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BOLETIM CLÍNICO - número 7 - outubro/1999

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

10. Ensaio sobre o Self - Nestor Efraim

"Algumas pessoas vêm ao festival para competir, algumas vêm para se exibir, algumas vêm para vender suas mercadorias e outras vêm para encontrar pessoas. Mas alguns indivíduos vêm só para assistir. Eles não têm que demonstrar coisa alguma, nem se pôr a prova mais arduamente. E eles são livres."
Pitágoras
Alegoria do Festival

Falar sobre o Self é muito difícil, é um grande desafio. Porque o Self, consciência de mim mesmo, tem uma restrição de predicação. Porque sobre o Self, eu só posso dizer: Sou. Eu sou é o máximo que eu posso dizer do Self. Eu não posso começar a predicar alguma coisa sobre o Self, por que aí não seria o Self, seria alguma coisa que o Self conhece.

Nesse sentido, o Self é um conceito muito parecido com o conceito de ser: a única coisa que eu posso dizer do ser é que o ser é. Porque se eu começo a predicar alguma coisa - eu digo: o ser é incomensurável - então, eu estou restringindo o ser; porque estou fazendo com que ele seja apenas incomensurável.

Quando eu falo: o ser é potente, eu estou também restringindo o ser a apenas essa potencialidade.

De forma diferente, mas também muito parecida, sobre o Self eu apenas posso dizer isso: o ser é. E no caso da própria consciência de mim mesmo, seria então: eu sou.

No entanto, essa consciência de mim mesmo não aparece logo que a criança nasce.

O ser humano adquire a sua potencialidade de chegar a ser uma pessoa completa, quando se sabe diferente do outro.

Durante a fase final da infância, a criança ainda não consegue ter essa noção de si mesma.

No que se refere a mim, eu precisei ter um amigo, que se chamava Alfredo, que, com meus 7-8 anos, começava a conversar com ele, para que nós chegássemos à conclusão dupla de que eu sou Efraim e ele é Alfredo, diferente de mim. E o Alfredo chegasse a conclusão de que ele era Alfredo, diferente de Efraim.

Nesse momento, por meio do que se chama alteridade, pela da relação com o outro, eu cheguei a ter a consciência de mim mesmo e ele, Alfredo, a ter a consciência dele mesmo.

Infelizmente, parece que há seres humanos que não chegam a esse nível de consciência de si mesmos. Eles vivem, mas não tem a consciência de que eles são comandantes dessa vida.

Ou seja, eles sabem que vivem. Mas não sabem de si mesmos.

O Self tem sido representado, em diversas culturas, como o centro de um círculo. É a mandala. E o centro do círculo tem um ponto que não tem dimensão. Ele tem apenas posição, é, portanto, uma virtualidade. Só que uma virtualidade que, na roda, tem uma característica muito importante. Quando uma roda gira, o movimento para o centro vai sendo cada vez mais lento. E quando chega nesse ponto virtual, nos poderíamos dizer que ele é imóvel. O centro da roda não se movimenta. Em torno dele, tudo é movimento.

Em relação à consciência de mim mesmo, essa consciência é sempre a mesma. Ou seja, é como se, de repente, o movimento do tempo não passasse por ela.

Eu sou Efraim, até agora sou Efraim. Nunca tive a consciência de ser outras realidades, senão Efraim.

E isso me permite, quando eu me vejo no espelho, perceber meu corpo físico, sobre o qual passaram-se anos e no qual houve modificações muito grandes, através do tempo, mas o observador, aquele "mim mesmo", o Self que olha para o seu corpo no espelho, através dos olhos físicos do cérebro, esse Self é o mesmo.

Apesar de ter mudado com o tempo, apesar de o corpo físico ser, extraordinariamente, diferente de quando eu nasci, eu me reconheço sempre com a mesma realidade, como eu mesmo.

Essa consciência de si mesmo tem uma característica fundamental: ela vai se expandindo e vai se identificando com tudo que está dentro deste círculo. Ele se identifica com conteúdos de consciência (dimensão psíquica). Ele se identifica com o corpo físico que lhe permite a existência. Se eu fosse apenas a consciência de mim mesmo, talvez nem existência eu teria. Pois sabemos que nossa consciência está ligada sempre à dimensão psíquica, corporal e social. E nós não sabemos se a consciência poderia existir sem estas outras dimensões.

E o corpo físico é aquele que permite que esse "eu sou" faça atos de vontade, se manifeste nesta dimensão. Que eu chamaria dimensão da vigília, dimensão do espaço-tempo.

