Cidade sem janelas Nelson Brissac Peixoto
Arte/Cidade Agnaldo Farias
As Figurações do Tempo Ismail Xavier
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Cidade sem janelas

Nelson Brissac Peixoto

Um horizonte de concreto chapado contra os nossos olhos. O muro de prédios se assemelha ao chão de pedra das calçadas e o fosco das fachadas espelhadas impede qualquer transparência. Coisas que se recusam a partir, sedimentadas, amontoando-se umas sobre as outras. Tudo é abarrotado, os espaços profusamente tomados por camadas de reboco, tapumes de madeira, vigas de ferro soterradas por improvisações de alvenaria, restos de trilhos e traquitanas, detritos e pó. Um palimpsesto formado pelos vários usos que tiveram as coisas.

Os galpões do antigo Matadouro da Vila Mariana abrigam um mundo subterrâneo e sombrio. Um espaço desprovido de memória, do qual só restam a estrutura fabril e resquícios mecânicos da atividade esquecida. As grossas paredes de tijolos, as vigas de ferro, as portas e janelas cerradas exercem um peso opressor. Universo maquinal marcado pela corporiedade, onde o arado fende a terra e a alavanca move as engrenagens. Esforço humilde contra um mundo coagido pela força da gravidade. Ao oposto do impulso contemporâneo à transparência e leveza, à tentativa de evitar a compacidade do mundo pelas torres e arranha-céus, temos um confronto direto com o volume esmagador da matéria. Os artistas aqui reunidos atuam sobre a espessura das coisas. Em vez de uma expectativa de transcendência, eles olham para baixo, para o que tem densidade e concretude, o que puxa para o chão.

Uma paisagem intrincada articula-se aí, onde a visão é sempre parcialmente encoberta por obstáculos. Não há como apreender, de um só golpe, o conjunto do espaço, obrigando a percorrer este labirinto. Muros, grades, mezaninos e sombras represam a vista, tirando a perspectiva das coisas para comprimi-las contra a parede. Onde nada fica de fora, ver está ligado ao manuseio. Tudo compartilha a mesma materialidade: evidência da operação, do gesto, do esforço. Em todo lugar, marcas da mão, depositando escuridão sobre a luz. Mundo feito de terra, onde se atua lastrado na matéria, escavando o chão, raspando as paredes, como o ferreiro que malha o metal ou o gravador que opera com o buril. Essas maquinarias pesadas - referências a um universo mecânico anacrônico -

estão destinadas à imobilidade, não lhes resta nenhuma chance de vôo. Mesmo as instalações que a princípio comportariam elementos aéreos - como as feitas com fotografias, cinema e vídeo - apresentam imagens densas e carregadas. O solo em vez do céu.

Um universo sistêmico - paranóico - resultou da ocupação deste antigo abatedouro. Cada obra contribui para articular uma estranha engrenagem, um sistema de vasos comunicantes, uma trama de portões, arcadas e pilares. Em cada canto um dispositivo em funcionamento, uma câmara escura, um artefato de escavação ou apoio, uma colagem de inscrições, uma instalação sonora. O espaço compacto entre as coisas, como uma vegetação espessa, funciona como cimento, ligando objetos e planos de diferentes dimensões. A cidade é um muro impenetrável e opaco.

A estrutura arquitetônica de Anne Marie Sumner estabelece, já na entrada, uma relação de evidência e obstrução com o visitante. Três telas metálicas paralelas deixam entrever os galpões da exposição através das suas malhas sobrepostas, mas bloqueiam toda visão panorâmica do lugar. De diferentes comprimentos, cruzam diagonalmente um terreno acidentado, guardando porém sempre o nível, de modo a acompanhar as irregularidades. Elas se articulam com o entorno, criando com o muro de arrimo e o pátio um espaço ampliado. A grade redesenha a topografia do local, tornando mais alta a área ao pé da ladeira e mais baixa a parte da construção que, subindo a elevação, se pode ver de cima. Mesmo a perspectiva construída pelo paralelismo dos eixos é interrompida por sucessivos anteparos perpendiculares, abolindo todo horizonte. A entrada - por definição uma área aberta de trânsito facilitado - passa a requerer um itinerário. A obra não pode ser compreendida de um só ponto de vista, exigindo um percurso que a contorne, que possibilite vê-la das diferentes posições do terreno.

As janelas obstruídas da primeira sala não dão para nenhum horizonte. Nada as distingue daquelas pintadas na parede cega: todas abrem para dentro. Ao pintá-la inteiramente de vermelho, usando pigmento puro, Marco Giannotti criou um ambiente que em vez de emanar luz - como os espaços sacros agraciados por vitrais - absorve toda luminosidade na parede porosa e aveludada. O ambiente leve e aberto torna-se denso, tomado por um movimento centrífugo. Espaço negativo, ela é o oposto do lugar, o reverso da arquitetura: um buraco negro. Sua intensa força cromática é opaca. Ela é convertida numa câmara escura.

Aqui é que a montagem teatral de Enrique Diaz localiza seis das cidades invisíveis de Calvino. Dois paradoxais contadores de história, pois desprovidos de experiência, relatam cidades descritas em livros encontrados numa biblioteca. Tudo se passa num lugar fechado, esta sala vermelha de janelas cegas: a viagem é um movimento sem sair do lugar. Os gestos são contidos, a fala impessoal: sintomas da claustrofobia urbana moderna. As cidades, que só existem como registro fantástico, sugerem espaços labirínticos e anônimos.

Ao fundo de uma sala vedada à entrada de luz, caixas de diferentes tamanhos são irregularmente assentadas ou empilhadas, de modo que a iluminação instalada dentro delas só se propague pelas frestas. O espaço criado pela instalação de Carlos Fajardo é o contraponto do anterior. A luminosidade aqui vem de dentro, lutando contra a resistência das embalagens e do espaço. Cerceada pelo peso da escuridão. A ausência ganha densidade material. Como se a escultura fosse tudo aquilo que ela não é: o espaço que existe entre ela e as paredes, massivamente tomado pela escuridão. Uma escultura de sombras. Enquanto o primeiro ambiente absorvia a luz, este impede que ela se expanda: nos dois casos, estudos de contenção. Os elementos mais leves e cinéticos podem ser agentes da gravidade. Desprovido de visão, o visitante experimenta a mesma desorientação espacial que o acomete desde a entrada, com a grade que redefinia as posições do terreno e os pontos de vista. Ele é obrigado a estabelecer uma relação tátil com o local. Apalpar a escuridão mostra que ela é material.

