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7. O Grito Entalado na Psicossomática - Mônica Gagliotti Fortunato Friaça(1)
"GENERALEMENT, LES GENS QUI SAVENT
PEU PARLENT BEACOUP, E LES GENS
QUI SAVENT BEACOUP PARLENT PEU"
ROSSEAU (1712,1778)
"THEY NEVER TASTE WHO ALWAYS DRINK,
THEY ALWAYS TALK WHO NEVER THINK"
PRIOR (1664,1721)
1) Introdução
Este trabalho foi motivado por uma experiência clínica com um paciente com dificuldade de comunicação verbal, timidez e baixa auto-estima; as suas mãos apresentavam escamações que se afiguravam como expressão de sua extrema fragilidade. As dificuldades de verbalização do paciente, tanto no nível do discurso como no nível do uso físico da sua voz (o paciente falava em tom extremamente baixo), levou-me a me perguntar sobre a importância do grito-palavra como marca de chegada ao mundo, como forma de conquistar um lugar no mundo e assegurar a posse do seu lugar.
2) O Rock e o Grito
M. 23 ANOS, SOLTEIRO, MAIS VELHO DE 5 IRMÃOS. GERALMENTE CHEGA 25 MINUTOS ATRASADO NA SESSÃO E SE CULPA DE NÃO TER UM BOM PAPO E DE REPETIR OS ASSUNTOS. EM CASA, USA A MÚSICA COMO INSTRUMENTO DE CONQUISTA DE TERRITÓRIO. OUVE HEAVY METAL A TODO VOLUME, QUEBRANDO AS REGRAS DE SEU IRMÃO EVANGÉLICO QUE É PROIBIDO DE ESCUTAR TAL TIPO DE MÚSICA. DESTE MODO, ELE SE IMPÕE. M. PROCURA ENCONTRAR NA MÚSICA O GRITO DE CHEGADA NO MUNDO.
Podemos formular a hipótese de que muitos que no nascimento não conseguiram dar este grito, seja por dificuldades na gravidez, no parto, ou na primeira infância, sentem-se sem um lugar próprio no mundo. Esse caso, portanto, levou-me a investigar sobre o papel do grito e da palavra como meios de conquista de manutenção de territórios no mundo.
O que diz o antropólogo e paleontólogo Leroi-Gourhan sobre os fundamentos da vida estética do homo sapiens tem relevância para as formas elaboradas de expressão individual. Um dos modos mais importantes do indivíduo se inscrever no mundo é a partir dos ritmos presentes na sua constituição psico-fisiológica (ou "sensibilidade visceral" segundo Leroi-Gourhan).
"A alternância dos tempos de sono e vigília de digestão e de apetite, enfim, todas as cadencias fisiológicas constituem uma trama na qual se inscreve toda a atividade. Esses ritmos estão geralmente ligados a uma trama mais ampla, representada pela alternância dos dias e das noites pelas mutações metereológicas e sazonais. Daí resulta um verdadeiro condicionamento que opera enquanto base estável no nível das operações quotidianas mas que apenas intervém no comportamento estético na medida em que este tem por instrumento o corpo humano.
Os estados de conforto visceral só atuam no estabelecimento das condições normais da atividade; os estados de sofrimento ou de insuficiência fisiológica podem acarretar notáveis modificações no campo estético individual, mas unicamente através das suas conseqüências sobre a atividade normal em sentido próprio." (6)
A ritmicidade é comum tanto ao movimento do bater de uma enxada no chão como ao ritmo musical, porém, a ritmicidade na música é o resultado de uma elaboração avançada e exprime conteúdos afetivos e intelectuais. Do mesmo modo, o indivíduo que se cala pode ser incapaz de exprimir os seus estados emotivos por meio de palavras; ele, contudo, se entrega ao ritmo de uma música Heavy Metal. Ele permanece restrito ao âmbito da "sensibilidade visceral" sem o uso pleno dessa ritmicidade básica como ponto de partida para expressões das complexidades da sua vida psíquica.
De fato, toda atividade rítmica básica representa o fundamento das artes e das técnicas. Por outro lado, por meio do Rock, M. trava a sua luta, manisfestando a sua vontade de vencer. Quando coloca o rock a todo volume, M. ocupa um espaço, um ambiente, e sente-se em posse em um poder de expressão que normalmente sente-se incapaz de exercer. Luta contra as restrições de sua infância, contra a filosofia evangélica de seu irmão, na qual reconhece todas as inibições que o amarram. O grito do rock é uma expressão violenta, quase destrutiva, que possibilita o alívio mesmo que temporário das amarras que M. sente envolvê-lo.
