MORFOLOGIA SOCIAL OU
GEOGRAFIA HUMANA?
Lucien Febvre
A
primeira acusação dos sociólogos contra a geografia humana é clara. Pode
traduzir-se por uma palavra. Acusam-na de ambição. Nada de mais estreito —
dizem — e, ao mesmo tempo, nada de mais ambicioso do que as suas concepções.
Logo que estão em face de um grupo de homens, de uma sociedade humana, pensam
no solo sobre o qual assenta materialmente esse grupo, essa sociedade. Para
eles, esse suporte material, esse substrato das sociedades não é de modo algum
uma matéria inerte e sem ação. Atua sobre os homens que suporta. «Influencia-os»
tísica e moralmente. «Explica-os» no conjunto e
O geógrafo parte do solo, e não da sociedade.
Sem dúvida que não chega ao ponto de pretender que esse solo é a ‘causa’ da
sociedade. RATZEL contenta-se com dizer que o solo é «o único laço de coesão essencial de cada povo» (1). Mas é, antes de tudo, para o solo que se
dirige a sua atenção. A ação e a eficácia do fator geográfico é o que RATZEL
pretende esclarecer, precisar, mostrar bem claramente. «Em lugar de estudar o
substrato material das sociedades em todos os seus elementos e em todos os seus
aspectos», censura-lhe Mauss, «é sobretudo sobre o solo que a sua atenção se
concentra. E o solo que está no primeiro plano da sua investigação». A
morfologia social seria muito diferente. Certamente que trataria também do
substrato das sociedades, mas enquanto um só dos elementos que ajudam a
compreender a vida e os destinos dessas sociedades. Não começaria por
divinizar, por assim dizer, esse elemento privilegiado, por lhe atribuir uma
espécie de poder criador, por fazer dele o produtor e animador das formas
sociais. Tendo por objeto a «massa dos indivíduos que compõem os diversos
grupos, a maneira como são dispostos sobre o solo, a natureza e a configuração
dos fatores de toda a espécie que afetam as relações coletivas (3), esta
disciplina tomaria lugar entre as ciências especiais de que a sociologia, na
opinião de DURKHEIM e FAUG0NNE-r(), constitui, por assim dizer, o Corpus. Ora aquilo que o sociólogo, ao
contrário do geógrafo, põe no primeiro plano das suas preocupações não é a terra»—é
a «sociedade». Noutros termos, o problema não é o mesmo, conforme sejamos, nos
consideremos, nos proclamemos geógrafos ou morfólogos. E, em conseqüência
disso, Mauss é levado a dizer (1): «Se preferimos o termo morfologia social ao de antropogeografia
para designar a disciplina à qual se refere esse estudo, não é por um vão
gosto de neologismo; é que esta diferença de etiqueta traduz uma diferença de
orientação». Com efeito, assim o pensamos. Diríamos mesmo de bom grado: uma
diferença tal que, na realidade, morfologia social e geografia humana não
podem, sem perigo, substituir-se uma à outra.
Mas o estudo «em ação>> das duas disciplinas rivais no-lo mostrará melhor
que qualquer discussão teórica.
1 - AS OBJEÇÕES DA MORFOLOGIA
SOCIAL: OS AGRUPAMENTOS HUMANOS SEM RAIZES GEOGRAFÍCAS
Não há grupo humano, não há sociedade humana
sem suporte territorial. Tal é o ponto de partida normal dos geógrafos nas suas
especulações. Fórmula equivoca até certo ponto. Na verdade, há muitos ‘grupos»
e muitas sOc1edades» — e precisamente entre aqueles que os sociólogos estudam,
por vezes, com tanta predileção— sobre os quais, ao fim e ao cabo, a influência
do «substrato geográfico», tão caro a Ratzel, se faz sentir pouquíssimo. Apesar
de uma insuficiência de preocupações geográficas bastante acentuada, os
múltiplos inquéritos dos antropólogos e etnólogos alemães, ingleses e
americanos sobre as sociedades selvagens do Novo Mundo, ou do mundo do
Pacífico, provaram-nos claramente que os primitivos só conhecem modos de
agrupamento especificamente territoriais. O totemismo, em particular, está na
raiz de uma multiplicidade de formações sociais sem raízes geográficas
aparentes.
Vejamos, para exemplificar, os Aruntas, esse
povo do Centro da Austrália que trabalhos precisos e rigorosos nos deram a
conhecer em todos os pormenores de uma organização muito complexa — tão
complexa que entre os observadores se encontram por vezes, neste como noutros
casos, divergências bastante graves. Reportemo-nos aos trabalhos mais bem
documentados, e em particular aos de B. SPENCER e L.J. GILLEN, esses clássicos
da sociologia. Em 1899 fazem a copiosa descrição das sociedades indígenas do
Centro australiano: The native tribes of
Central Austrália, e em 9O4 das do Norte deste mesmo continente The northern tribes of Central Austrália. São
observadores rigorosos e bem fornecidos de fatos, se bem que incorram — como J.
Sion já o notou — no grave de (eito de fazerem a descrição dos fenômenos
religiosos e sociais de populações cuja vida
material não estudam. Ora os seus trabalhos revelam nos Aruntas três espécies
de grupos elementares distintos, que se entrecruzam, se misturam literalmente
da forma mais complexa. Primeiro encontram-se agrupamentos propriamente territoriais,
distintos uns dos outros pelos nomes das localidades e possuindo cada um deles
um pedaço de solo, de limites conhecidos e definidos. Mas logo ao lado deste
vamos encontrar um certo número dessas classes matrimoniais que E. Durkheim nos
descreveu e, depois destas, temos os
grupos totêmicos, que englobam os indígenas sem qualquer preocupação, desta
vez, de localização ou distribuição geográfica. Não são, aliás, os grupos não
territoriais que representam o papel mais apagado na organização coletiva dos
Aruntas — muito pelo contrário;
e, por sua parte, Durkheim insistiu muitas vezes (em especial na sua
interessante referência ao livro de Howr sobre as tribos indígenas do Sudeste
australiano) (3) na extrema
indeterminação da organização propriamente territorial dessas sociedades
australianas — pelo menos, tais como as vêem e descrevem os nossos
observadores, brancos e nossos contemporâneos.