Os buracos escavados por Carmela Gross iniciam um movimento descendente, condicionado pela bruta fisicalidade do lugar. Como se essas perfurações larvais pudessem ser uma busca de novos horizontes, uma tentativa de insuflar um pouco de ar num ambiente asfixiante. Mas, janelas perversas, dão para o chão. Cada buraco é meticulosamente desenhado e alocado numa planta do local. Tal como a demarcação do terreno para uma intervenção cirúrgica ou militar: não por acaso uma de suas referências são os quadros de autópsia de Rubens, artista do desenho massivo e da solidez corpórea. Dispostos segundo uma grade, esses buracos fazem um mapeamento negativo do espaço, indicam tudo aquilo que não é, que não se pode ver. Ao fundo, um painel formado por reproduções coladas sobre pano, espécie de sudário dessas perfurações, parece tentar elevar aquilo que inexoravelmente aponta para baixo. Paradoxal leveza, que só reforça o peso que afunda o chão.

As fotografias de Antonio Saggese enfrentam a mesma tensão entre a leveza e o pesadume. Na primeira série, fotos de uma estátua desmontada. As imagens da massiva figura de bronze são ampliadas - mutilação amplificada em pedaços compostos pelo computador - e suspensas no ar. Grandes painéis impressos em papel leve, pendendo soltos. As imagens texturadas pela reprodução técnica, volumes que ocupam todo o quadro, evidenciam a materialidade da própria fotografia. Na segunda série, fotos feitas do retrovisor de um automóvel parado em cruzamentos, de pessoas dentro do carro detrás. Figuras constrangidas no interior de veículos, submetidas à inércia que as impede de deslocar-se, que bloqueia a visão. O que é estático, o monumento, aparece em movimento e o que é móvel é visto em suspensão. As fotos, tiradas através do espelho, misturam o que está à frente com o que está refletido, criando superfícies de grande densidade visual. As composições, em papel peixero, são coladas diretamente na parede. Papel pesado, aderido aos tijolos, com imagens de um emblema da transparência: a fisionomia humana. Nada mais opaco, porém, que rostos em trânsito. As imagens anônimas e banais, reproduzidas em série, utilizam-se da linguagem do cartaz barato de shows e propaganda eleitoral, mal impresso e efêmero, que forra os muros da cidade. A panfletagem dos galpões recria o ruído visual da paisagem urbana. Mas esses cartazes acumulados, cuja força provém da própria presença insistente e caótica, podem também engendrar, em algum momento, uma imagem diferenciada e informativa.

Arnaldo Antunes retoma esta técnica dos "lambe-lambes", os anúncios de shows e os avisos de serviços e oportunidades que saturam a cidade. Sucessivas camadas de papel acumulam-se sobre as paredes. Inchadas pela umidade, enrugadas pelo sol, as folhas ganham consistência e peso. O tema é a deterioração, provocada pela cola, pela exposição ao tempo, pela sujeira. A visceralidade desse material, dotado de algo orgânico. São poemas compostos em tipografias tradicionais, cada palavra impressa em cartazes diferentes, de modo a se misturarem ao acaso, criando novas constelações. Como um Oráculo (obra mais ampla que o artista vem realizando), permite uma leitura aleatória da cidade enquanto colagem de acontecimentos. Os cartazes são colados por cima dos outros, depois rasgados, fazendo várias camadas. O rasgo tem função importante: vai deixando aparecer as palavras, permitindo novos agenciamentos entre elas. Leituras parciais entre os pedaços de papel. Cada cartaz é tomado em relação ao que está embaixo. Como ocorre com os avisos de shows ou com a propaganda eleitoral, trata-se sempre de encobrir o outro: sugere transparência. Mas as diversas camadas produzem opacidade, uma crosta que passa a fazer parte do próprio muro.

No limite, as imagens poderiam ser emulsionadas diretamente na parede, prescindindo da lisura do papel fotográfico. O grande painel de Cassio Vasconcellos - sobre entretela - é uma panorâmica urbana articulada através de formas desproporcionais e perspectivas desencontradas. Um horizonte compacto, cuja materialidade mimetiza o skyline de concreto. Essas fotografias - entretanto apenas uma película química - comportam a mesma densidade dos muros de papel. A imagem entranha o reboco carcomido, penetrando nas fissuras da parede. Processo oposto ao do fotógrafo, que como o pintor joga luz: ele opera como um gravador, rasgando a parede com o estilete. A imagem fotográfica aqui não se revela - este horizonte não tem transcendência - ela deita escuridão na cidade. Como se fosse restos de um afresco, estranhamente moderno, que aos poucos vai desaparecendo no muro descascado.

Projetadas diretamente sobre a terra, as imagens de Eder Santos enfatizam a "espessura ótica" do vídeo. A inusitada consistência material dessas imagens - da mesma natureza que a obtida pela fotografia - tem relação com o tratamento dado ao tempo. Cenas de trens em movimento são desaceleradas, tornando perceptíveis as figuras, vistas pela janela, no interior dos vagões. Uma mulher em desatino contorce-se no interior de um carro. Filmada a seis quadros por segundo, seu rosto praticamente se dissolve na paisagem que passa atrás. Os corpos confundem-se com o entorno. Tanto a freada quanto a aceleração afetam as figuras, revestidas de inusitada concretude. A rapidez - em geral associada ao cinetismo - passa a alimentar a espessura da imagem-vídeo. Uma geologia feita em câmara lenta, uma inscrição do tempo no espaço. O retardamento vai depositando camadas de matéria ótica nas imagens.