Se eu me identifico com o meu corpo físico, eu estou me ligando de uma forma muito visceral, muito integrada a esse corpo físico, que está no espaço-tempo. E se essa identificação é total, eu viveria o meu corpo físico como o fundamental da minha existência, procurando satisfazer suas necessidades primárias, secundárias e fazendo desse corpo físico um centro do Universo, para o qual deveria convergir tudo aquilo que rodeia esse corpo físico. Então, a família teria que girar em torno de mim. Eu seria uma pessoa egocêntrica e, seguramente, muito egoísta.

Mas a consciência pode abranger mais do que o corpo físico. Pode abranger o âmbito familiar. Abrangendo o âmbito familiar, a expansão da consciência avançou do corpo físico para uma unidade social, a menor de todas, que é a família. E identificando-se com a família, nós temos pessoas que procuram o bem estar da família, que cuidam de sua família, que cuidam de seus pais, que cuidam dos irmãos, que cuidam da esposa, que cuidam dos filhos de uma forma abnegada e, muitas vezes, extremamente altruísta.

Mas a consciência pode se identificar com grupos sociais maiores.

Aquele que se identifica com o grupo social da comunidade vai assumir os problemas da comunidade e, muitas vezes, se coloca a serviço da comunidade.

Quem toma para si a responsabilidade de uma nação, vai querer ser um político ou um agente policial dentro dessa nação.

E hoje em dia, temos o despertar da consciência planetária por meio do trabalho desse grupo de disciplinas, que estamos denominando, Ecologia.

A abordagem multidisciplinar conduz a uma holística, a uma visão de rede, de sistema, que são as características da Ecologia.

De maneira que a nossa consciência pode ir abrangendo cada vez mais pessoas, coisas, objetos.

Um exemplo de objeto que se incorpora a nossa consciência é o veículo a motor, o automóvel; quando eu dirijo um carro, isso significa que eu sou o carro também. O meu corpo se expande, por meio da ampliação do esquema corporal, e eu abranjo toda a parte dianteira do veículo, que é muito mais larga do que o meu corpo físico. Quando eu vou entrar numa garagem, quem entra na garagem sou eu, que me integrei ao espaço físico do automóvel e na abertura da garagem.

De maneira que nós poderemos representar esse Self, esse eu-sou, como uma virtualidade energética, ou seja, uma energia que está num plano muito sutil.

Se nós pensamos, por um instante, na sutileza da pulsação neuroléptica do SNC, que são da ordem de alguns milionésimos de volts, nós podemos então imaginar como será sutil a energia de um centro de mesmidade, que, de repente, se incorpora e se integra a um corpo físico que pode fazer trabalhos da ordem de um cavalo de trabalho, o que se chama de um kilowatt.

Se nós entendemos isso, nós podemos ver como, de repente, essa potencialidade virtual do eu-mesmo por um ato de vontade, por atos de vontade sucessivos chegam a produzir, por meio do corpo físico, um trabalho mecânico, que já não é da ordem de alguns milionésimos de volts, que seria a corrente do SNC, e sim da ordem (e cavalo de vapor ou kilowatt, como se queira chamar), que é de uma grandeza muitíssimo maior.

Se fôssemos representar essa energia sutil do eu-sou, incorporando-se sucessivamente a dimensões físicas no espaço-tempo cada vez maiores, nós poderíamos imaginar uma espiral que se origina nesse ponto virtual, esse ponto que tem posição e não tem uma dimensão, nessa energia sutil, que me dá a noção de mim mesmo, mas que ela sozinha parece que nada pode fazer.

Inclusive, sozinha talvez não existiria.

Ela precisa ter um corpo físico; ela precisa ter um corpo emocional; de um outro veículo, como é o veículo mental; o Self precisa de instrumentos que acumulem vontade e memória, porque sem eles ela fica uma pura virtualidade, não consegue se manifestar.

Tem que haver, pelo menos, a memória para dar continuidade ao "eu-sou". E a vontade de realizar alguma coisa para, por meio do corpo físico, eu poder manifestar no espaço-tempo aquilo que eu, como eu mesmo quis realizar.

Então, a analogia seria: a nossa metáfora seria uma linha em espiral, que vai abrangendo as quatro dimensões do espaço-tempo e, na medida em que vai se afastando da origem "eu-sou", vai abrangendo cada vez maiores espaços, nesse espaço-tempo.

Inicialmente, o corpo físico, depois a família, o grupo social, a humanidade, a consciência planetária, e vamos parar por aqui. Porque eu, por enquanto, não acompanho, não tenho condições pessoais de imaginar como seria essa espiral abrangendo o cosmo.

O eu sou o Self. Como virtualidade energética tem uma qualidade que parece com a história do rei Midas: o ambicioso rei Midas queria que tudo o que ele tocasse virasse ouro para, assim, satisfazer o seu desejo de riqueza. E, magicamente, ele conseguiu o que queria: tudo que ele tocava, virava ouro.