A mesma observação se poderá fazer no que se
refere a todo o resto do imenso continente australiano, em que as tribos são
geralmente dotadas de duas organizações: uma, baseada nas divisões geográficas,
e a outra, solidária da regulamentação matrimonial, O mesmo quanto às ilhas de
Salomão, estudadas por alemães e em que os agrupamentos totêmicos, distintos
das aldeias, e os agrupamentos territoriais, abrangendo por vezes portadores de
totens diferentes, se misturam e cruzam de forma semelhante aos exemplos
anteriores. A mesma circunstância em
inúmeros povos primitivos do Brasil (4),
que vivem na floresta e nunca ultrapassaram o estádio de barbárie. De
resto, é curioso ver, pouco a pouco, esbater-se neles o princípio totêmico em
face do princípio territorial, representado pela comunidade de aldeia. Mas para
quê multiplicar exemplos (5) de fatos
hoje bem conhecidos?
Vê-se sem dificuldade o partido que daqui se
pode tirar contra as "pretensões geográficas". Façamos, contudo,
algumas observações.
Primeiro que tudo, é com freqüência que se
compreende claramente a passagem dos agrupamentos não territoriais a
agrupamentos territoriais. Os primeiros tendem, pouco a pouco, a localizar-se
geogràficamente. Fala-se de organizações totêmicas sem bases geográficas. Ora
há povos — por exemplo, os
Índios Pueblos do Arizona e do Novo México - que moldaram sobre uma organização
totêmica conservada, excepcionalmente, numa vida quase urbana a estrutura e a
construção das suas casas e aldeias. E
mesmo na Austrália, nessa Austrália em que vive um grande número de populações
muito parecidas com os Aruntas, as tribos situadas mais perto do golfo de
Carpentária não apresentam as já referidas anomalias. Aí confundem-se os agrupamentos territoriais com, os
agrupamentos totêmicos. Cada localidade possui o seu próprio totem; não se
encontram aí portadores de totens diferentes; e o chefe administrativo da
localidade é igualmente o seu chefe religioso. Nada de surpreendente, aliás,
nesta confusão. Durkheim explica-a quando
observa que ela se verifica sempre que o totem se transmite pela linha paterna.
Nestas condições, o casamento não introduz em cada geração totens de origem e
importação estrangeiras.
Por outro lado, não se podem conceber
<<no ar>> os membros desses agrupamentos não territoriais — tais como essas personagens chinesas
de que nos fala MICHELET num texto célebre. DURKHEIM observa algures, e precisamente a propósito de estudos
sobre as tribos indígenas do Sudeste australiano, que é impossível a um grupo
social não estar, de qualquer forma, ligado efetivamente ao território que
ocupa e não ter de qualquer forma a sua marca. Uma análise atenta não teria
dificuldade em descobrir nas associações menos (territoriais) um fator
geográfico - mesmo que seja necessário chegar a ele por intermédio do clima.
Não há, por exemplo, na costa do Pacífico da América do Norte, sociedades
humanas — como a dos Kwakiutls,
estudados pelo investigador americano F. Boas — que possuem uma organização social dupla: uma, para a vida
profana e laica, caracterizada por uma divisão dos homens em - famílias, clãs e
tribos; a outra, para a vida religiosa, à base de grupos protegidos, cada um
deles, por uma divindade ou um espírito diferente dos outros? Ora a organização
laica atua durante o Verão e a organização religiosa durante o Inverno; e com
isso retomaria a geografia os seus direitos, se não fosse já evidente, por
outro lado, que com a estação fria não desaparecem todas as conseqüências
(geográficas) do regime de Verão. Mas, independentemente destes fatos
particulares, teria havido toda a vantagem em desenvolver e precisar a
observação de DURKHEIM.
RATZEL, dominado, ao mesmo tempo,
pelo seu preconceito de antropogeógrafo e por preocupações de ordem mais
política que científica, que, por momentos, nos fazem comparar a mais recente e
menos fecunda das suas grandes obras, a Politische
Geographie, a uma espécie de manual do imperialismo alemão, escreve: Se os
mais simples tipos de Estado são irrepresentáveis sem um solo que lhes
pertença, o mesmo deve ocorrer com os mais simples tipos de sociedade: esta
conclusão impõe-se). E continua: «Família, tribo, comuna só são possíveis sobre
um solo e o seu desenvolvimento só pode ser compreendido em relação a esse solo.
Em primeiro lugar, tais agrupamentos não são os únicos que representam os tipos
mais simples de sociedade. Acabamos de chamar a atenção para outros tipos em
cuja gênese, desenvolvimento e expressão o solo representa um papel muito
restrito. Mas, sobretudo, de que se trata exatamente? (Os tipos mais simples de
Estado são irrepresentáveis sem um solo que
lhes pertença). Estes três últimos termos não foram certamente escritos por
acaso. «Família, tribo, comuna só são possíveis sobre um solo
e o seu desenvolvimento só pode ser compreendido em relação a esse solo).
Há, sem dúvida, mais que uma pequena diferença entre a primeira e a segunda
fórmula. Poder-se-ia exprimir essa diferença dizendo que a primeira fórmula
depende da morfologia social e a segunda da geografia humana. Ora é curioso, e até um tanto picante, verificar que DURKHEIM, ao
afirmar que é «impossível a um grupo social não se encontrar de qualquer forma
ligado ao território que ocupa e não revelar a sua influência), admite
(se bem que o seu termo ocupar seja
bastante equívoco) a segunda fórmula — essa mesma que noutros lugares critica—,
enquanto RATZEL, em contrapartida,
parece ligar-se de preferência à primeira. E os textos não são perfeitamente
claros nem de um lado nem de outro. Ora é precisamente essa ambigüidade que
mostra até que ponto continua insuficiente o trabalho de análise.
Evidentemente, haveria que distinguir. Por um
lado, as povoações sociais de base territorial: aquelas que tomam posse, de
forma mais ou menos estrita, de um pedaço de terra, o reservam para si,
considerando-o como seu domínio particular; esse pedaço de terra é, de qualquer
forma, a sua projeção sobre o solo; é a sua própria forma, no sentido estrito
do termo: aquele solo que BOUGLÉ visa quando, ao analisar, por sua vez, o
conceito de morfologia social, escreve no Année
sociologique de 1900, resumindo as idéias expressas por DURKHEIM: «O termo forma é tomado então num sentido
preciso. Trata-se de formas materiais susceptíveis de representações gráficas».
E o sociólogo acrescenta que essas formas (constituem o domínio próprio da
morfologia social). Eis o que é claro. Restam outros grupos sociais, que, por
sua vez, não têm domínio reservado, território próprio, circunscrição definida.