O espaço é também denso de ruídos sonoros, que têm volume estrutural. Música, o barulho de máquinas e projetores, trilhas, gravações e sons ambientes tornam ainda mais opaco o lugar. Intensidades sonoras e batidas compassadas como as que ritmam um local fabril. As instalações sonoras de Livio Tragtenberg - uma centena de alto-falantes distribuídos em cerca de oito ninhos espalhados pelo chão dos galpões - funcionam como esteiras mecânicas, carregando massas sonoras de um canto a outro, sistemas distributivos que misturam os sons e regulam suas intensidades. Falas gravadas das próprias discussões, de conversas telefônicas. Cidade eletrônica: ruído de caixa automática, chamadas de metrô... O som não ultrapassa três metros de cada fonte: os volumes relativamente baixos permitem perceber, devido à distância, um pequeno atraso de um núcleo para outro, gerando uma espécie de onda dos mais próximos aos mais distantes. Uma sensação de movimento. Variações de volume e densidade (agudos e graves): a sonoridade é tratada plasticamente. O som tem massa, a mesma inesperada materialidade que apresenta o vídeo. Não expande o espaço, ele o preenche. Torna o ambiente mais pesado.

"Inferno", de Arthur Omar, aprofunda a descida aos tormentos da memória e à violência do presente, iniciada nos buracos da primeira sala. Qualquer possibilidade de transcendência é negada a essas figuras aspirando redenção. Duas séries de monitores de TV sugerem um espaço espiralado: os círculos do inferno. No alto passam nuvens. Embaixo, antigas imagens amadoras mostram a mãe do artista, ainda jovem. Essa sugestão de pureza é sucedida por cenas de abandono e desvario do carnaval carioca e, depois, pela pulsação luminosa das imagens feitas do interior de um trem em movimento, até converterem-se em chamas. Configura-se o itinerário da danação. Tudo é colocado em termos de transporte: para onde vão as almas? A parte alguma, pois céu e inferno são aqui, estamos condenados a não sair do lugar. Neste mundo mecânico não é possível voar. O vídeo aqui é condutor de eletricidade, um pára-raios que conduz para o fundo da Terra.

A coreografia de Susana Yamauchi instala suas criaturas nos mesmos espaços intersticiais desse purgatório. Esses seres larvais saem de buracos ou descolam-se das paredes para o chão. Mimetizam os muros em ruínas, adquirindo a mesma textura esgarçada e rugosa. Pessoas incrustadas em conchas, cercadas de concreto, como as que moram sob os viadutos, nos apartamentos junto às vias expressas. Habitantes de algum inferno bruegheliano - mas muito contemporâneo - vestidos de farrapos, os rostos mascarados. Além disso, procura-se explorar os gestos repetitivos da dança, os movimentos maquinais da produção em série que dominaram todas as outras instalações. O grande número de bailarinos cria uma impressão de multidão: todos se movem em conjunto, como um bloco compacto. Uma massa bruta e informe como a cidade.

O "filme de curta-metragem e fenaquistoscópio", de Jorge Furtado, trata o cinema como recomposição do movimento através de um disco com imagens fixas. O cinema quando o encadeamento brusco das imagens ainda deixava perceber a mecânica que sustenta esse fenômeno ótico. São dois dispositivos conjugados: no objeto, o homem-músculo, o operário-máquina, a mulher-esteira. Pessoas sem rosto, só corpo e movimento. O registro cinematográfico desse "trabalho escravo" é uma quase interminável repetição, os gestos encadeados correspondendo à sistemática fabril. Ao lado, numa projeção, o caleidoscópio de ofertas da cidade: máquinas de empacotar, botões a varejo, panelas de pressão, decalcomania e outras coisas anunciadas no "Jornal de Serviço" de Carlos Drummond de Andrade. Cada uma das noventas ofertas do poema corresponde a uma imagem - xerox, polaroid, slides, cartuns, fotografia digital, desenhos, pinturas... Dentro do objeto, a ilusão de movimento se dá pela estroboscopia causada pelo movimento do objeto. Fora, a luz é estroboscópica, fixando por alguns segundos a imagem do objeto em movimento. Nos dois casos, o ritmo sincopado constitui, graças aos efeitos de persistência retiniana, essa mecânica da imagem. O cinema é uma arte da era fabril, com engrenagens semelhantes às dos antigos parques de diversões e matadouros.

Outro dispositivo de montagem e desmontagem foi engendrado por José Resende. Um guidaste é programado para compor ininterruptamente estruturas com elementos encontrados no local. Desde uma base formada por pedras espalhadas ao acaso, sobrepõem-se tubulações metálicas, vigas de madeira e postes de concreto. A partir de um roteiro com algumas configurações, estruturas vão ser seguidamente erguidas e desfeitas, cada repetição servindo para ajustar o desenho e encontrar novas variantes. Trata-se aqui de um estudo sobre as articulações dos objetos e materiais. Uma busca de encaixes e ajustes não programados nas peças, não previsíveis nos materiais. Engates que sugerem uma arquitetônica, mas que evidenciam a tensão entre a precariedade da sustenção e o peso dos materiais, os limites da construção. O gesto de suspensão - realizado por uma máquina, de modo a retirar-lhe toda conotação pessoal, toda intencionalidade artística - é contrastado pela força da gravidade. Como a torre de Babel. Problematização da verticalidade, que o artista efetua também em suas esculturas. Renúncia ao impulso construtivo, retomada contínua do esforço para erguer o insustentável pesado.

Não por acaso esse itinerário termina contra outra grade, não deixando alternativa senão andar em círculos: as obras aqui instaladas armam um moto-contínuo. Um percurso acidentado através de um terreno obstruído, uma sondagem do abismo. Não se trata aqui de perceber o invisível das coisas, mas de confrontar sem descanso sua impenetrável e irremovível presença.

