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BOLETIM CLÍNICO - número 3 - dezembro/1997

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

6. O Estranho no Ninho - Maria Cecília Corrêa de Faria*

Estudo aberto que propõe ser as fantasias parentais narcisicamente atingidas pela geração e presença de um filho especial. O estudo é realizado com metodologia clínica, através da análise de três entrevistas semi-dirigidas: com a mãe de uma criança, mãe de um adolescente e pai de uma adolescente. A compreensão das entrevistas é feita tendo como referencial a escuta psicanalítica. A ferida infligida e irredutível é um dos vértices basilares para uma reorganização do universo psíquico dos que concebem e geram o especial, acarretando a instauração um novo mundo interno/externo: o de pais das pessoas especiais.

As ramificações dessa ferida narcísica impregnam a relação com o filho especial, estendem-se à família e, por conseqüência, à sociedade, constituindo-se fator contributivo à segregação social que penaliza os especiais. Dentre as pessoas especiais, foi escolhido realizar o estudo com pais de pessoas deficientes mentais, representadas pelos podadores da Sindrome de Down, que são também estigmatizados fisicamente: reúnem assim, por sua condição genética, um duplo laço provocador de estranheza, sentir que impregna todas relações daqueles que o conceberam: consigo mesmo e com os outros.

Psicanalista de há muito, sempre dediquei o melhor dos meus esforços e saberes à clínica e à docência, tendo nesta última acompanhado as vicissitudes da cadeira de EXCEPCIONAL, disciplina do currículo mínimo do MEC para as faculdades de Psicologia no Brasil.

Sustentando essas atividades, existe para mim, a condição de mãe de dois filhos, que, na sua especificidade essencial, participam de minha vida; um deles foi o detonador das minhas urgências de entender o mundo das pessoas portadoras de necessidades educacionais especiais.

Em 89, tornei-me associada fundadora de uma escola especial para adolescentes portadores da Síndrome de Down (S.D.) e me deparei, por parte dos pais dos adolescentes, aliados à cumplicidade dos profissionais envolvidos, com uma espantosa resistência ao pensar e ao ousar caminhos novos.

Ora, em todas essas faces de minhas práticas, pensadas e refletidas, foi justamente aí, no interesse pelas pessoas especiais que encontrei, no lidar dos profissionais, uma certa estranheza para com o objeto de seus estudos e de seu ofício, que visam, em última análise, a inserção na cultura das pessoas especiais.

Esses estudos e essas práticas exigem uma arte, tanto no pensar quanto no fazer para que se processe o desvendamento e apreensão do objeto/alvo.

Ao ser surpreendente e inesperado, o objeto/pessoas necessitado de educação especial se apresenta como espantoso, aterrorizante e logo distante/distanciado, ficando os profissionais como que aprisionados nessas questões e, em conseqüência, impossibilitados de nele pensar criativamente, optando quase sempre por um sistema normativo na sua abordagem.

Dentre as pessoas especiais, muito especialmente, as pessoas portadoras de deficiências mentais são vistas coma o "buraco negro", engolfante e paralisante de um pensar profissional não normativo: e é notável como por um fenômeno de contra transferência dos profissionais envolvidos, freqüentemente seus pais e suas mães são também vistos como "crianças sempre", acontecendo, assim, um duplo erro.

Refletindo acerca disso e apoiando-me no conhecimento de que o objeto de projeção deve ter qualidades para tal, bem como auxiliada pelos dados obtidos numa pesquisa realizada com os pais de alunos de uma escola especial para portadores da S.D., foi que apreendi que o apartheid social, efetivamente imposto aos deficientes mentais, teria como uma de suas origens os próprios pais das pessoas especiais deficientes mentais.

Esse ângulo merece estudos e cuidados específicos, pois constitui a possibilidade concreta de se poder auxiliar as condições de desenvolvimento emocional da pessoa especial deficiente mental, que é condição "sine qua non" para o desenvolvimento da capacidade de pensar e, portanto, de sua autonomia e independência, desde suas relações iniciais.