O foco da atenção é desviado das percepções interiores, muita vezes dolorosas, para a solicitação física da batida do rock. De fato, "o rock, bem compreendido, é a guerra musical travada contra uma sociedade, que nada suspeita, por guitarristas-metralhadores que, freqüentemente, tem consciência do que estão fazendo. Não há dúvida de que o rock se relaciona intimamente com o tipo de estado de consciência encontrado em grandes quantidades de jovens. O rock exerceu, por certo , sua influência sobre a filosofia e estilo de vida de milhões . Trata-se de um fenômeno global; um compasso agressivo, que bate e bate, repetidamente em todo o mundo. O seu efeito sobre a alma consiste em tornar impossível o verdadeiro silêncio interior". (2)
No final, porém, o rock e o heavy metal representam para M. um primeiro movimento de apreensão do mundo e do reconhecimento da sua identidade (por contraste com o seu irmão). Tudo isso encontra eco no que o meu paciente me disse em uma sessão:
M.: Sabe, eu escuto rock e heavy metal, e em casa conquistei meu espaço, pois meu irmão que é evangélico, é proibido de ouvir. No começo deixei de ouvir, mas agora sei que cada um tem as suas preferências e direitos...
3) Repetir, Sonhar, Falar
A um minuto de terminar a sessão, M. diz (em tom quase inaudível)
M.: Posso falar?
T.: Claro...
M.: Estou apaixonado pela moça do andar de cima, e fico imaginando o que ela pensa, o que ela sonha...um dia vou falar com ela....será... eu sei que ela vai me achar desinteressante... eu não tenho assunto..sou REPETITIVO...
Os ritmos são criadores do espaço e tempo; espaço e tempo só existem como vividos na medida em que se tenham materializado num invólucro rítmico. Os ritmos também são criadores de formas. Aquilo que foi dito antes da ritmicidade muscular aplica-se, a priori, às operações técnicas que acarretam a repetição de gestos a intervalos regulares. Grande número desses gestos reporta-se ao ato de martelar, que encontramos entre os pássaros que partem moluscos ou grãos, quer entre aqueles que procuram o seu alimento na casca das árvores, mas que é excepcional entre os mamíferos, mesmo até entre os grandes macacos.
Desde os seus primeiros estágios, uma das características operatórias da humanidade foi a aplicação de percussões rítmicas, longamente repetidas. As técnicas de fabricação de instrumentos situam-se desde o início no interior de um ambiente rítmico, simultaneamente muscular, auditivo e visual, nascido da repetição de gestos de choque. Desse modo, nasceram os primeiros machados de pedra lascada obtidos pela repetição até a extenuação do gesto de golpear obliquamente uma pedra e liberando uma forma aguçada nunca antes encontrada na natureza. (3)
O que foi dito acima tem relevância para o caso de M., pois a repetição de um gesto acaba dando origem ao novo. O meu paciente se queixa de ser repetitivo e desinteressante. Talvez nessa repetição se encontre a chave da sua transformação, da passagem da "pedra bruta" para a "pedra talhada".
M. se preocupa tanto com sua repetitividade que não se dá conta das nuances psíquicas sutis e extremamente ricas que ocorrem na esteira do fluxo dos gestos palavras e pensamentos repetidos. M., antes de mais nada, sonha, tem devaneios. O seu mundo imaginativo possui uma beleza e uma riqueza ainda não exploradas por ele próprio. E ele quer falar, quer ter algo interessante para falar. Mas fica uma palavra entalada na sua garganta, uma palavra que ele não sabe qual que é.
Tanto o não falar como o falar em demasia representam dificuldades do indivíduo em se posicionar no mundo. Existe um falar ótimo que freqüentemente é identificado com o pouco falar, mas nesse pouco falar ser objetivo e esclarecedor. O falar por falar não produz resultado algum por não haver insight. É um falar mecânico fruto de ansiedade e da fuga, sem entendimento e reflexão.
É a partir da falta de sucesso no falar, seja ele ótimo ou compulsivo, que surgem uma série de manifestações psicossomáticas. Como diz Joyce McDougall, "...Meu interesse pela causalidade psíquica em sua relação com suas primeiras pulsões libidinais não me levou a interrogar-me imediatamente sobre as produções psicossomáticas. Ao contrário, só tardiamente cheguei a esse ponto. Num primeiro momento, foi na perversão que descobri, aquém dos conflitos edipianos evidentes, suas origens mais antigas.
Precisei de tempo para postular a existência de uma sexualidade ainda mais primitiva, dotada de aspectos sádicos e fusionais, que podia estar na origem das regressões psicossomáticas que é possível considerar como defesas contra vivências mortíferas. Neste universo em que a indistinção entre o si mesmo e o outro se esbate, existe apenas um corpo para os dois.