Cidade sem janelas Nelson Brissac Peixoto
Arte/Cidade Agnaldo Farias
As Figurações do Tempo Ismail Xavier
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Arte/Cidade

Agnaldo Farias

Estamos inaugurando hoje a série de palestras relativas ao encerramento do primeiro bloco do projeto Arte/Cidade, concebido por mim e pelo Nelson Brissac Peixoto. A minha intenção é apresentar-lhes a concepção geral do projeto, as questões que permearam sua formulação, algumas das muitas dificuldades que encontramos para realizá-lo, e fazer alguns comentários sobre o resultado que atingimos aqui com esta exposição. Naturalmente estes comentários serão indicativos, uma vez que é impossível aprofundar-me sobre cada um dos trabalhos, com o tipo de reflexão que eles exigiriam.

O projeto Arte/Cidade nasce de uma conjunção muito favorável que nós, assessores do Ricardo Ohtake - o que inclui além de mim e do Nelson, o Guilherme Almeida Prado, de cinema, Marta Góes, de teatro, o Rodolfo Stroeter, de música e a Clarisse Abujamra de dança, encontramos na sua gestão para o desenvolvimento de um projeto mais experimental, que saísse da rotina de atividades da Secretaria. Pareceu-nos interessante aproveitar a oportunidade para tentar romper através de uma atividade multidisciplinar um relativo silêncio, de uma relativa clausura a que hoje está submetida cada uma das áreas de expressão artísticas. Aliás é interessante notar que também essa tradição foi perdida, afinal já tivemos muito mais debate e intercâmbio de idéias neste país. Mas, ainda dentro da conjunção positiva que encontramos na Secretaria, deve-se frisar o direito de fracasso que nos foi dado. Ora, trabalhar com esse tipo de franquia garante a qualquer projeto o direito à transgressão, um acento experimental que é sempre muito desejável.

Falar de Arte/Cidade é falar de um binômio muito complexo, que vem sendo trabalhado com muita consciência desde o advento da modernidade, sobretudo desde as Vanguardas artísticas do entre-guerras. Este fato garante a consciência que temos do caráter pouco original de nosso trabalho, a falta de pretensão de estarmos inventando alguma coisa fora do comum. Se há alguma coisa que sai do trivial, do ordinário, é a tentativa de reatar em outra clave um certo tipo de discussão que já teve presença aqui no Brasil, aqui em São Paulo, e que era muito corrente até o início dos anos 80, mas que submergiu numa certa vaga em que estamos atravessando, onde a tônica parece ser o desmantelamento de toda a produção cultural, agudizado com a crise das instituições culturais ocorrida durante o governo Collor. Assim, penso que o que nós - coordenadores, artistas e críticos - fizemos aqui, foi simplesmente repropor sem nenhum traço de nostalgia, a consideração desse binômio sem ser de forma anacrônica, avaliando e tirando partido de algumas das experiências anteriormente realizadas.

O projeto Arte/Cidade nasce sob a cifra da impossibilidade, nasce tentando criar saídas para uma série de circunstâncias complicadoras que rondam cada um dos termos que compõem este binômio. A primeira delas, que eu tenderia a nomear como essencial, deriva da própria complexidade do fenômeno urbano, entendido hoje de um modo muito mais ampliado, na medida em que não se confunde com os limites estritos, físicos, da cidade. Ao contrário, estende-se por tudo aquilo que o termo compreende: as tramas mais ou menos invisíveis que atravessam e enredam indistintamente todas as pessoas. Este estado de coisas conduz a um dilema crucial: o quê é que se pode eleger de uma cidade para se refletir? O quê, dentro de tudo aquilo a constitui, é hierarquicamente mais importante?

Coerente com esse problema, o dramaturgo Enrique Dias desenvolveu aqui um trabalho inspirado na leitura de "As Cidade Invisíveis", de Ítalo Calvino. Há um momento nesse livro, que relata os encontros imaginários entre o grande imperador mongol Kublai Khan e seu embaixador predileto, Marco Polo, no qual se toca essa impossibilidade constitutiva acerca de qual ângulo deve-se privilegiar diante desse fenômeno multifacetado, aparentemente intransponível, que é a cidade. É quando o imperador põe em dúvida a existência daquelas cidades extraordinárias descritas por Marco Polo e argumenta que cada uma daquelas cidade corresponderia a um diferente aspecto de uma mesma cidade, a única que Marco Polo conhece, e que é Veneza. Em sua resposta lapidar, Polo afirma que não se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve. Que o que existe entre ambos os termos é só uma relação. De fato é só isto que existe. Mas, a rigor isto é tudo.

Uma outra impossibilidade resulta da constatação de que não existe mais um desenho urbano regular, claro em sua conformação, na sua racionalidade, capaz de garantir a fruição equânime da cidade a todos seus habitantes. Sabemos que isto que é uma das principais heranças do pensamento moderno, não passa de uma grande utopia, que o desenho de São Paulo é excludente na sua própria urdidura. A impossibilidade de prosseguirmos idealizando esta cidade, de prosseguirmos acreditando pura e simplesmente nos poderes demiúrgicos da planificação urbana, é quem talvez vem nos levando à sistemática revalorização das ruínas urbanas, tal como esse Matadouro onde estamos hoje. Contudo temos consciência que já há algum tempo persevera uma certa compulsão preservacionista que transforma espaços como este em um sem número de centros culturais, na maioria das vezes improdutivos e que, coerente com a lógica geral do sistema, incorre igualmente na expulsão daqueles que o habitavam anteriormente.

Há, por último, mais uma impossibilidade que se refere à fruição da obra de arte dentro desses espaços tranquilizadores, projetados com o fim específico de abrigá-la. Com isso quero aludir aos museus e instituições correlatas. De fato pensamos que seria oportuno, sem, negar a eficácia do sistema de difusão de arte vigente, alargá-lo; pensamos que seria interessante inserir a obra de arte dentro de um espaço arquitetônico que não lograsse encobrir sua potência. Mas, devo esclarecer que não pensamos o uso deste Matadouro como uma saída para os impasses relativos ao meio da arte. Seu uso portanto não é prescritivo. Daí ele ser efêmero como demonstra a própria seqüência do projeto Arte/Cidade, destinado a ocorrer no centro da cidade.