A partir desse foco, e com esse objetivo último, iniciei meus estudos no caráter narcísico do homem, em seu temor frente à morte, e em sua desilusão frente à geração de um filho com o qual não se identifica por não ser a sua imagem.

Foram essas circunstâncias e propósitos que levaram-me, de modo quase que incoercível, a escrever o "Estranho no Ninho" - um estudo aberto da ferida narcísica dos pais de pessoas especiais deficientes mentais, no recorte mais freqüente, estatisticamente, das deficiências mentais - a S.D.

As pesquisas nesse campo voltam-se, quase sempre, para a constatação e descrição das manifestações de preconceito social que, se de um lado, concretamente isola os deficientes mentais de uma real inserção nos modos culturais de viver, de outro lado, decorre originariamente da extrema dificuldade dos pais dos deficientes mentais de lidarem com a ferida narcísica de que são portadores.

Essa ferida, que tem um caráter irredutível, está ancorada na castração das fantasias de imortalidade que sofreram ao gerarem um estranho que ousa ser familiar - o qual, basicamente, rejeitam e recusam - bem como da dor cristalizada que acarreta um estado de solidão perene. Esse estado de solidão embute necessariamente um distanciamento e isolamento dos pais de si próprios, tornando-os estranhos/estrangeiros a si mesmos.

Nas relações com o filho portador da S.D., os pais, distantes de si mesmos, seguem um dos mais primitivos códigos das relações humanas: o de Talião - e portanto impõem à seu filho - denunciador de seu fracasso na realização de sua sexualidade parental - pena semelhante: impedem a sua realização sexual sob os mais diferentes disfarces protetores. Submetem um ser, predominantemente de concretudes, ao difícil exercício de uma abstinência que obstaculisa a experiência da vida adulta compartilhada com um parceiro a sua semelhança, ou que os mantém eternos púberes: sempre nos "amassos".

Chama a atenção uma outra das defesas básicas utilizadas no maneja da ferida narcísica de que são portadores: a condição que requerem de serem os únicos que podem lidar com eficiência do estranho que geraram - têm portanto que defender e isolar os seus outros filhos (se os há), da herança que consideram ser impossível suportar/lidar: o irmão/negado HOMEM. Avaliam que a castração que lhes será imposta pelo estranho/irmão seja igualmente dolorosa e impeditiva de prazer.

As relações destes pais - reitero, portadores de ferida narcísica irredutível na constituição de sua prole - para com os profissionais de reabilitação e/ou escolarização é ambígua, permeada de uma solicitação impossível: que os ajudem na escolarização e na reabilitação do seu estranho filho e também que, fracassem igualmente nas suas tarefas (como eles fracassaram), pois a redenção no nível almejado é impossível: este filho é uma "criança sempre" dado que está permanentemente sombreado pelo filho não nascido e que era "perfeito" na fantasia.

Essa mensagem dupla e esquizofrenizante torna urgente que as equipes de atendimento sejam sempre cuidadas por um profissional externo à instituição cuidadora o qual deve arcar com a tarefa de ajudar no manejo da ferida narcísica da equipe de atendimento que corre risco igual ao dos genitores.

O que é pedido/imposto aos pais, educadores e demais profissionais do campo de atendimento aos deficientes mentais? A capacidade do artista, que considera o insólito um instigante patamar de desvendamento do objeto/universo. Essa liberdade de pensamento só poderá ser alcançada com escuta específica e atenta às efetivas manobras de defesa frente à ferida narcísica que, enquanto pais, portam, e/ou manejam - quer a saibam ou não - enquanto profissionais.

O que tenha constatado é que existe da parte dos psicólogos clínicos uma considerável resistência tanto aos atendimentos dos portadores de deficiência mental no campo das psicoterapias, quanto de seus pais, bem como uma participação (quando há), pode-se dizer tímida nas equipes multi-profissionais.

Constato sim: uma hipertrofia de atendimentos "funcionais" e de seus respectivos especialistas; tudo se passa como se não existisse todo um campo psíquico a ser cuidado e que é, a priori, depreciado desde sua (de)formação básica nas universidades.

Notas e Referências Bibliográficas:
* Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica e Assistente-Mestre da PUC-SP.