Folha de S. paulo 16 de março de 2002
Fiscais confundem arte com barraca de camelô
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
Era arte, mas os fiscais da prefeitura julgaram se tratar de
algo fora-da-lei. Confundiram intervenção artística com artimanhas
de camelôs. E apreenderam tudo.
Tudo, aqui, significa uma casinha de 9 m² _a fachada de fibra de vidro, o
teto de lona, as paredes de madeira. Foi erguida num tradicional camelódromo
paulistano, o do largo da Concórdia. E compunha um projeto que o Ateliê
van Lieshout (AVL), da Holanda, fez para o artecidadezonaleste.
A proposta integra técnicas de construção européias
com a arquitetura informal das favelas brasileiras. Em Roterdã, o AVL produziu
cinco diferentes fachadas cor-de-laranja. Trouxe-as para cá e, desde o
fim de fevereiro, está colocando-as de pé.
A idéia é que dêem origem a casinhas na região central
de São Paulo _mais especificamente, no largo da Concórdia, largo
do Glicério, Pari e Brás. Os holandeses cedem a fachada e moradores
de comunidades pobres constróem o resto, com know-how próprio.
Como irão divulgar informações sobre o Arte/Cidade, as casinhas
ganharam o nome de "infoboxes". O do largo da Concórdia ficou
pronto na semana passada, mas mantinha-se fechado, aguardando a abertura da mostra.
Segunda-feira à noite, enquanto promoviam uma fiscalização
de rotina no camelódromo, funcionários da Regional da Sé
avistaram a casinha. Desconheciam o projeto e, àquela hora, não
havia ninguém do Arte/Cidade por perto.
Os fiscais verificaram se o infobox exibia, afixada em uma das paredes, a autorização
da prefeitura para estar lá. Não exibia _apesar de a permissão
existir.
Anteontem pela manhã, o "rapa" voltou à área e
encontrou o mesmo quadro: uma casa de cor berrante, vazia e sem papel que justificasse
sua presença em zona tão tumultuada. Não titubeou. Arrancou
o infobox dali. Quando a fotógrafa Cibele Lucena, do Arte/Cidade, chegou
para fazer uns arremates na casinha, viu-a já sobre o caminhão da
regional. "Estava toda desmilinguida."
"Fiquei impressionada com a truculência e a rapidez da ação",
diz a arquiteta Andréia Moassab, assistente de curadoria da mostra. "Os
fiscais nem tentaram descobrir o que era aquilo. Simplesmente destruíram.
Houve um erro de comunicação incrível dentro da prefeitura,
já que cumprimos cada um dos trâmites burocráticos necessários
para viabilizar a iniciativa."
A administradora regional da Sé, Clara Ant, reitera que o Arte/ Cidade
dispunha, sim, de permissão. "Ocorreu um incidente. Ou um acidente
de percurso, se você preferir." Ela afirma que a regional apóia
a mostra. "Não temos nada contra o evento. Só que não
posso repreender os fiscais. Os funcionários não sabiam do projeto.
Procuraram a autorização e não acharam. Recolheram a casa,
como recolheriam qualquer coisa irregular."
Desatado o nó, a prefeitura devolveu ontem o infobox, que será remontado.
"Vivenciamos uma lição de arte e de cidade", resume Clara.
"Fiscais existem para distinguir o permitido do proibido, e não para
reconhecer o que é arte."
O curador da mostra, Nelson Brissac, pensa diferente. "A regional sabe bem
o que é arte e nos incentiva. Mas os fiscais agem de modo autoritário.
Batem e depois perguntam."
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