüidade permitiu maior flexibilidade no que concerne recrutamento e filiação. Os católicos, outros cristãos e pessoas de outras religiões podem sentir-se perfeitamente em casa. Seguramente, a ambigüidade também pode afugentar aqueles que estão buscando logo de início uma identidade religiosa claramente definida, algo que parece disponível na Soka Gakkai, ainda que cada vez menos se comparado ao passado.

Conclusões

Os desenvolvimentos discutidos aqui parecem ser respostas pragmáticas oferecidas para facilitar a expansão dos movimentos religiosos. De fato, todo diálogo ecumênico pode ser construído desta maneira, sendo rotulado eufemisticamente nos círculos acadêmicos como sincretismo reflexivo. Minha visão é a de que estes e outros tipos de sincretismo podem refletir o que muitas formas contemporâneas de religião estão buscando, talvez inconscientemente. Isto é ser independente em relação às limitações das definições tradicionalmente impostas do sagrado e de como abordá-lo, de maneira não diferente da busca generalizada. Isso não ocorre, no entanto, de maneira universal, por uma consciência que transcenda o Estado-nação, o território ou o espaço. É evidente que, enquanto aparentam dar boas-vindas a todo tipo de religião, as religiões japonesas podem ser ao mesmo tempo intencionalmente exclusivistas. Contudo, até mesmo as religiões com esse tipo de percepção, assim como todas as outras, são conscientes de que o fracasso em adaptar-se ou em “adaptar-se demais” resultará provavelmente em estagnação. Também fica evidente que os limites erigidos em torno dos ensinamentos e práticas de religiões fundamentalistas e exclusivistas não deixam de ser negociáveis, nem, tampouco, impregnáveis.

Assim, apesar do apelo ao abandono do conceito de sincretismo, espero ter demonstrado que vale a pena estudar a variabilidade do sincretismo como processo. Assim como o sectarismo, por exemplo, que também se encontra em todo lugar, o sincretismo ilustra algo das realidades cultural, intelectual, política e econômica que influenciam a forma das crenças e práticas religiosas. Ele também ilustra que, apesar do discurso teórico e abstrato que as religiões podem vir a adotar, e da sua insistência nas verdades que proclamam absolutas e eternas, seu pensamento é predominantemente direcionado pela práxis.

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Recebido: 05/04/2008
Aceite final: 22/05/2008

Notas

[*] Universidade de Oxford.

[1] Kyohan consiste em uma classificação crítica e uma avaliação das doutrinas dos grupos budistas e não-budistas da Ásia oriental.

[2] Entrevistas formas realizadas com os líderes e membros da Soka Gakkai no Brasil, em São Paulo e Salvador (Bahia), em agosto de 1996, dezembro de 1998 e novembro de 2005.

[3] Entrevista com a liderança da seção nordestina da Soka Gakkai realizada em, Salvador em dezembro de 1998.

[4] Reverendo Tetsuo Watanabe, à época presidente da Sekai Kyusei Kyo, agosto de 1996.

[5] Membro proeminente da Igreja Messiânica de São Paulo.

[6] Entrevista com Seicho No Ie. Outras entrevistas sobre este assunto foram feitas com porta-vozes e membros comuns da Seicho No Ie no Brasil (São Paulo e Salvador) em agosto de 1997.