Ponderados todos estes aspectos posso então afirmar que o projeto Arte/Cidade concebe a cidade não como tema, mas como suporte. Deste modo a idéia de se eleger o Matadouro justifica-se pelo nosso pressuposto que qualquer um dos artistas convidados não trata a cidade como alguma coisa exterior ao seu trabalho. Cada um dos trabalhos expostos incorpora elementos que têm presença na cidade, e os trazem no âmbito da sua linguagem. Naturalmente esta coerência decorre do fato de que cada uma das sensibilidades que os produziram são, por sua vez, sensibilidades forjadas no meio urbano. Por outro lado isto também quer dizer que a obra de arte é pensada em seu campo autônomo, o que contraria um certo pensamento naturalista ainda em curso que cobra da obra de arte referências explícitas.

O projeto Arte/Cidade está previsto para acontecer em três blocos, sendo que cada um se encerra com uma exposição de trabalhos de todos os artistas participantes. Neste primeiro bloco tivemos a participação de quinze artistas e quatro teóricos, além de mim e do Nelson. Foram três meses de discussões muitas vezes tensas, muitas vezes divertidíssimas, sempre sobre o mesmo tema, e que tiveram seu fecho nesta exposição que aqui está. Bom, na verdade devo ressalvar que essas discussões muitas vezes - seguramente muito mais do que eu e o Nelson gostaríamos - não foram sobre o tema A Cidade Sem Janelas, tema esse que ora passo a explicar a vocês.

Em primeiro lugar é preciso que se tenha em mente que a idéia de uma Cidade Sem Janelas, surge como uma espécie de emblema para que os participantes pudessem ver de um modo mais nítido qual era o solo conceitual comum em que todos estariam se movendo. Ou seja, nossa intenção era garantir um mesmo denominador, um ponto em comum capaz de preservar a heterogeneidade do grupo mas atenuando-a rumo a uma direção mais produtiva que não a babel em que nos encontramos hoje. Por certo que todos os artistas convidados para o projeto o foram em função de suas buscas poéticas particulares, buscas que no nosso ponto de vista - e é aí que a nossa curadoria surge de forma mais clara - além de estarem afinadas entre si, em que pese a diferença de linguagens em jogo, harmonizavam-se com o conceito geral do bloco. Desse modo, compreendendo que cada campo expressivo possui uma linguagem e conceitos que lhes são particulares, oferecemos a cada um dos convidados uma lista de palavras que abarca o universo que nos dispunhamos a tratar, sabendo que cada um deles se aproximaria mais de um ou outro termo. A seguir apresento a lista de palavras:

prédios, empenas, fachadas, becos, vielas, sky line, impotência, solidão, clausura, angústia, opacidade, saturação, acúmulo, artérias, detritos, ruínas, sobras, escombros, concreto, lama, pedra, metal, solo mineral, arqueológico, porosidade, espessura, massa, peso, gravidade, cheio, fechado, duro, cinza, amorfo, inerte, descascado, sujo, usado, volume, sobreposição, entrelaçamento, articulação, ruído, indistinção, amontoado, aglomerado, acoplamento, engate, expansão, superfície, plano, epiderme, aridez, secura.

Como se vê, trata-se muito mais de uma nuvem, uma nebulosa conceitual, do que propriamente um campo de limites claros. De fato seus limites são tão frágeis que alguns destes termos pertencem aos blocos seguintes.

Foi muito estimulante, embora por vezes o sentimento de angústia tenha sido generalizado, perceber o efeito desse encontro interdisciplinar. Ocorre que hoje, a produção artística em seus diversos campos é tão sofisticada que qualquer um, mesmo que seja artista, que não pertença a uma determinada área na qualidade de produtor direto ou ao menos de observador sistemático, termina se sentindo um leigo. É muito comum, e penso que vocês concordariam comigo, encontrar um arquiteto que não entende nada de música, um músico que não entende nada de pintura e assim por diante. Daí o teor inquietante dos nossos encontros. Códigos cifrados, sem maiores possibilidades de interlocução eram freqüentemente utilizados. Demorou-se muito tempo e eu não creio que tenhamos atingido sucesso, a não ser que entendamos que esta foi apenas uma primeira experiência, uma primeira tentativa.

Mas houve um elemento importante para garantir que todo o evento não descambasse no ruído e na incompreensibilidade mútua: este Matadouro. Na medida em que se discutia durante a quase totalidade do tempo sua ocupação, aparentemente desviava-se da custosa tarefa de discutir o tema proposto. Ele foi todo o tempo, ou ao menos durante grande parte dele, o grande subterfúgio, o álibi, mas que curiosamente teve o condão de possibilitar a discussão do tema de forma indireta, uma vez que ele, graças aos seus predicados, harmonizava-se perfeitamente com o tema que nos servia de norte.

O Matadouro foi uma solução muito mais feliz do que a princípio podíamos supor. Suas características foram férteis para o desenvolvimento dos projetos dos artistas. O fato dele ser um espaço desmemoriado ainda localizado dentro da malha urbana, um espaço que não se confunde com as práticas que nele eram exercidas. Foi fundamental para a criação de todos os trabalhos que aqui se apresentam e para o avanço do debate que propusemos a fisicalidade ostensiva de suas paredes densas e pesadas, a meio caminho da destruição. De fato foi decisivo encontrar um espaço onde o tempo comparece de maneira tão condensada e cheia de gravidade, como que encapsulado numa grande câmara escura que se recusa a abrir ao contato com a cidade que circula a sua volta.

