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3. Virtude e Tragédia - Alessandro de Oliveira dos Santos(1)
I. Ilusão e Sofrimento. Sobre isso, sábio seria silenciar, ocultar, dissimular, mas às vezes necessidades fazem buscar o que nem se deveria procurar, arriscando-se pelo que se precisa a mais.
Destarte, tomamos nas mãos esta faina, justiça pela dureza, isolamento, falta de amigos, que uma res severa provoca. Prova, sobretudo para si mesmo, de que o esforço, as queimaduras, não se fizeram em vão...
II. A tarefa deste opúsculo - Apresentar idéias de Anaximandro de Mileto (610-547a.c.), Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Friedrich Nietzsche (1844-1900). Homens que marcaram pela propensão intelectual para o duro, o horrendo, o problemático da existência, que filosofaram para afligir e contrariar. Possuidores de coragem para aprender o que é temer. Homens cuja virtude era a própria desgraça, para ouvir suas palavras é preciso serenidade e silêncio.
III. Reza uma antiga lenda grega que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio Sileno preceptor e servidor do deus Dioniso. Quando por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre todas as coisas era a melhor e o mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, Sileno calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras:
"Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer." (Nietzsche, 1872).
IV. Ferida eterna da existência. Enxergar mais e com mais profundidade sem saber o que te leva segue e é cego...
A confiança na vida se foi e ela mesma se tornou um problema: não é possível ser nada e desde que se é o melhor seria não ser.
A natureza é um fato sem garantia e o ser humano um episódio efêmero nesta aparição fugaz que é a vida.
Sileno nos acorda em meio a um sonho, mas somente para a consciência de que estamos sonhando e de que devemos permanecer sonhando.
Pode-se ouvir suas palavras sem que elas ecoem dentro si e no fim concluir que se trata apenas de uma fábula que o ouvido havia sonhado, ou, através delas, perscrutar ilusões...
Cada um sabe quanto de realidade suporta e quanto de fantasia precisa.
V. A virulência do real - Sofrimento, acaso, finitude, precisamos expressá-lo sob formas que não ameaçam a existência. Sem véus, sem mitos, não vivemos.
Os mitos resolvem dilemas como a contradição vida/morte e dilemas de ordem grupal e social, por isso o significado de viver e ser humano está ligado às formas míticas, às expressões da unidade ser/mundo.
Entretanto, permanecer todo tempo no registro da ilusão ou viver sem ilusão?
E a morte?
Bem viva - Daqui a um segundo ou um dia.
VI. A vida quer um sentido e o sofrimento que a horrenda insegurança de todas as circunstâncias provoca, apaga o sol, obscurece o céu e considera a vida culpada e merecedora de castigo.
"De onde as coisas tem seu nascimento, ali devem ir ao fundo, segundo a necessidade: pois tem de pagar penitência e de ser julgadas por suas injustiças conforme a ordem do tempo" (Anaximandro).
Para Anaximandro o devir, o movimento incessante e sem finalidade da natureza, é um crime digno de castigo.
Tudo o que veio a ser é culpado, a prova disto: tudo perece, quer pensemos na vida humana, na água, no quente e no frio onde quer que se constate propriedades definidas pode profetizar-se o desaparecimento destas propriedades.
"Anaximandro viu na pluralidade das coisas nascidas, uma soma de injustiças a serem expiadas. A existência é um fenômeno moral que se penitencia pelo perecer, pensando assim encontrou senão o primeiro, um dos mais profundos problemas éticos: como pode perecer algo que tem o direito de ser?" (Nietzsche, 1873).
Neste século de bomba atômica, AIDS, extinção de espécies, buraco na camada de ozônio, fenômenos do stress ecológico que vivemos, pode-se pensar a partir do conceito de justiça colocado por Anaximandro, que o ser humano não satisfaz mais sua culpa expiando-a através do perecimento mas, exterminando o próprio perecer.
VII. Como Anaximandro, também Schopenhauer viu a existência como um fenômeno moral. O fato de haver sofrimento na vida significa que ela não é justa, que é culpada na medida em que sofre.
"O verdadeiro critério para o julgamento de cada homem é ser ele propriamente um ser que absolutamente não deveria existir, mas se penitencia de sua existência pelo sofrimento multiforme e pela morte: o que se pode esperar de um tal ser? Não somos todos pecadores condenados à morte? Penitenciamo-nos de nosso nascimento, em primeiro lugar, pelo viver e, em segundo lugar, pelo morrer" (Schopenhauer).
A contradição original vida e sofrimento acusa a vida, ela precisa ser justificada, resgatada do sofrimento, da contradição.
Para o filósofo o único meio possível de se extinguir o sofrimento é a negação do querer viver, o que não significa o suicídio que é impotente para se atingir a paz e a redenção pessimista. Schopenhauer entende a negação do querer viver como um ato de supressão mística da vontade: é impossível extinguir a vontade mas é perfeitamente possível uma vontade de nada, a negação da vontade de viver compreendida budisticamente.
"Uma vida feliz é impossível, o máximo que o homem pode atingir é um curso de vida heróico." (Schopenhauer).