Os seres humanos que compõem esses grupos vivem sobre um território, numa
região, sob um céu comuns a todos, os mesmos para
todos. Na medida em que assentam sobre um solo, participam dele: têm a sua
marca, afirma Durkheim; mas o seu grupo, enquanto grupo, não tem forma
gràficamente representável. Não há pedaço de solo que seja propriamente o
território do grupo’.
Mas, dito isto, foi muito grande o progresso?
A distinção apresenta valor real? Permite apoiar as objeções dos sociólogos
contra os geógrafos? Pensamo-lo tanto menos quanto é certo que há os fatos
intermediários a que anteriormente nos referimos e que é preciso reter. Nas
sociedades australianas sobre cujo conhecimento todo este debate assenta Durkheim
que a organização começou, sem dúvida, por ser totêmica e só em seguida se
tornou territorial. Ou, mais precisamente, no tempo em que ainda só existia
organização totêmica, o que havia de territorial na organização social era
muito secundário, muito apagado — se acaso se aceita a análise do sociólogo;
não lidamos aqui, mais uma vez o dizemos, com dados simples e fáceis de
interpretar. O que marcava os limites da sociedade não era uma determinada
barreira material; o que lhe determinava a forma não era a configuração do
solo. A tribo era essencialmente um agregado, não de distritos, mas de clãs, e
o que fazia a unidade do clã era o totem e as idéias de que era objeto». Em
última análise, de toda esta discussão o que permanece é o seguinte: um dos
mais importantes objetos de estudo do sociólogo — ou seja, todos esses grupos
que não são essencialmente territoriais — oferece, no
fim de contas, pouca matéria para os geógrafos. Ainda se poderá dizer que lhes
oferece campo mais vasto, apesar de tudo, do que aos morfólogos? Estes últimos,
num caso semelhante, só têm que levantar um auto de carência à sua ciência:
onde não há (formas) a estudar não pode haver morfologia. Com a geografia, pelo
contrário, é possível que o grupo, enquanto grupo, lhe escape. Mas resta-lhe o
solo sobre o qual vivem os homens—e o clima, as produções e todas as condições
de existência próprias dos lugares que freqüentam e que também ocupam, enquanto
membros de grupos de outra natureza: os grupos territoriais. Deste modo já
ganhamos consciência, sem dúvida com um pouco mais de clareza, daquilo que
realmente torna opostas as duas concepções rivais: morfologia ou geografia.
II - AS OBJEÇÕES DA MORFOLOGIA SOCIAL: A
AMBIÇÂO GEOGRÁFICA
Outras objeções dos sociólogos têm,
evidentemente, mais cabimento e definem com mais nitidez o alcance da acusação
de ambição. Um exemplo vai nos mostrar, e tanto mais típico quanto é verdade
que o vamos buscar num espírito mais seguro dos seus caminhos.
Que a cultura do
arroz, quer pela abundância de alimento que fornece num pequeno espaço, quer
pelos assíduos cuidados que exige, exerce uma profunda influência sobre as
sociedades do Extremo Oriente, eis um ponto de vista caro a VIDAL DE
Ainda um exemplo.
Em tal matéria não se deve recear multiplicar os exemplos. A habitação humana,
a casa, é, evidentemente, um dos traços mais notáveis destas «paisagens
humanizadas’ que se nos apresentam e que precisamente o geógrafo deve estudar:
é tão familiar a nossa vista nas regiões ocidentais que a sua ausência
prolongada nos faz verdadeiramente sofrer: numa solidão selvagem e desolada,
nos cabos extremos dessa Armórica que um mar feroz
assalta infatigavelmente, um moinho estendendo as suas duas asas em cruz na linha
do horizonte rígido e nu faz sentir não se sabe que sentimento de confiança e
de paz: um pouco daquela emoção que, nos altos planaltos do Tibet, sentiu um Perceval Landon, em marcha sobre Lhassa,
ao contemplar, por acaso, a frágil silhueta de um salgueiro de verdes folhas.
Ora diremos nós (e já foi dito) que esta casa, esta habitação
do homem, por muito adaptada que esteja, quer pelo seu aspecto, quer pelas suas
disposições e materiais, ao solo em que assenta e ao clima em que se
encontra, é um fato geográfico? Claro que não! Um fato humano, se assim se
quiser—o que não é a mesma coisa.
Há geografia num campo de
trigo. Um campo de trigo não é um fato geográfico. Pelo menos, só o é para um
geógrafo. Este não tem de estudar a "casa",mas
somente o que nela há de geográfico — e nem tudo é geográfico numa casal e
competirá porventura à geografia determinar qual é a idéia essencial dessa
mesma casa. Seria certamente demasiado fácil alinhar aqui uma série de citações
que revelariam em alguns geógrafos uma preocupação medíocre com tudo o que lhes
não diz respeito, uma espécie de desprezo jovem, cândido e um tanto irritante
de vizinho— nada menos que uma propensão um tanto incômoda
para usar palavras e fórmulas simultaneamente cortantes e sumárias. Munidos de
duas ou três grandes chaves para todo o serviço, quantos não vão estouvadamente
pelo mundo, experimentando-as sucessivamente em todas as portas que encontram
Ficam felicíssimos quando se lhes depara uma que o instrumento abre o melhor
que pode. «A primeira necessidade do homem é a água. Quando a água superficial
é rara, como em Beauce, na penuriosa
Champanha, e nas regiões calcárias, em geral, as aldeias agrupam-se em grandes
aglomerados á volta de alguns pontos de água existentes, ou então escalonam-se muitas vezes por vários quilômetros ao longo
dos cursos de água. Quando a água é abundante e surge por toda a parte, como na
Ille-de-France, Limousin, Bretanha, País de Gales,
etc., as habitações disseminam-se ...". Depois
vêm dois extratos de um mapa em grande escala para comprovar o texto; e eis
formulada uma lei geral, uma lei geográfica constante, de que nada vem limitar
a aplicação ou precisar o alcance. Ora é evidente que, «se a água surge à menor
perfuração, as casas poderão distribuir-se pelo campo e que semelhante
isolamento será menos fácil no caso contrário». Poderão ... de fato, só
se trata de possibilidades. E se é indiscutível a influência do meio físico
local, quer isso dizer que se exclua qualquer outra Porventura não se poderá
dar o caso. por exemplo, de pormenores de construção e de disposição, e às
vezes a própria estrutura da aldeia, terem sido concebidos num outro solo, num
outro clima, por uma população de emigrantes; Não pode porventura suceder que
os recém vindos tenham edificado e disposto as suas habitações segundo a forma
consagrada na sua região de origem? Não se poderá verificar o fato de esse tipo
se ter modificado, dado que a experiência não permitiu que se conservasse
intacto, embora sem se obliterar por completo ? De fato, vejamos a
região de Caux: população disseminada a oeste e
concentrada a leste: as condições físicas num lado e noutro são, contudo. quase
idênticas e nada impediria que a leste se estabelecessem albufeiras e que a
oeste se perfurassem poços de água. A herdade cauchesa. de tipo tão constante,
está sem dúvida adaptada ás necessidades da exploração local. Mas outras
herdades, construídas segundo um plano diferente, também se adaptariam
perfeitamente. Observações de geógrafo, dir-se-á. Elas provam à evidência que o
seu autor não está, por seu turno, disposto a contentar-se com as grandes
chaves de que falávamos atrás. Provam simplesmente que, ainda em muitos. casos,
investigadores seduzidos a seguirem só a sua pista nem sempre ignoram a arte
dos corretivos nem a necessidade de, por vezes, olhar para o lado do vizinho. Nesta
questão da casa há uma tendência espontânea para desprezar, se não para negar, as influências étnicas que um MEITZEN tinha apresentado sem análise critica, mas que não
deixam por isso de existir, ou as influências históricas, que não são todas
forçosamente (étnicas» e cuja ação é necessário definir quando a análise
geográfica é incapaz de satisfazer; desconhecimento inconsciente ou propositado
do jogo das tradições. da ação persistente das causas sociais não terão os
sociólogos razão em censurar aos geógrafos estes defeitos tão conhecidos?