Cidade sem janelas Nelson Brissac Peixoto
Arte/Cidade Agnaldo Farias
As Figurações do Tempo Ismail Xavier
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As Figurações do Tempo

Ismail Xavier

Os trabalhos apresentados no Matadouro, seguindo uma proposta central do projeto Arte/Cidade, dissolveram a idéia de áreas estanques do audiovisual. Ao me ocupar de cinema e vídeo, não deparo com filmes ou videoarte no sentido tradicional, coisa auto-contida no retângulo da tela. Examino instalações e suas formas variadas de expor materiais num ambiente. André Klotzel justapõe uma tela de cinema e um cartaz-poema. Eder Santos projeta três imagens contíguas num monte de terra: trata-se de vídeo em superfície irregular ou de escultura sobre a qual incidem certas luzes? Arthur Omar alinha treze monitores na horizontal junto à platéia e, mais ao alto, quatro monitores em cruz num cotejo de geometrias tão revelador quanto o teor das imagens. Jorge Furtado usa duas salas separadas por uma cortina que lembra atrações de feira do século XIX: de um lado, uma versão 1994 do Fenaquisticópio inventado em 1832; de outro, o projetor 16mm. A "obra" aqui é o espaço de confronto das diferentes técnicas do ilusionismo.

A singularização do dado técnico, a justaposição de linguagens e a atenção à textura dos materiais trazem os dispositivos para o primeiro plano, afirmam a sua opacidade. Expondo a sua lei de formação, eles exibem afinidades de procedimento com os demais trabalhos da Mostra, incluída a incidência, na fatura das video-instalações, da arquitetura do Matadouro em seu estado atual. Esta é lugar privilegiado capaz de cristalizar o sugerido na constelação de palavras geradoras que balizaram esta fase do projeto. Já se comentou o fato de as obras terem assumido o espaço e seus fantasmas, num toque teatral que ganha contundência em Arthur Omar mas se faz, de certo modo, condição geral pelo que o estar-em-contiguidade impõe de resíduo cenográfico a cada "atração". No assumir o engastamento das obras nas superfícies, os fotógrafos foram tão incisivos quanto os artistas plásticos. Recusando molduras, Saggese e Cássio Vasconcelos ocuparam pontos de passagem, ou cantos sem relevo, tematizando a cidade de forma mais explícita, seja no entrelaçamento de planos e reflexos, nos retratos de figuras aprisionadas ou no painel em foto-montagem cuja fatura não esconde a textura e as emendas da parede.

Passagens: Alice no Matadouro.

Vídeo e cinema, integrados no circuito da exposição de arte tendem a buscar o que Maya Deren definiu como verticalidade do poético - justaposição e adensamento de situações específicas - em oposição à horizontalidade da narrativa. Tal tendência inclui soluções como a de André Klotzel, que se apoia na interação direta com o texto literário. André reproduz, num cartaz, o poema Jabberwocky, de Lewis Carroll, em tradução de Augusto de Campos, enquanto, na tela faz Zezé Macedo deslizar pelo espaço do próprio Matadouro a declamar o mesmo pema. A atriz vivencia a poesia como menina coquete, desliza como Alice na jornada pelo outro lado do espelho. Este, enquanto lugar da travessia, se põe como metáfora do cinema, mundo que desde Jean Cocteau (Sangue do poeta) define a superfície refletora, não como devolução do mundo do lado de cá, mas como portal para outras dimensões que a atriz atravessa ao narrar a aventura folclórica do herói do poema, numa pose de menina urbana, vestida à caráter (de colegial britânica), envolta em livros e fantasia. Desta cena, já se comentou a junção de poesia moderna e chanchada pela presença de Zezé Macedo, mas o dado mais interessante é o gesto de compor passagens dentro passagens, num jogo em abismo pelo qual o tempo parece não avançar. O mergulho da velha-menina na diegese do poema é o momento de enlevo, viagem repetida, entre dois reconhecimentos da presença da câmera-espelho. Cada retorno no final desse deslize pelas palavras-valise de Lewis Carroll, o fim do texto a devolve ao Matadouro, estranhada.

Curvaturas do tempo: o inconsciente ótico das imagens em movimento

A idéia do tempo que não avança ganha maior plasticidade no tríptico de Eder Santos, momento em que a luz, em vez do espelho, encontra o anteparo rugoso e disforme do monte de terra. Resulta uma relação forma/fundo instável, e a variedade dos procedimentos chega a tornar difícil o reconhecimento do que se passa diante da câmara.

Na imagem do centro, o ponto de partida é a situação clássica de um observador e de um trem em estado de movimento relativo. No entanto, as alterações na velocidade do registro, os lances de edição e as sobreposições exploram a moldura das janelas e os corpos em movimento para criar um campo de percepção novo, um espaço-tempo sintético que faz da chegada do trem à estação uma experiência distante do registro de Lumiere. O que se evoca aqui é uma dinâmica afinada ao cubismo: os recortes de planos e simultaneidades como que congelam o instante, criam uma pulsação de figuras geométricas. Auxiliada pela música e suas recorrências, tal pulsação se faz obsessiva, instância de repetição no aparente deslocamento.

A imagem à direita traz um movimento lateral que sugere um passeio de carro. Junto à câmara, uma mulher se agita; seu rosto pouco discernível, seus cabelos, suas mãos e o tecido roxo da roupa se inserem num jogo de tonalidades, luz e sombra nervoso em sua fatura. A alteração de velocidade cria efeitos que lembram a teoria de Jean Epstein sobre a imagem em movimento e sua capacidade analítica de revelar micro-estruturas dotadas de certa "personalidade", movimento próprio (como os cabelos aqui). Fica a sugestão de ordens localizadas que, na sua relativa autonomia, supõe um espaço-tempo descontínuo. Há constante movimento mas não há teleologia, siquer passagem a um outro estado; as várias "realidades locais", tornadas visíveis pelo dispositivo, compõem um campo fragmentado que não pode avançar.

Na imagem à esquerda, o movimento de câmara pela cidade à noite é mais legível: os estímulos são rarefeitos, mas a passagem de luzes e superfícies indica um mundo urbano de concreto, estruturas de ruas e avenidas, espaços vazios pelos quais a câmara avança. E nítida a subjetivação do olhar pelo constante movimento de câmera-na-mão que explora texturas. Na oscilação, portanto, entre o explorar geometrias com disciplina e o construir este olhar-projeção de um sujeito, as três imagens de Eder retomam pesquisas da vanguarda dos anos 20: franquear os limites da percepção, fazer ver o que não se oferece ao olhar desarmado, tensionar o campo do visível, questionar o senso comum e convidar a uma nova vivência da cidade. O nervosismo das imagens assinala uma dinâmica que nos ultrapassa. E o desconcerto faz desta itinerância do olhar não bem uma flanerie mas o enfrentamento de uma opacidade radical.

