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BOLETIM CLÍNICO - número 2 - outubro/1997

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

13. O Diagnóstico e a Psicologia Analítica: Palestra no Núcleo de Diagnóstico PUC-SP - Setembro/96 - Maria Ruth Gonçalves Pereira(1)

Ao pensarmos a idéia de diagnóstico, devemos enquadrá-lo sob novos prismas. O propósito do diagnóstico será aqui visto como algo voltado a prevenção, tratamento, reparação, e não "dar rótulos" ou "afirmar certezas" sobre uma pessoa.

No modelo tradicional da Medicina, o diagnóstico correto exige conhecimento e o médico é obrigado a se afastar do paciente e se voltar para o laboratório para fazer seu diagnóstico, porque é no laboratório que todo o conhecimento pode ser sistematizado e condensado. Igualmente, para prescrever tratamento, o médico volta-se para o laboratório, que preparou produtos que vêm de encontro às categorias diagnósticas. Deste ponto de vista, o médico deve permanecer um observador objetivo dos processos que ocorrem no paciente. Se apenas transferíssemos esse modelo para a Psicologia, diríamos que o melhor terapeuta é o que mantém sua personalidade encoberta.

Ao trazer a noção de dialética ao contexto psicoterápico, Jung introduz uma nova modalidade de relação psicológica entre terapeuta e cliente. Em vez de um médico neutro, ou um observador passivo, ele nos fala do encontro analítico como a possibilidade de, ao ser atingido pela pessoa ali a sua frente, o psicoterapeuta ser o instrumento do seu próprio trabalho. É ele que recebe em si as informações que lhe estão sendo passadas.

Sua própria percepção da situação, antes de ser um elemento de distorção é, na visão da Psicologia Analítica, o instrumento por meio do qual a relação pode se processar. "O cliente começa a se observar e a observar o analista e o analista, sujeitando-se ao processo em curso, não é mais um observador fazendo um diagnóstico." (Hillman, 1993, p. 164).

Fazer um diagnóstico é começar do que é conhecido pela pessoa, em busca daquilo que não se conhece, não se sabe. Essa mesma busca, encontramos no contexto da psicoterapia. Numa formulação tradicional de diagnóstico, paramos quando a doença foi classificada. Na dialética da análise, cliente e psicoterapeuta vão rumo ao desconhecido, num processo contínuo de descobertas, de tornar-se consciente. Conhecer, nessa dimensão, ultrapassa o intelecto racional para abranger o re-significar constante de situações e de pontos-de-vista.

Para Jung, o inconsciente, o que nos é desconhecido, não apenas carrega o que é reprimido, mas traz em si, o campo das potencialidades a serem utilizadas pelo indivíduo.

Considerando - se essa visão, terapeuta e cliente se associam, trabalham conjugadamente na busca de novas perspectivas ao processo da pessoa. Assim esse descobrir é para uma vida e não se restringe apenas à situação do encontro analítico. A busca não é do que está errado, do patológico, mas constitui em perceber como a psique está trabalhando e quais as possibilidades novas para seu desenvolvimento. Diagnosticar é, então, encontrar a descrição da situação atual e as possibilidades a serem trabalhadas na correção do processo no sentido de torná-lo mais criativo, porque utilizam-se potencialidades ainda não vividas.

Como aliar esse modelo à visão psicológica que trabalha com testes? Presume-se que este tipo de instrumento tem, como na Medicina, o papel do laboratório ajudando a classificação diagnóstica e facilitando o encaminhamento a um determinado tipo de tratamento. Isso parece antagônico a uma Psicologia que busca o envolvimento intuitivo com o outro como sua fonte mais rica de conhecimento.

É preciso que salientemos dois aspectos importantes:

  • o treinamento de uma visão intuitiva tem, no material dos testes, um instrumento bastante rico. Ao indicar características da pessoa, os testes auxiliam o aluno a caminhar frente ao campo psíquico desenvolvendo um olhar mais discriminativo;
  • olhando a situação do diagnóstico como a busca de parâmetros que nos auxilia na compreensão do processo e da dinâmica psíquica, os testes nos indicam caminhos e nos fornecem pistas para podermos elaborar essa mesma dinâmica.
Os testes não devem ser considerados substitutos do conhecimento só possível ao psicólogo, nem devem ser instrumentos de um conhecer sem envolvimento. Essas são idéias antigas de um modelo tradicional de Medicina, e que nada tem a ver com a proposta junguiana.