Defeitos de uma ciência jovem, exuberante e que não sabe, ao limitar o seu
próprio domínio, respeitar por via indireta o domínio do vizinho.
Recapitulemos. Agora compreende-se melhor aquilo que os partidários da morfologia
social querem dizer quando denunciam «essa disciplina de grandes ambições que a
si própria se designa por geografia humana». Na sua pena, a censura de
ambição implica duas acusações diferentes. Os geógrafos querem explicar pela
geografia, ou, pelo menos, reivindicam como seu campo de investigação as
sociedades humanas, das menores às mais vastas, das mais rudimentares às mais
complexas; ao ouvi-los dir-se-ia que todos os grupos
sociais são justificáveis por meio da sua ciência, quando, de fato, não é isso
que sucede: na realidade, em boa lógica escapam á sua influência todos os
agrupamentos não territoriais. Por outro lado, no que se refere aos próprios
grupos sociais que estão incontestàvelmente relacionados com os seus métodos,
pretendem explicar um número demasiado grande das suas manifestações por meio
da geografia e só pela geografia. Abusos manifestos, que, por seu turno, serão
ignorados por uma ciência sociológica de perspectivas modestas e marcha
prudente — porque essa tem objetivos limitados e antecipadamente definidos...
Quanto ao primeiro ponto, já
nos explicamos. Nada há de decisivo nas acusações que se fazem ou podem fazer ã
geografia. Há grupos humanos em cuja gênese o solo, enquanto
solo bruto, solo puro, se assim se pode dizer, representa um papel
insignificante, uma vez que esses grupos não têm solo seu, ou, mais exatamente,
uma vez que não talharam o seu bocado particular no tecido universal. Mas há
outros fatores geográficos além do «solo» influir na vida das sociedades. E à
influência destes últimos fatores não escapam, de modo algum, os homens
componentes de grupos não territoriais de que se está falando — e que, aliás,
se intercalam igualmente noutros grupos, esses então de base territorial. E
acaso escaparão realmente esses primeiros grupos não territoriais à própria
influência do solo? Se não escapam, não é a morfologia social que nos poderá
informar sobre as modalidades da influência exercida nem sobre as suas conseqüências,
uma vez que se proíbe a si própria de se ocupar de outra coisa que não sejam
formas. Haverá necessidade de escolher? Não se concebe por que razão se terá de
escolher. Na verdade verifica-se, afinal, que não há equivalência entre os dois
termos cuja escolha nos é proposta.
Quanto ao segundo ponto:
«Quando se passa em revista», escreve Durkheim a propósito de Ratzel. «tal
multiplicidade de fatos com o único objetivo de investigar que papel representa, na sua gênese, o fator geográfico, é se necessàriamente
levado a exagerar-lhe a importância, precisamente porque se perdem de vista os
outros fatores que também intervêm na produção desses fenômenos». Objeção muito
sensata. Mas o «necessariamente» é, sem dúvida, um pouco forte. Que se
aplique a Ratzel, é muito possível. Em todo o caso, conviria não generalizar
nem pretender atribuí-lo funcionalmente a todos os geógrafos. (Na feição atual
dos nossos velhos países históricos cruzam-se e interferem causas de toda a
ordem. O seu estudo é delicado. Determinam-se ai grupos de causas e efeitos,
nas nada que se assemelhe a uma impressão total de necessidade. E patente que,
em dado momento, as coisas teriam podido tomar outro curso e que o curso tomado
dependeu de um acidente histórico. Não há motivos para considerarmos a
existência de um determinismo geográfico: o que não significa que a geografia
seja por isso urna chave que possa ser dispensada». E mais adiante: na
explicação de fatos bastante complexos submetidos a circunstâncias diversas de
tempo e de lugar, a análise geográfica, tanto como a das influências étnicas e
históricas, deve desempenhar o seu papel: o emprego exclusivo de um modo de
interpretação não poderia satisfazer uma inteligência ansiosa de realidade, e
não de sistema). Onde encontrar, nestas linhas comedidas ou no livro a que
elogiosamente se referem e que recomendam ao leitor, vestígios desse
preconceito de <<necessidade>> de que Durkheim falava,
desse exclusivismo de que fala algures MAuss? Ora essas linhas são da autoria
de um geógrafo bem qualificado como tal: Vidal de
III
- O ERRO DE RATZEL.
Depara-se-nos aqui um vicio freqüente
nos metodologistas não especializados nas ciências sobre as quais dissertam.
Nem mesmo os mais avisados e escrupulosos lhe escapam. Precisam documentar-se
depressa, em pouco tempo e tão abreviadamente quanto possível: portanto, apóiam-se
num homem, numa obra. Mas, para avaliar todo um esforço científico, para
apreciar e criticar uma ciência em via de criação e que tateia ainda o seu
caminho, o pegar num livro, num só livro, assinalar-lhe as tendências e os
defeitos e depois generalizar não é tarefa que não implique os seus riscos. E, não
obstante, é bem isso o que, em grande parte, fazem os sociólogos.
