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BOLETIM CLÍNICO - número 1 - agosto/1996

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

6. Reflexão sobre uma vivência de Núcleo - Maria Lúcia Cox D´Avila e Wilma Chander Fraga

Durante a graduação no curso de Psicologia, fizemos escolhas que, na maior parte das vezes não foram claras. Só agora, depois de um bom tempo, podemos dimensionar o quanto uma escolha, em especial, favoreceu e direcionou nosso desenvolvimento pessoal e profissional.

Como a maioria dos graduados, chegamos aos estágios do último ano do curso com a cabeça cheia de teorias, pensando que nossa tarefa seria simplesmente passar a teoria para a prática, esquecendo da sabedoria do ditado popular: "a teoria na prática é outra". Pois bem, vivenciar a sabedoria deste ditado foi a primeira etapa do estágio.

Nossa abordagem de base entende a relação terapêutica como um encontro, o que significa que um e outro - terapeuta e paciente - interagem pela presença e pela fala um do outro. Implica ainda que o terapeuta está presente inteiro na relação, com suas dúvidas, seus sentimentos, pensamentos, fraquezas enfim, sua constituição física, seu consciente e inconsciente.

Sua tarefa é reconhecer e seguir o processo do paciente ajudando-o, sempre que possível, a fazer o mesmo. Nesta medida, pressupondo o encontro e privilegiando o processo do paciente, a relação se estabelece, propiciando desenvolvimento para ambas as partes. É um caminhar junto, o que implica em intimidade. Por encaminhamento do Núcleo(1) tínhamos para atendimento, L.R.R. de 9 anos de idade.

Fomos orientadas a iniciar atendendo os pais pois, tratando-se de criança, é importante colher dados sobre seu desenvolvimento, levantar as fantasias parentais, expectativas quanto ao tratamento, entender o lugar que esta criança ocupa na família, qual a dinâmica familiar, entre outras coisas. Estas entrevistas foram muito ricas e a supervisão proporcionou extensa reflexão para delinear estratégias para o atendimento da criança.

L.R.R. chegou ao serviço, encaminhado pela escola, com queixa de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, dificuldade de concentração segundo pai, e longas crises de riso incontrolável e descontextualizado relatadas pela mãe.

Sua história incluía várias internações hospitalares, longos períodos de doenças (pneumonia, hepatite, por exemplo), diagnóstico médico de possível surdez quando ainda bebê, saída de várias escolas por solicitação das mesmas e excesso de acompanhamentos terapêuticos isolados (neurológico, fonoaudiológico, psicológico e atendimento escolar diferenciado). Sabíamos que L.R.R. era portador de lesão cerebral com hemiparesia do lado esquerdo, desenvolvimento neuropsicomotor defasado, fala em balbucio com significados particulares e palavras soltas pouco identificáveis, apesar de amadurecimento biológico próprio da idade.

Entendemos que L.R.R. teria passado por um processo de rejeição tanto na família (gravidez indesejada, expectativa de sexo oposto, pelo pai, etc.) quanto nas escolas. Portanto, passou por situações que dificultavam a formação de vínculos duradouros o que nos levou a definir que um trabalho focalizado na relação e com abordagem corporal, estaria coerente com as necessidades particulares da criança.

Desde o primeiro contato o atendimento de L.R.R.(2) foi peculiar. Na primeira sessão realizou um "reconhecimento de território", percorrendo a Clínica acompanhado pela terapeuta, enquanto fazia contato com todos que encontrava. Por falta de acomodações apropriadas o "espelho" teve que ficar dentro da sala e a necessidade de mexer com água foi resolvida utilizando-se baldes de água dentro da sala, forrada com plástico.

O trabalho com o corpo significou, durante um bom tempo, apenas toques rápidos nas suas costas. Nossa preocupação não era a de aplicar técnicas, imediatamente, mas a de estimular a autopercepção de L.R.R. a nível corporal, favorecendo tanto a ampliação da consciência como a reformulação do esquema e imagem corporal. Nossa crença de que uma criança exposta a tanto sofrimento físico e rejeição poderia ser grandemente beneficiada se chegasse a formar um vínculo positivo e forte, se concretizou.

A força propulsora para o desenvolvimento de L.R.R. decorreu do afeto que permeou nossa relação: sua comunicação evoluiu para a construção de frases coerentes e inteligíveis, passou a assumir comportamentos de risco (subir escada apoiada na parede, experimentar perna de pau). A simbolização passou a se expressar através de jogos propostos e a escrita ganhou interesse. O corpo passou a ser também, fonte de prazer de que pode dispor conscientemente, solicitando toques ou deitando-se para receber massagem. Passou a fazer uso intencional do "Eu" e do "Não". Perceber suas limitações físicas e as superar pedindo ajuda ou buscando soluções criativas. O outro agora tornou-se parte da relação.

Foram as discussões no grupo de supervisão que possibilitaram pensar e refletir o modelo teórico adotado e nossa visão de mundo e de homem e o aprendizado de uma relação direta entre problemas psicomotores e dificuldades de relação no ambiente familiar. Enfim, cada vez que perdíamos de vista o olhar característico do psicológico, nossa supervisora nos levava a refletir sobre os conceitos subjacentes à prática, o papel do profissional e a importância da dimensão do humano no nosso trabalho. A orientação junguiana vê o homem como um ser em interação, caminhando no sentido de tornar-se cada vez mais capaz de expressar aquilo que ele realmente é (processo de individuação), o que acontece, sempre, via relação.

Decorrente dessa visão, o ser sempre extrapola a teoria, simples construtor. Isso nos coloca numa atitude de respeito e humildade perante o outro e o processo que o leva cada vez mais a Ser. A relação é o veículo que nos conduz.

No caso de L.R.R., esse atendimento atípico foi facilitado pela "ênfase junguiana no relacionamento humano, em ser livre para reagir espontaneamente às necessidades da situação que é sempre única, em não se ter quaisquer regras ou técnicas pré-determinadas no momento do atendimento. Ela dá completa liberdade para que haja um encontro criativo. (...) Não temos que "interpretar" necessariamente todos os aspectos da transferência. Temos de ficar atentos, porém, para encontrar e manter o ponto de vista terapêutico apropriado." (Mario Jacoby, O Encontro Analítico - Transferência e Relacionamento Humano, Cultrix, 1984). Acreditamos que essa postura favoreceu os benefícios recebidos por L.R.R. na terapia, bem como nosso fortalecimento pessoal e profissional. Quanto aos estágios escolhidos ... foram eles que propiciaram o início dessa nossa visão.


Notas e Referências Bibliográficas:

(1) Núcleos: Unidades pedagógicas componentes do currículo da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, caracterizadas pela integração entre a teoria e as diferentes formas de intervenção terapêutica. Ocorrem ao longo da formação profissional, no 5º ano do curso.

(2) O atendimento de L.R.R. foi realizado na Clínica Psicológica da PUC-SP, como parte do estágio clínico do Núcleo - Integração Psicofísica, sob supervisão da Professora;. Regina Célia Gorodsky, durante o ano de 1993.

(3)"Espelho": denominação usualmente utilizada para designar o estagiário que observa e registra a sessão terapêutica, geralmente da sala de espelho, trabalhando em parceria com o estagiário terapeuta.