VIII. A vida foi acusada, julgada por causa do sofrimento e da finitude, diante deles o ser humano representou a realidade criando uma moral que acabou negando este mundo e esta vida.
O sofrimento não acusa a vida, ele é mais um elemento da sua dinâmica, um excitante, um índice para que a vida se supere. Dores de fortalecimento...
Significa coragem para perceber-se transitório e parcial, para aceitar a realidade como ela é assumindo tudo que ela tem de terrível. Significa coragem para afirmar a vida em todos os seus aspectos. Nada do que é deve ser excluído, nada é dispensável. A realidade não é uma objeção a vida, não suportá-la como um fardo, amá-la, não transcender o mundo, estetizá-lo.
IX. Nietzsche entende o sofrimento como parte integrante e fundamental da criação, como nos gregos que vivenciaram a sabedoria de Sileno e em resposta criaram a figura dos deuses e heróis.
"O grego conheceu e sentiu os temores e horrores do existir e para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplendente criação onírica dos olímpicos e mediante poderosas alucinações e jubilosas ilusões a vida se fez vitoriosa sobre uma terrível profundeza de consideração do mundo." (Nietzsche, 1872).
A jovialidade grega é uma tentativa de velamento do abismo que a sabedoria de Sileno anuncia, a projeção olímpica evita que se olhe o abismo mas ela só é possível a partir dele.
Diante da sabedoria de Sileno surge a arte como ilusão que ajuda a viver, antídoto à vontade de negar a vida, só ela tem o poder de transformar os pensamentos sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as quais é possível viver.
Ela inventa novas maneiras da vida se expressar, para além das formas e valores de época, do corpo. Não submete a vida aos valores e as formas, mas os valores e as formas a vida fluída, ao devir. Ultrapassa as formas de passagem da vida. A vida cria a partir de sua própria vibração uma forma nova, fluída e passageira, expressando de passagem algo que ela pode e não algo que ela deve.
Destarte, que é o talento artístico?
É o talento para o sofrimento, senão há sofrimento não há necessidade da projeção de beleza.
Embelezar, esconder, reinterpretar. Açoitemo-nos pela arte!
X. Nietzsche vê a existência e a própria natureza como fenômenos estéticos. A natureza é a potência formadora e nesse sentido artística, criando e destruindo. Esse movimento revela o gozo estético do universo porque possibilita a pluralidade infinita de formas da vida se expressar, eternidade inesgotável de expressão de potência.
XI. "A vida deve infundir confiança. Para resolver este problema o ser humano tem de ser mentiroso, já por natureza precisa mais do que qualquer coisa, ser artista." (Nietzsche, 1872).
A moral, a religião e a ciência encaradas sobre este ponto de vista são apenas diferentes formas da mentira, rebentos da vontade de arte humana, com seu auxílio o ser humano concilia contradições, toma gosto e acredita na vida.
"Quem disse que a vida é virtuosa, somos nós que projetamos nossas virtudes sobre ela." (Nietzsche).
XII. Sofrimentos e sofredores - Há os que sofrem de superabundância da vida e fazem do sofrimento uma afirmação, do sonho e da embriaguez uma atividade. Há os que sofrem de um empobrecimento da vida e fazem do sofrimento um meio de acusá-la, contradize-la e culpá-la.
De um lado a vida que justifica o sofrimento, que afirma o sofrimento, de outro o sofrimento que acusa a vida, que testemunha contra ela. Enquanto um interioriza a dor e faz dela o testemunho de sua culpa o outro à afirma no elemento de sua exterioridade.
Toda existência é interpretativa e visa impor sua perspectiva, a partir de uma ótica de afetos vemos um real, mudando a constelação de afetos muda-se a forma de ver o real.
As interpretações, as avaliações temos as que merecemos.
XIII. Queda de um mundo ilusório de segurança e felicidade para o abismo da desgraça iniludível, todo o poder sobre a terra e o ocaso fatal, isto é a Tragédia. Ela possui como elemento constitutivo o sentimento de unidade entre a necessidade do criar e destruir, vida e morte, mostrando como os contrários se exigem e se requerem mutuamente.
Na Tragédia o herói sempre é sábio, poderoso, até viver seu ocaso sendo obrigado a encarar o lado sombrio da vida, sucumbindo perante a natureza. A Tragédia oferece uma elaboração estética do sofrimento, a vida leva embora o melhor de si.
Tragédia é a vida sendo vista sobre a ótica da crueldade - Quem suporta a experiência do devir, que ele não tem finalidade? Quem mesmo diante de abismos consegue dançar e sorrir ainda?
A vida é funeral e festa.
Notas e Referências Bibliográficas:
(1) Psicólogo graduado pela PUC/SP e mestrando do Instituto de Psicologia da USP.
Nietzsche, F. (1872) O Nascimento da Tragédia. Tradução de Jacó Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
---------------- (1873) A filosofia na idade trágica dos gregos. Tradução de Maria I. M. Andrade. Rio de Janeiro, Elfos, 1995.
Pré-Socráticos. Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1989.
Schopenhauer, A. Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1988.