Por certo que nos parece bem
escolhido o livro de que partiram. A Antropogeografia é a obra-prima de
Ratzel, e quando Mauss, depois de Durkheim,
chama ao seu autor o (fundador da antropogeografia), exagera—mas que
é (um dos fundadores, é verdade. Não obstante, não se deve considerar a
geografia humana sinônima de Ratzel e
seus discípulos. Evidentemente a escola francesa não ignora quem foi o padrinho
da antropogeografia. Quando, em 1891, foram criados os Anais de Geographie, um
dos primeiros fascículos da nova revista continha um longo, preciso e copioso
resumo das idéias mestras, dos temas favoritos do geógrafo alemão: resumo,
aliás, nitidamente crítico, notemo-lo, da autoria de L. Ravenau e com o título
de "O elemento humano na geografia". Mais tarde, quando apareceu a Politische
Geographie, Vidal de
Outra coisa ainda: mesmo no
tempo
De fato,
no próprio momento
Estaria um pouco fora do nosso tema presente averiguar como é que Ratzel se
pôde expor, plena e conscientemente, a tais criticas. Investigador com uma
formação de ciências naturais, tinha mais que qualquer outro essa idéia mestra
da unidade terrestre, cuja concepção, em 16õ0, por BERNARD VARENIUS bastou para que este
seja hoje saudado como o verdadeiro fundador da geografia científica. Geógrafo,
no decurso da sua vida e em todo o desenvolvimento da sua obra procurou
manter a geografia humana em contato estreito, em permanente solidariedade com
a geografia física. Qual a razão por que RATZEL parece desviar-se assim da sua habitual prudência, perder
de vista os próprios princípios da sua investigação e dar apoio a esses
ambiciosos, que de bom grado sonhariam com uma
filosofia da geografia, tal como outros, em tempos passados, já tinham
concebido uma filosofia da história, ou então a esses outros espíritos
resignados que colocam a geografia no nível de uma humilde serva, ou, como se
disse(5), como gata borralheira da história. Se é
verdade — e é — que no primeiro volume da Antropogeografia a idéia
central sofre grandes eclipses; se é verdade que a dialética de Ratzel
não tem receio das mais flagrantes contradições: terá interesse explicar tudo
por meio destes enfraquecimentos de doutrina? Não pensamos que assim seja. Na nossa opinião, o erro de RATZEL foi ter aceitado com demasiada facilidade certos
problemas na própria forma como eram postos pela tradição. O seu vício foi o de
não pensar em rever com seriedade os seus termos e o seu enunciado. Ele e os
seus discípulos, assim como os geógrafos de outras escolas, na medida em que
merecem e justificam as críticas acima reproduzidas, são talvez, e antes de
mais, somente vítimas: vítimas de circunstâncias de ordem cronológica
independentes da sua vontade; mais claramente, vitimas da história.
IV - A GEOGRAFIA HUMANA, HERDEIRA DA HISTÓRIA
Certamente que, se hoje está
em vias de constituição uma geografia humana, seria erro grosseiro reivindicar
para os historiadores a sua paternidade. Na verdade, na sua gênese,
desempenharam papel de primeiro plano, por um lado, os homens de ciência —
naturalistas e viajantes — e, por outro, os políticos. Não é menos verdade que,
numa época decisiva, e em virtude da própria carência de uma ciência geográfica
organizada, foram os historiadores, como- acima o
indicamos, que tiveram de tomar, e tomaram, dessas iniciativas voltadas para o
futuro.
No tempo de Michelet, e até
no tempo de DUBUY, geógrafos só alguns sábios sedentários, grandes amadores de
viagens em torno da sua biblioteca e que praticavam conscienciosamente aquilo
que BERS0T, no dizer de Vidal de
Mas, por outro lado, quando
MICHELET proclamava, no seu prefácio de
História política, geografia
política: a segunda, tal como o registram quase todos os dicionários dos meados
do século, não era mais do que (um ramo da primeira»; por vezes acrescentava-se:
«e da estatística». A forma dos Estados, a sua extensão espacial, as variações
desta forma e desta extensão—por desmembramento ou acréscimo—, eis o que o
historiador pedia ao geógrafo que lhe apresentasse e o ajudasse a compreender.
Naturalmente que, nas suas investigações, partia sempre do mapa político do
globo, tal como séculos de história e 35 sucessivas gerações dos homens
o tinham elaborado. Para o geógrafo tratava-se, não de o explicar, mas de o justificar.
Efetivamente, presidia às suas investigações um ingênuo finalismo, assim como a
idéia, mais ou menos consciente, de que uma espécie de necessidade prévia
impunha aos Estados a forma que tinham...
Assim, no quadro tradicional
das cinco panes do mundo inscreviam-se com normalidade remos e repúblicas.
Compartimentos estanques, rígidos e providencialmente pré-formados, feitos para
os receber e bem dotados de «fronteiras naturais», recebiam-nos na realidade. De
resto, notemos que as primeiras tentativas daqueles que, no inicio do século,
se esforçaram por instaurar, com o nome de geografia comparada, uma
disciplina mais verdadeiramente cientifica não eram de molde a desviar os
historiadores das suas concepções.
Quando KARL RITTER procurava pôr as formas
geográficas em contraste umas com as outras, fazia-o com os continentes, as
velhas «partes do mundo», essas criações da mais antiga história que ele
enfrentava. Via complacentemente nos continentes outros tantos
(indivíduos terrestres». E à África maciça, de civilizações rudimentares,
opunha ele a Europa recortada, precoce e requintada, velho tema tantas vezes
retomado desde então; tomava-se o todo, como se a Europa. a Ásia, a África, a
América, «unidades’ desconhecidas dos modernos geólogos. botânicos ou zoólogos,
tivessem sido, na verdade, outra coisa mais do que coleções de fragmentos
heterogêneos — agregados díspares de peças e bocados.
De pura forma parecerá esta
questão das divisões. Mas, na realidade, é primordial. Ela
entra em relação, como já foi excelentemente demonstrado, com a própria
concepção que se faz da geografia — e é preciso reler, a este respeito, o
notável artigo de Vidal de
Foi em vão que, a partir do
final do século XVIII, um Gettard, um
MONNET, um Giraud-Soulavir
entreviram a preciosa noção de região natural: Gallois, no seu livro decisivo,
estabelece-a de uma forma incontestável.