Correndo risco de engendrar confusão terminológica, vim a falar em "histeria arcáica" para qualificar esses sintomas psicossomáticos. Digamos, para distingui-las, que a histeria neurótica é construída a partir de laços verbais, enquanto aquela que descrevi sob o nome de histeria arcaica busca preservar não o sexo ou a sexualidade do indivíduo, mas o seu corpo inteiro, sua vida e se constrói a partir de laços somatopsíquicos pré-verbais." (5)
Com respeito à queixa de M., chamou-me a atenção a etimologia do termo Alexitimia, que se aplica à desordem de linguagem caracterizada por tratar-se de uma linguagem sem expressão. Literalmente significa "sem expressão do estado de ânimo" (a=sem; lexis=expressão; thymus=estado de ânimo, sentimento, humor, afeto). No caso de M., teríamos o espelho dessa situação: o sentir sem falar.
O falar sem sentir talvez possa ser utilizado para distinguir as doenças psicossomáticas das neuroses. A linguagem é a capacidade de simbolização, isto é, dá significado a um determinado objeto; está ligada à intencionalidade. No início da vida, o ser humano não dispõe da capacidade de simbolização; os afetos podem ser revelados mediante expressão corporal. A linguagem é, geralmente, entendida como uma habilidade para simbolizar o que parece ser vital ao ser humano.
É nesse sentido que podemos entender o experimento de Frederico II que ordenou que as crianças fossem alimentadas por enfermeiras e sem fazer o uso da palavra: todas as crianças faleceram. Esse fato mostra como a comunicação é essencial e de importância vital ao ser humano. A experiência psicanalítica nos ensina que quando os conflitos não conseguem se expressar pelas palavras, usam a linguagem corporal (somatizam).
Há nos portadores de doenças psicossomáticas uma parada no desenvolvimento mental e dificuldade de descarregar a tensão emocional mediante palavras, dos gestos ou de maneira simbólica; usam um órgão para a descarga da tensão fixando-se nele. A ansiedade tem sucesso em sua somatização, constituindo a gama dos chamados "analfabetos emocionais".(1*)
Segundo Winnicott, há uma tendência inata à integração em cada um de nós que só se realiza em função dos cuidados maternos, e que leva a uma integração do corpo com a mente enquanto que a falta de sucesso na realização da integração mente-corpo é assinalada pela doença psicossomática . Ele fala da área transicional como espaço potencial entre o bebê e a mãe e entre o objetivo e o subjetivo, na doença psicossomática essa área transicional não se desenvolveu a contento.
O conceito de área transicional implica a ponte que o bebê constrói do subjetivo ao objetivo, representação simbólica da mãe com o próprio bebê, depois da separação entre eles. Se a mãe está presente continuamente, a criança torna-se narcísica. O bebê necessita da presença contínua da mãe para poder criar o objeto transicional; todavia a ausência constante de mãe também impede que a criança crie o objeto transicional. Este consiste de aspectos do ambiente da mãe, dos quais a criança seleciona para representar aqueles aspectos sentidos pela sensação corporal (cobertor, travesseiro, etc.).
A capacidade de simbolizar provém da criança, mas depende muito do ambiente. Os objetos percursores são aqueles que não são inventados pelo bebê e sim, fornecidos pelo corpo da mãe ou da própria criança (chupeta, dedo, mão, cabelo ou orelha da mãe, enfim tudo que é tocado). Esses objetos percursores podem ser de dois tipos dentro da boca (ruminação, estalar da língua etc.) e do contato com a pele. O curso do desenvolvimento de objeto percursor dentro da boca para o objeto percursor tátil é seguido pelo objeto transicional que é aceito na segunda metade do primeiro ano de vida.
Os objetos percursores são abandonados em virtude do desenvolvimento dos objetos transicionais. Poder-se-ia pensar a doença psicossomática como uma defesa rápida contra uma perda do seio e de segurança. A criança sentindo-se abandonada, sem proteção, somatiza. Outra possibilidade seria que da falta de formação do objeto transicional poderiam surgir as doenças psicossomáticas acompanhadas por conflitos neuróticos da criança (insociabilidade), falta de capacidade criativa, dificuldade de simbolização e até conflitos psicóticos no adulto, principalmente a dificuldade de linguagem, a alexitimia sendo uma delas.
Com respeito à tendências anti-sociais de M., são relevantes as considerações de Winnicott: "Na base da experiência anti-social, está uma experiência inicial boa que foi perdida. Certamente, uma característica essencial é que o bebê tenha atingido a capacidade de perceber que a causa do desastre está em um fracasso ambiental.