As fachadas de Marco Giannotti definem a matriz do vídeo Céu Livre, dele próprio, Eder Santos e Nelson Brissac, mergulho no campo de forças das cores saturadas. A textura das superfícies torna-se aqui o paradigma e o vídeo aproxima quadros de Giannotti expostos no MASP, paredes de edifícios em decomposição e os tijolos e janelas do Matadouro. A itinerância tem pontos de repouso e há a sombra do observador que se impõe em certos instantes. A cadência das imagens estabelece uma relação mais contemplativa e os deslizamentos suaves, embora se apoiem num meio que é basicamente vibração de cor, não excluem harmonias, acasalamentos que encontram reforço no poema de Haroldo de Campos e na música de Lívio Tratenberg. Algumas freqüências de cor acolhem o olhar; outras o tensionam, o que dá aparência de ligeiros avanços e recuos da imagem. Mas a saturação privilegia a superfície, e o título é pura ironia: não há horizonte nesta obra que se inicia com o plano de um chão salpicado de folhas mortas e passa a transformar paisagens em fachadas, paredes em quadros e vice-versa. a dominante do vermelho e as interferências na passagem de uma cor a outra criam o drama, num dinamismo cromático bem oposto ao universo majestático do azul - o "céu livre" aqui ausente - de Arthur Omar.

O direito e o avesso: inconsciente político das imagens em série

No fenaquitiscópio de Jorge Furtado o tempo também se detém. O desfile de imagens provém da rotação do aparelho e, cada ciclo, tudo se repete, pois a ilusão de movimento se cria a partir de fotos observadas através de fendas no cilindro giratório. Tal como seu modelo de há 150 anos, o dispositivo de Furtado faz suceder, em sua superfície interna, imagens fixas das várias fases de uma ação, reproduzindo-a em aparente continuidade: um pedreiro leva material escada acima, uma empregada limpa um chão de cozinha, outro pedreiro usa um porrete numa demolição. Três gestos de trabalho que sublinham seu lado mecânico com a repetição. Há, porém, do lado de fora do cilindro uma outra coleção de imagens fixas cuja disposição não visa a ilusão de movimento. Esta coleção repassa a cada ciclo como conjunto discreto, exigindo um esforço de focalização pois seu movimento lateral não facilita o olhar. E o efeito maior do aparato está no sistema de iluminação: opacidade e transparência dependem do ângulo de incidência da luz no cilindro; ora a luz "normal" incide de um ângulo que destaca a parte interna e nos sonega o exterior, ora uma luz estroboscópica incide na parte externa e destaca as imagens fixas, gerando uma alternância entre o dentro e o fora. O lado externo traz "reclames" antigos, símbolos de almanaques, fotos de objetos de consumo, ilustrações de divulgação científica, emblemas Pop. A oposição entre dois conjuntos homogêneos, um referido ao trabalho manual, outro ao tecido de imagens que compõem a superfície do social-urbano. Na sua estrutura, o dispositivo configura a clássica articulação de trabalho alienado e fetichismo, opondo o mundo da produção e o das imagens-mercadorias. A geometria engenhosa encanta e há uma dimensão lúdica nesta arqueologia que refaz o aparelho; ao mesmo tempo, há a exposição gráfica de um conceito que se imprime nesta dinâmica que contrapõe as duas faces do carrossel.

Na sala ao lado, o filme 16mm recompõe a oposição entre o externo e o interno, agora expostos em sucessão linear. A série do lado de fora desfila na cadência de um poema de Drummond - "Serviço de jornal" - onde as imagens lá do cilindro vêm se combinar com planos de ruas e sinais de trânsito, edificações, imagens de objetos e serviços postos à venda pelo jornal, gadgets, banalidades e exotismos, enfim a malha visível de mercadorias que se sucedem na tela sob o comando das palavras. O aspecto lúdico-mecânico da série se adensa pela exata sincronia entre palavra e ilustração visual, num jogo de decifração que lembra o passatempo de jornal ou revista antiga com suas cartas hieroglíficas". Tudo se move ao som de mecanismos de fábrica cuja cadência se impõe dentro de uma intenção satírica: som e imagem enumeram, justapõem e, pela repetição, acabam criando o efeito de um sistema total, desenhando a anatomia do social enquanto comédia da mecanização e do automatismo. A cidade e suas coleções convergem no mosaico do jornal que o sujeito observa sem esquecer as zonas sombrias, os dados corrosivos que assinala com ironia. Na segunda parte do filme, seu "lado de dentro", temos a repetição tal e qual das imagens do trabalho vistas no cilindro, agora sobrepostas à imagem dos ponteiros de um relógio a sublinhar a medida mecânica do tempo. No som, lê-se um fragmento do poema em prosa de João Cabral inspirado em Quadrilha de Drummond. Jorge Furtado escolheu a passagem em que o desiludido do amor fala, não do ser amado que tem nome (Maria, Teresa, etc) mas do amor como ente que corrói, se expande e engole o sujeito, "comendo" o retrato, o nome, a coleção de números que qualifica objetos pessoais (número da roupa, do sapato). Ou seja, o esvaziamento do eu se assinala pela abolição dos sinais que marcam o indivíduo como membro de uma série. A diferença entre esta enumeração e aquela do "serviço de jornal" é que agora tudo gira em torno de um sujeito empenhado em expor a dissolução pelo "lado de dentro". Vai-se além da ironia implícita da primeira parte e introduz-se, aos poucos, um tempo irredutível à serialização: "o amor comeu o dia, a noite, o inverno, o verão_ a minha dor de cabeça, o meu silêncio e o meu medo da morte". Ao contrário da série anterior, esta converge para a dimensão da experiência intransferível e subverte a fluência mecânica da sucessão. Faz emergir dor, medo, morte, qualidades de experiência que encontram eco no gesto dos pedreiros e da empregada repetidos ad nauseum. Da fluência, passamos a um tom opressivo e a segunda parte do filme acaba por desfazer o efeito pop da primeira. Este modo de introduzir a contradição lembra o efeito gerado pela noção de liberdade ao final de Ilha da Flores. Lá e cá o jogo se desfaz quando se introduz o que não tem lugar na lógica interna da série. Ou, seja, o que resiste à decomposição em fatores, supõe uma interioridade, um tempo vivido que transmuta a sátira em drama. Para o nosso olhar, o ritmo mecânico, o ciclo do relógio e cadeia das imagens marcam um sistema de repetições que nivela os dispositivos, o fenaquitiscópio e o cinema. Com uma diferença: o aparelho antigo nos dá mais liberdade, pois pescamos as imagens que passam, escolhemos isto ou aquilo. O filme, ao contrário, monitoriza a sucessão, fecha a malha; nele, o fluxo de estímulos se adensa, aumentando o poder das imagens sobre o espectador. Se há alegoria no dispositivo de Furtado, é para evocar um mundo que avança, tecnicamente, sem conseguir juntar o homo ludens e o homo faber.