Foi em vão que, mais tarde, um COQUEBERT
de MONTBRET, um Omalius d'Hallot
procuraram dividir as regiões "combinando a natureza e o espírito
do terreno com as posições geográficas"; foi em vão mesmo que Caumont, Antoine Passy, Dufrenoy e Elie de Beaumont (estes últimos
em 1841, na sua célebre Explication de la carte géologique) proclamaram,
com singular audácia e previsão, a ligação da geografia tísica com a geografia
propriamente dita, por um lado, e da geografia com a geologia, por outro, e
justificaram a absoluta necessidade para o geógrafo de tomar como objeto de
estudo as verdadeiras regiões naturais: conceitos de geólogos, que os geógrafos
do tempo de forma alguma pareciam entender.
A todos parecia mais simples
instalarem-se — à maneira de bernardos-eremitas — nas velhas conchas da
história política e administrativa. Depois de terem descrito a França nas suas
províncias, dissecaram-na nos seus departamentos. E mesmo quando se esforçavam
por ir buscar à natureza algum princípio de divisão mais racional, a idéia
puramente política de uma fronteira linear, de uma linha rígida de demarcação,
absorvia as suas preocupações. Já no princípio deste século o redator
geográfico de Statistique genérale et particuliêre de
De resto, para que remontar
tão atrás? Não vimos nós ainda os discípulos atrasados de Buache repartirem
também, melhor ou pior, os departamentos pelo leito de Procusta das bacias fluviais,
rigorosamente rodeadas pelas "linhas de divisão das águas", essas
cadeias montanhosas que, nos mapas, atravessavam os (pântanos do Pripet» ou
corriam alegremente de uma ponta à outra da Europa, «desde o cabo Vaigatz até
ao cabo Tarifa>>?
Historiadores ou geógrafos:
tanto nuns como noutros, a mesma preocupação exclusiva das formas, no seu
sentido mais superficial, no sentido gráfico do termo — naquele sentido que, na
mesma época, lhe era dado por um INGRE5, nas suas controvérsias estéticas com
um DeLACR0IX —, mas nem a história nem a geografia tinham então os seus
DeLACROIX».
Falava-se das relações entre
o solo e a história. O solo era, por assim dizer, o solo vazio, o solo puro, o
solo independente da sua cobertura viva de animais, plantas, árvores, seres
humanos. Era o solo-chão, o solo-suporte, o solo, grande tecido rígido no qual
os Estados tinham talhado os seus domínios. E segundo que contornos? Eis aquilo
que se estudava, o único fato que preocupava os investigadores.
V
- AS SOBREVIVÊNCIAS DO PASSADO: VELHOS PROBLEMAS, VELHOS PRECONCEITOS
Como parece, estaremos nós
muito longe, quer de RATZEL, quer
do debate entre a morfologia social e a geografia humana e, afinal, do próprio objeto
deste livro? Não o pensamos.
Por certo, as nossas
concepções de história e de geografia estão hoje muito modificadas.
Já não nos esforçamos pacientemente
por reconstituir somente a armadura política, jurídica e constitucional dos
povos antigos ou as suas vicissitudes militares ou diplomáticas. E toda a sua
vida, toda a sua civilização material e moral, é toda a evolução das suas
ciências, das suas artes, das suas religiões, das suas técnicas, das suas
trocas, das suas classes e dos seus agrupamentos sociais. Bastará encarar a
história da agricultura e das classes rurais, nos seus esforços de adaptação ao
solo, no seu longo trabalho descontínuo de desbravamento, de abatimento de florestas,
de drenagens, de povoamento: quantos problemas não levanta cuja solução
depende, em parte, de estudos geográficos? Alargamento da história,
desenvolvimento da geografia: combinem-se os efeitos desta dupla revolução, tal
como aqui indicamos; e compreender-se-á que o velho problema das relações do
solo e da história já se não pode pôr para nós como se punha para os homens de
1830 ou de 1860.
Assim se compreenderá — mas
nem todos o compreenderam tão depressa nem tão completamente quanto seria necessário.
A tal ponto o homem é um ser de tradições!
Quando, pouco a pouco a
geografia humana se criava e organizava como ciência, os historiadores puderam
pensar em solicitar colaboração aos representantes da nova ciência, que,
interpelados diretamente sobre questões, ao que parecia, de ordem geográfica
por homens de quem muitas vezes sofriam o prestígio, não se deram imediatamente
conta de que corriam o risco, ao desertar do seu domínio próprio, de se
deixarem conduzir como reféns ou como prisioneiros para um terreno que não
tinham escolhido e que não era o seu. O erro tem explicação, mas era pesado.
Com efeito, onde não há
plena iniciativa para o sábio não há ciência. Não se faz uma ciência
respondendo simplesmente a um questionário formulado do exterior, em nome e no
interesse estrito de uma outra ciência. Colaborar assiduamente no iritermédiaire
des chercheurs eI des curieux, responder aí, em consciência, ás perguntas
de outrem, não é constituir uma ciência. Os historiadores podem à vontade perguntar,
em seu nome pessoal e sob a sua responsabilidade qual foi o papel das condições
geográficas no desenvolvimento deste ou daquele povo, supondo antecipadamente
essas condições como dadas de uma vez para sempre e formando uma espécie de
bloco de efeitos, permanentes e sempre semelhantes: os geógrafos não deviam,
não deveriam ter limitado as suas ambições a satisfazer ingenuamente
semelhantes curiosidades. E como se pode pretender que não o fizeram?
Fizemos atrás referência à confusão,
inicialmente tão vulgar e, aliás, tão natural, entre as divisões políticas e as
divisões propriamente geográficas. Mas acaso não considerava um geógrafo, ainda
há pouco, como quadro de um estudo «de geografia física e de civilizações
indígenas (era o subtítulo da obra), os limites políticos, ou, antes,
administrativos, de um fragmento de uma seção de colônia francesa, sem qualquer
preocupação em procurar. para sua delimitação e caracterização, o que poderia
haver de «regiões naturais>> no vasto território que assim se submetia á
observação?
Já fizemos também referência
ao preconceito gráfico», se assim se pode dizer, de um Ritter quando compara
contornos sem se preocupar nada com a sua gênese, «da mesma forma que, em
etnografia, se falaria dum negro ou, em botânica, de uma palmeira. Mas nos
nossos dias, e regularmente — ainda há pouco tempo um geógrafo chamava a
atenção para o processo e o denunciava, não vimos nós comparar entre si regiões
tão diferentes como, por exemplo, a Itália e a Coréia ? Encantado da vida, o
amador de formas segue nos mapas de pequena escala, nos Atlas escolares, os
contornos dessas duas penínsulas; vê-as, descreve-as como igualmente alongadas,
orientadas de modo semelhante, cortadas da mesma forma por uma cadeia de
montanhas, e, para completar o paralelo, compara, pela sua posição, Seul e
Roma, os dois centros políticos.