O contato direto psicoterapeuta-cliente é condição "sine qua non" mas requer do terapeuta um contato consigo mesmo bastante intenso e honesto. Esse aprendizado pode ser facilitado por meio de um material intermediário que vá auxiliando o terapeuta a reconhecer aquilo que pertence ao processo da pessoa e o que pertence a seu próprio processo. Visto com essa atitude, os testes não são detentores do saber, mas são utilizados na experiência entre psicólogo e cliente como facilitadores às descobertas que vão ali se processar.

O analista no método dialético age como uma parteira que intensifica um processo que é fundamentalmente da pessoa que está ali com ele. Nenhuma técnica pode substituir esse contato. Qualquer instrumento - desenhos, testes, caixa lúdica - auxilia a penetrar no campo psíquico. Esses materiais são ferramentas a subsidiarem um contato entre terapeuta e cliente mas, jamais, substituí-lo.

A dialética se processa na relação entre as duas pessoas envolvidas e dentro de cada um separadamente. Nesse sentido, os testes fornecem elementos que auxiliam o terapeuta a formular uma descrição da pessoa a sua frente.

A pessoa deve ser olhada em todos os seus aspectos: intelectuais, emocionais e físicos. O corpo é uma experiência que deve ser ouvida pelo terapeuta, tanto quanto seus sonhos, suas fantasias e suas palavras.

Os sintomas apresentados são considerados como fontes de informação a respeito das vivências do indivíduo e não apenas em seu aspecto patológico.

Surge, então, a busca do significado simbólico na exploração do background que está facilitando a ocorrência do sintoma. O método de que nos utilizamos é a ampliação, isto é, o alargamento dos parâmetros ao nos confrontarmos com uma situação. Ao definirmos, utilizando apenas o conhecimento racional estabelecemos o que algo é, e o separamos daquilo que não é. Na ampliação, confrontamos a mente com os paradoxos e tensões, revelamos complexidades, buscamos contradições, aproximando cada vez mais, a linguagem do que sabemos (consciente) daquilo que não sabemos (inconsciente).

O significado não é resultado da interpretação, não é algo que atribuímos aos sonhos e eventos trazidos pela pessoa. O significado precede a interpretação, é algo extraído e já presente no sonho ou no evento. O significado é o que torna cada experiência rica de possibilidades a serem desenvolvidas. O terapeuta pode extrair esse significado "desnudando e reduzindo os fatos a princípios fundamentais, e tornando os eventos prenhes de significado, por intermédio da ampliação." (idem, p. 170).

Na visão da Psicologia Analítica, o significado é extraído a partir do desconhecido. Questões são levantadas não no sentido de se obter respostas definitivas, ao contrário, elas eliciam um processo que leva a novas questões na busca de novas possibilidades a serem configuradas. Nesse sentido, o diagnóstico não significa um fechamento, uma certeza, mas um levantamento de questões vitais a serem processadas no desenvolvimento da pessoa e no levantamento das condições necessárias para que esse desenvolvimento possa se constituir.

A ampliação nos conduz a um olhar simbólico sobre a realidade externa ou interna. À medida que caminhamos pelos fatos, vamos obtendo mais conhecimento a respeito dos padrões básicos que norteiam a nossa vida, e vamos adquirindo uma compreensão cada vez maior a respeito das dores que carregamos e das barreiras que estabelecemos ao nosso próprio desenvolvimento.

A partir daí, o re-conhecimento da psique pessoal nos conduz à perspectiva universal e coletiva, abrindo novas portas à compreensão do indivíduo. "A individualidade da alma não se baseia em fatos acidentais de criação e circunstâncias, porém, mais provavelmente, na habilidade de cada um de nós descobrir sua vocação particular, da qual esses acidentes formam parte e à qual devem estar relacionados." (ibidem, p. 172).

A perspectiva do processo é esse encontro e conciliação entre o pessoal e o universal. Ao terapeuta não cabe diagnosticar e curar, no modelo tradicional, mas de restabelecer o contato do indivíduo com sua própria função no mundo, possibilitando-lhe novas formas de viver e de morrer.

A proposta que a Psicologia Analítica faz é da "compreensão do nível pessoal da psique à luz do conhecimento do nível impessoal. Isto propicia aquele não envolvimento a partir de dentro, um tipo de pensamento simbólico que é completamente diferente de ter um pé fora sustentado por um pedestal médico." (ibidem, p. 174).

Notas e Referências Bibliográficas:


(1) Doutora em Psicologia pela USP e Psicóloga Clínica. HILLMAN, J. Suicídio e Alma. Editora Vozes, 1993.