O alto e o baixo: a "outra cena" da bela imagem.

No dispositivo de Arthur Omar, tempo cíclico, repetição e série se articulam em novos termos. O arranjo dos monitores instaura a oposição entre o alto e o baixo, antes mesmo das imagens trabalharem, pelo seu conteúdo, as dualidades céu-inferno, abismo-beleza. No alto, 4 monitores em cruz trazem a mesma imagem serena de céu azul e nuvem branca mas o conjunto não tem o efeito de repetição em série, uma vez que cada monitor tem seu eixo defasado de 90 graus face ao contíguo, de modo a criar um giro de 360 graus quando se percorre o conjunto - as nuvens parecem se movimentar em circulo, a forma da cruz se torna pregnante, compondo uma imagem global, não a soma de quatro imagens iguais. A mudança de eixo, aparente gesto simples, é momento raro de invenção, um "achado" como se diz, pois cria gestalt, estabiliza a forma como universo fechado, com tempo próprio, campo de forças centrípeto, na tradição de certa pintura, afastando-se da vocação "centrífuga" das imagens do cinema e do vídeo. A cruz em circulo de Omar altera as relações do campo e do extra-campo, deixando clara a diferença de sua lei de formação frente à que preside a série de baixo. Esta se compõe de treze vídeos em linha horizontal com treze versões da mesma imagem, neste caso gerando o efeito de série. O que não impede que o fogo, imagem dominante, ganhe unidade na diversidade das imagens, como uma pira a iluminar o rosto da platéia, enquanto a música, saturada de freqüência extremas, cria forte tonalidade trágica, reforçando o efeito das imagens. De longe ou de perto, o dispositivo se impõe: o céu em cruz no alto e a linha de fogo em baixo figuram, na geometria e no cromatismo, uma cenografia de ritual. E os monitores em linha acolhem uma dupla imagem de sacrifício: em câmara lenta, portanto em cadência específica, desfila a violência de um matadouro de começo a fim, da pancada na cabeça do boi à sua carne despedaçada para consumo, ação que uma lenta montagem intercala com imagens de carnaval de rua e cenas antigas de família. Tanto as cenas do matadouro quanto as imagens dos cortejos e das máscaras dançantes emergem e se dissolvem como que consumidas pelo fogo.

Convivem, portanto, aqui o toque minimalista cristalizado na limpidez do azul-e-branco e a tônica de excessos presente no carnaval, no assassinato e nas chamas da linha horizontal. As cenas do matadouro definem um paroxismo de violência observada no detalhe - o horror de perto, e lentamente. Na sucessão, o cineasta dilata o tempo e queima as imagens que produziu: as de carnaval são de um filme anterior seu e as de grupos familiares pertencem à memória afetiva - é sua mãe ainda criança que vemos nas últimas imagens dissolvidas no fogo. Singulariza, portanto, o tempo presente do exorcismo, faz dele um teatro da crueldade em que o sacrifício do boi - esta atração eisensteiniana - se põe como metáfora referida à própria experiência do artista. Olho no olho do animal sacrificado, o homem com a câmara sinaliza um movimento de identificação que suger tal experiência limite - onde se aniquilam as marcas de identidade, memória e trabalho - como condição para a emergência do novo. Violência e convulsão, estes dados do lado inferior do dispositivo, não estão, em verdade, excluídos do mundo da bela imagem. Alto e baixo formam dois pólos necessários do mesmo processo. Deslocando o paradigma, sua oposição não se daria como dualidade céu-inferno no sentido cristão, mas como figuração da dialética apolíneo/dionisíaco ou, se quiserem, como figuração da fórmula nietzschiana da arte como "sublimação do susto": vivência da dor e contemplação do abismo como condição para se conceber o Olimpo, o mundo clássico das belas imagens. Nesta chave, o espírito de geometria e a experiência de choque do ritual estão juntos para que serenidade e convulsão, equilíbrio e violência encontrem aqui sua figuração limite como duas faces solidárias do mesmo processo. A gênese da boa forma se dá então como drama, risco. Envolve a travessia pelo horror e pela desmedida, o encarar de frente o horizonte do aniquilamento. Em síntese, o que esta co-presença sui generis dos pólos antitéticos oferece é uma imagem do tempo da criação.

Como "outra cena", o ritual de Omar mobiliza a geometria para expressar as forças de um tempo cíclico estranho à fluência e à ordem das progressões mecânicas. Tal como outros tempos figurados no Arte/Cidade, o que se procura aí é um adensamento de experiência, recusa de uma prosa automática do mundo.

Cidade sem janelas Nelson Brissac Peixoto
Arte/Cidade Agnaldo Farias
As Figurações do Tempo Ismail Xavier
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