Havíamos feito, para
terminar, referência ao preconceito de predestinação. Mas quantos livros não há
ainda em França, Inglaterra, Itália, Espanha onde se descrevem estes países como
outros tantos seres geográficos. onde se faz salientar a sua homogeneidade
verdadeiramente providencial, enquanto a Lorena, Borgonha, Franco-Condado,
Provença representam, por sua vez, regiões naturais, quadros fabricados por
toda a eternidade para alojar as províncias? Como se nós não devêssemos
examinar com a mais minuciosa atenção crítica a lista dos próprios países, essas
unidades de base, velhíssimas unidades terrestres, designadas, por vezes, por
remotíssimos nomes!
Assim se perpetuam velhos
preconceitos. Assim se continuam a formular, na forma tradicional, problemas
que o tempo renova sempre. E precisamente o erro de Ratzel —na medida em que há
erro — reside aí. O autor da Antropogeografia não se libertou
inteiramente de uma tradição bastarda; ou, mais exatamente, depois de lhe ter
dado, na parte mais fecunda e propriamente geográfica da sua obra, o golpe mais
importante, não a soube repelir por completo.
Há na Antropogeografia —dizia
Durkheim— três ordens distintas de questões — a terceira das quais muito
diferente das duas primeiras. Isto é exato, e a própria observação, a
verificação desta diferença, talvez pudesse ter levado o seu autor a uma longa
reflexão. Da mesma forma, Vidal de
E receamos bem que não
suceda assim só na Antropogeografia, mas talvez mesmo na Politische
Geographie. Não é este, evidentemente, o lugar próprio para renovar uma
crítica muitas vezes feita — e bem feita — às idéias ramalhudas e por vezes
contraditórias de Ratzel sobre o papel predominante que na vida dos organismos
políticos representaria o espaço puro, o espaço tomado em si mesmo e
independentemente dos caracteres geográficos que nós julgávamos serem
inseparáveis desses mesmos organismos. Mas se RATZEL elaborou esta teoria, a tal ponto criticável que ele
mesmo, no seu próprio livro, por outra via, a destruiu, fe-lo levado por uma idéia
política; é que se lhe impunha uma concepção tradicional; é que, abrangendo
numa visão global todos os Estados dispersos à superfície do globo,
reduzia-lhes a sua vida múltipla, rica e variada a uma única manifestação; ao
desejo, à esperança, à permanente avidez de extensão—termo científico para
designar simplesmente a ambição conquistadora, esse sinal essencial, segundo
RATZEL, esse critério infalível da vitalidade e grandeza dos Estados. Mas quem
não reconhece aqui, apesar de uma transposição sábia e muito filosófica, a
velha atitude que há pouco caracterizamos, a preocupação predominante e
simplista das formas exteriores, dos limites graficamente definidos, dos <<contornos>>
— a docilidade, numa palavra, às sugestões da história política e territorial?
Ao fazer referência a um
livro de ARNOLO GUY0T, J.J.Ampere escrevia que GUYOT tentou explicar a história
pela geografia. Vigorosamente, VIDAL DE
Apreender e revelar, em cada
momento da sucessão, as complexas relações que os homens, autores e criadores
da história, mantêm com a natureza orgânica e inorgânica, com os múltiplos fatores
do meio físico e biológico. é o papel característico do geógrafo quando se
aplica aos problemas e às investigações humanas; vamos tentar mostrá-lo de urna
forma mais ampla. E mesmo essa a tarefa do geógrafo. Só terá outras por
usurpação e capitulação. No início, em plenos meados do século, os
historiadores não viam com nitidez que assim era. E onde o poderiam ter
apercebido? A geografia — que só existia como ciência descritiva, como
nomenclatura — punham somente questões no exclusivo interesse dos seus
trabalhos. E eles mesmos respondiam, a maior parte das vezes, como
historiadores: aliás, os geógrafos do seu tempo não teriam respondido de outra
forma. Mas quando hoje há geógrafos que, esquecidos dos progressos realizados
pelo seu próprio esforço, se demoram ainda em semelhantes problemas, sempre
postos de maneira tradicional — e quando há sociólogos (com reserva de algumas restrições
e delimitações "razoáveis") que se tornam, no fundo, pura e
simplesmente candidatos à sua sucessão —, é, sem dúvida, fácil de apreender
simultânea- mente a origem e o vício de semelhante situação. Assim como
claramente se vê que o debate sobre o método e a própria historização dos fatos
tem mais valor do que uma simples curiosidade.
VI—UMA
GEOGRAFIA HUMANA MODESTA
De fato, da mesma forma que
a nossa história contemporânea já não caminha na pegada de AUGU5TIN THIERRY, a geografia do nosso
tempo também já não é a da Restauração de 1815. Qual é a sua tarefa e como é
que a concebe? E como a concebem aqueles nossos geógrafos que já não calçam à vontade pela forma
ratzeliana e que, tendo chegado, a pouco e pouco (anteriormente não sem tateamentos:
já tivemos ocasião de o referir, aliás), a uma concepção sólida de geografia,
do seu fim e dos seus métodos não são susceptíveis de embriaguez metafísica?
Indicar ràpidamente a sua concepção de geografia será — atacando o problema nos
seus próprios fundamentos — o melhor meio de por a claro a acusação de
«ambição» que tentamos discutir.
Em 1913 —quer dizer, no fim
da sua vida e numa época em que estava em plena posse do seu método— o chefe da
escola geográfica francesa, Vidal de
A definição teria seduzido ALEXANDRE DE HUMBOLOT, fundador da geografia botânica, sempre
tão preocupado, nas suas viagens e nos seus escritos, com a análise das paisagens.
E bem sabido como Vidal de
O homem é um agente
geográfico, e não o menos importante. Contribui para revestir, conforme os
lugares, a fisionomia da Terra com essas «expressões mutáveis» que a geografia
(tem por tarefa especial» estudar. Desde há séculos e séculos, pelo seu labor
acumulado, pela audácia e decisão das suas iniciativas, -o homem
apresenta-se-nos como um dos mais poderosos artífices da modificação das
superfícies terrestres. Não há força que não utilize, que não submeta à sua
vontade; não há região, como se tem dito, que não apresente os estigmas da sua
intervenção. Atua sobre o solo isoladamente; atua mais ainda coletivamente —
por intermédio de todos os seus agrupamentos, dos mais restritos aos mais
vastos, desde os agrupamentos familiares aos políticos. E tal ação do homem
sobre o meio é precisamente o que de humano entra no âmbito da geografia.