O conhecimento correto de que a causa da depressão ou da desintegração é externa, e não interna, é responsável pela distorção da personalidade e pelo ímpeto de buscar uma cura mediante uma nova provisão ambiental. O estado de maturidade do ego que permite uma percepção desse tipo determina o desenvolvimento de uma tendência anti-social em vez de uma doença psicótica. Um grande número de compulsões anti-sociais aparecem e são tratadas com sucesso pelos pais nos estágios iniciais.
"Crianças anti-sociais, contudo, estão constantemente exigindo (inconscientemente, ou por uma motivação inconsciente) essa cura por meio da provisão ambiental mas não capazes de utilizá-la."
"Parece que a época da privação original se insere no período em que, no bebê ou na criancinha, o ego está em processo de conquista da fusão da raiz libidinal e da raiz agressiva (ou motilidade) do id." No momento de esperança, a criança percebe uma nova situação que contém elementos de confiabilidade e experimenta um impulso que pode ser chamado de impulso em busca do objeto. Quando se sente uma situação de perigo iminente, provoca o meio ambiente para torná-lo alerta ao perigo e fazer com que ele se organize para tolerar a amolação. Se a situação se mantém, o meio ambiente deve ser repetidamente testado em termos da sua capacidade de suportar a agressão, de impedir ou reparar a destruição, de tolerar a amolação, de reconhecer o elemento positivo da tendência anti-social, de fornecer e preservar o objeto que deve ser buscado e encontrado. (7)
Quando o ambiente é favorável, a criança com o tempo torna-se capaz de encontrar e amar uma pessoa, em vez de continuar a busca por meio de exigências feitas a objetos substitutos que haviam perdido o seu valor simbólico. No próximo estágio, a criança precisa tornar-se capaz de experimentar o desespero em uma relação em vez apenas da esperança.
Somente ultrapassado esse estágio, a criança está preparada para a vida. Muitas vezes, os pais conseguem que o filho realize esse processo de travessia por todos estes estágios. Porém, mesmo pais capazes de bem criar uma criança normal há alguns que não conseguem se sair bem, no caso de um filho com tendências anti-sociais.
4) O Afeto Ausente
Na última sessão antes de terminar este trabalho, M. chega ao consultório com 40 minutos de atraso.
Ele diz: Estou atrasado de novo, né?
T: E o que você acha disso?
M.: Muito simples: o metrô atrasou, você sabe...
T: Ou será que 50 minutos é muito espaço pra você?
M.: É demais. Quando tenho 20 minutos, já é muito. Eu não sou interessante, eu não sei o que falar, gosto de música...
M. sempre volta a bater na mesma tecla. "Não sou interessante...". Todo o "esconde-esconde" de M. (a voz débil, os atrasos constantes, a afirmação verbal do seu status de inferioridade) denotam o vácuo de afeto que ele experimenta. E essa sensação de carência de afeto está intimamente ligada a auto-julgamento de M. como alguém repetitivo.
A psicossomática pode ser vista como o lugar do afeto ausente, pois de todo abandono que foi experimentado pelo sujeito, apenas uma fração ganha expressão mediante a fala, enquanto que a totalidade dele é expressa mediante o grito entalado ou o que resolvi considerar uma busca de integração psique-soma (um grito parado).
As palavras faltam a M., pelo menos nessa altura do trabalho terapêutico. Porém, por sua postura corporal, acabrunhada, e da voz quase inaudível, percebe-se a sua dor. Foi a ausência da palavra e do grito que me chamou a atenção para a própria palavra e para o próprio grito. Na realidade, o que de fato me chamou a atenção foi o corpo, o gesto, a mímica falando ... Como disse o mímico francês Marcel Marceau (4) :"os sensíveis escutam os gestos, a cabeça (mente) sofrida tenta pela sua timidez falar através do corpo doente" . Pois "...as palavras podem dizer a verdade ou a mentira, mas o corpo só pode dizer a verdade."
Notas:
(1) Psicóloga Clínica
Referências Bibliográficas:
(1) DE PAIVA, L.M. Técnica de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1985.
(2) LEROI-GOURHAM, A. O Gesto e a Palavra II. Memória e Ritmos. São Paulo: Martins Fontes, 1985, p.22.
(3) LEROI-GOURHAM, A. op. Cit.
(4) Marceau, M. Entrevista concedida ao programa de televisão "Roda Viva", transmitido em 15/09/1997 pela TV Cultura, São Paulo.
(5) MCDOUGALL, J. Teatros do corpo. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp.23-24.
(6) TAME, D. O Poder Secreto da Música. São Paulo: Cultrix, 1993, p. 222.
(7) WINNICOTT, D.W. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993, pp.509-510.