A geografia é, repete
incisivamente Vidal de
"A geografia",
continua Vidal de
Retomemos agora a críticas
que acima expusemos. Depois destes comentários terão ainda algum alcance?
Evidentemente que não.
Certamente que já o verificamos:
quem estuda a ação das condições geográficas sobre a estrutura dos grupos
sociais corre o risco de se perder ao atribuir valor primordial, e não só
decisivo, mas único, a essas condições geográficas. Corre o risco de ver aí a
causa de certa estrutura social cuja ubiqüidade parece ignorar. Mas quem altera
os termos da questão e põe o problema de saber, não já qual é a ação dos grupos
sociais sobre o meio geográfico, mas antes, com mais escrúpulo e precisão — a
geografia é a ciência dos lugares —, quais os traços de uma dada paisagem, de
um dado conjunto geográfico diretamente determinado ou historicamente reconstituído,
que se explicam ou podem explicar-se pela ação continua, positiva ou negativa,
de um certo grupo ou de uma certa forma de organização social; quem, por
exemplo; ao verificar antigamente a extensão antinatural de certas culturas em
regiões que parecem excluí-las, relaciona este fato com o regime de isolamento,
em que todos os grupos humanos procuram, acima de tudo, bastar-se a si
próprios, sem nada comprar a outros: se acaso for prudente, não corre o risco
de erro, confusão ou generalização abusiva. Digo eu: se for prudente; mais
valeria dizer: se não for exclusivista. Na verdade, na região de Morvan, a
vinha —que era tão corrente na Idade Média que uma comuna do cantão de
Toulon-sur Arrouz, Sanvignes (Sint l’inea, como diz um manuscrito do
século xiv), ia buscar o nome à sua total, radical, absoluta e quase única
incapacidade em alimentar esta planta quente — resulta bem de um regime de
isolamento, tal como sucede na Normandia ou na Flandres; mas é
necessário ainda destacar, quando se fala em tal, a influência exercida sobre
esta cultura paradoxal pelo hábito de misturar mel, canela e coentros com o
vinho, o que o transformava numa mézinha e enfraquecia a rudeza nativa dos mais
ingratos sumos de uva.
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Na realidade, quando se pretende encarar a
geografia do ponto de vista do homem — e entenda-se que se trata apenas de um
entre muitos outros pontos de vista —, aquilo que ela estuda, aquilo que nos dá
a conhecer é o meio- em que se desenrola a vida humana. Em primeiro
lugar descreve o; em seguida analisa-o; posteriormente tenta explicá-lo com a
permanente preocupação das repercussões e interferências. O próprio homem,
mediante as suas obras, é alcançado pela geografia: obras de destruição e de
criação, obras pessoais, obras indiretas. E alcança-o precisamente na medida em
que o homem atua sobre o meio, em que lhe imprime a sua marca em que o modifica
adaptando-se-lhe.
A geografia não diz, não
deve dizer: (A casa do homem explica-se pelo solo). Verifica, deve simplesmente
verificar: (Esta casa, construção ora humilde, ora orgulhosa e complicada, de
uma feição simultaneamente inovadora e tradicionalista, que escapa, como tal, à
ação do geógrafo, pertence, não obstante, à paisagem, depende do meio
-geográfico e adapta-se-lhe através de tais ou tais elementos, disposições,
caracteres secundários ou fundamentais: e por isso, mas somente por isso, a
casa está no campo das minhas atribuições..
Da mesma forma, a geografia
não diz, não deve dizer: <<O crescimento, a extensão, a evolução de
determinado Estado explica-se pelo solo que ocupa, por estas ou aquelas
vantagens de posição ou de situação. Não pode dizê-lo, pois, na verdade (e não
sem razão), os sociólogos levantar-se-iam e diriam: Quem, senão o sociólogo,
poderá tomar conhecimento de tudo quanto diz respeito à estrutura material dos
grupos e à forma como os elementos se distribuem no espaço? É esse efetivamente
o objeto de uma ciência sociológica especial: a morfologia social.
O solo, não o Estado: eis o
que deve preocupar o geógrafo. E, assim como ele apreende, como pode chegar às
instituições, a essas coisas imateriais, por intermédio dos objetos que as
exprimem e que o etnógrafo recolhe e classifica nos seus museus, também não é direta
mente que o geógrafo apreende as sociedades humanas, as sociedades políticas;
apreende-as sim pelos vestígios que deixam à superfície do globo, peia marca
que aí imprimem; consegue-as, por assim dizer, através da sua projeção sobre o
solo>>. E quanto ao resto?
Quanto ao resto, todos podem
livremente ir buscar aos trabalhos dos geógrafos, os tratados de conjunto ou às
monografias regionais, os elementos para elaborações pessoais. O investigador
que se propõe explicar pelo solo e pelo clima a formação dos instintos que
observa e os traços — tal como um Boutmy, por exemplo — com que reconstitui a
fisionomia coletiva do povo inglês ou do povo americano tem inteira
liberdade para ir buscar aos estudos geográficos sobre a Inglaterra os fatos e
elementos, que combinará à sua vontade e para os seus próprios objetivos. Mas o
que desse modo efetua é etologia coletiva, e não geografia. Sem dúvida que
maneja noções geográficas, mas maneja-as como etólogo e para fins não
geográficos.
E, do mesmo modo, o
sociólogo que apenas concebe as sociedades como grupos de homens organizados em
determinados pontos do globo, e não comete o erro de os considerar como se
fossem independentes da sua base territorial, tem inteira liberdade para
investigar em que medida a configuração do solo, a sua riqueza mineral, a fauna
e
a flora afetam a sua organização. Também o sociólogo poderá manejar noções geográficas,
que irá colher, inteiramente elaboradas, aos livros dos geógrafos; mas
utilizá-las-á como morfologista e para fins que não serão geográficos.
Por outras palavras, a
morfologia social não pode pretender suprimir, em seu benefício, a geografia
humana, porque as duas disciplinas não têm nem o mesmo método, nem a mesma
tendência, nem o mesmo objeto.
Capítulo 1 do
livro "A Terra e a Evolução Humana", Ed. Cosmos, Lisboa, 1955