Analogamente, podemos dizer que o Self pode integrar-se em várias dimensões. E em cada dimensão o Self dá o toque de realidade. Na dimensão em que está o Self, aí está a realidade.

Temos esta dimensão que eu chamo vigília, espaço-tempo para os físicos, que compartilho com seres vivos e objetos, com produtos da tecnologia civilizada e que apresenta uma continuidade no tempo.

Quando eu durmo em sono profundo, a consciência de mim mesmo desaparece. E junto com ela toda a realidade da vigília: pessoas, animais, objetos. Tudo some. Até o universo some junto com pessoas, animais, objetos.

Esse estado de não-Self, de interrupção da consciência de mim mesmo, essa morte de consciência de mim mesmo foi, até agora, seguida de um novo amanhecer de mim mesmo.

E essa seqüência, como por milagre, tem como eixo condutor a minha própria identidade.

De novo, a memória como fio condutor da identidade.

Até aqui, então, temos duas dimensões que são compartilhadas por todos os seres humanos. Que fazem parte da nossa rotina de vida.

Há, no entanto, duas outras dimensões que não são tão facilmente percebidas por algumas pessoas. Essas dimensões são a dimensão do relaxamento (estado alfa) e a dimensão do sonho.

Comecemos pela dimensão do sonho: durmo e, como por magia, estou em outro mundo; em outra realidade. Vejo o corpo de Efraim em ação, ou seja, nada, corre, se emociona, se relaciona com pessoas, ama, briga, de repente atravessa uma parede, nada em baixo d'água sem oxigênio, sem precisar respirar, voa sem aparelho impulsor, sem asas de pássaros ou de planador...

Bizarra dimensão onírica!

Mas quando eu estou vivendo o meu sonho, nenhuma dessas situações parece bizarra; enquanto eu estou vivendo o sonho, ele é a realidade. Realidade subjetiva que, por enquanto, não compartilho com ninguém.

Já existe um aparelho que permite afirmar que eu estou sonhando, por meio da freqüência do meu ritmo encefálico.

Mas nem esse aparelho, nem os observadores que assistem ao meu sono, podem dizer ou ver o que eu estou sonhando. É uma pura subjetividade que, enquanto eu sonho, é a minha realidade. Realidade essa povoada de paisagens, de pessoas, de pássaros, de peixes, de medos, que chamamos pesadelos, de cores e de sombras, que formam minha vida onírica, de presságios, intuições, premonições...

Eu faço sempre uma pergunta para compartilhar a minha vivência do Self; eu digo o seguinte: primeiro eu pergunto se a pessoa sonha depois, se ela afirma que sim, eu pergunto se ela se vê a si mesma no sonho, como eu me vejo. Em geral, as pessoas ficam surpresas. Algumas respondem que sim e outras que não. Àquelas que respondem que sim, mais uma pergunta:

- "Quem vê a você mesma no seu sonho?"

Algumas pessoas respondem, de imediato, eu mesma.

A essas, mais uma pergunta:

- "Quem é você mesma?"

Aí então algumas pessoas dão o próprio nome e outras poucas, com mais propriedade, dizem apenas:

- "Não sei".

E essa resposta chega fundo a mim, porque eu também não sei.

Para conseguir responder quem é o observador que assiste ao próprio sonho, seria necessário que tivéssemos, na realidade do sonho, um espelho onírico, no qual pudéssemos refletir a imagem dessa virtualidade energética, a qual chamamos Self.

Comigo acontece uma particularidade ainda mais estranha, porque devido a uma doença chamada Retinose Pigmentar, perdi a visão focal e, particularmente a visão de cores.

E acontece que nos meus sonhos, eu consigo ler, distingo com facilidade objetos, e os peixinhos coloridos com que sonho, algumas vezes, continuam com cores tão vivas como antes da perda da visão.

Minha indagação é:
"Como é que eu consigo ver cores no sonho? Que olho interior é esse que não foi afetado pela doença da Retina?"

É minha esperança de que um dia eu possa ver, na dimensão da vigília, por meio dessa virtualidade energética, e assim poder perceber tudo tão bem como antes.

O sonho apareceu numa linguagem cifrada, de símbolos e metáforas. Se há alguma linguagem que se utiliza de imagens, como um aspecto fundamental, essa é a linguagem onírica.

E não é por acaso que o cinema começou sem palavras. Só com algumas seqüências musicais.

Nessa época, o cinema era a prolongação, em vigília, dos nossos sonhos e pesadelos.

E, apesar de todas as sofisticações tecnológicas, a linguagem cinematográfica, e mais recentemente, a linguagem do vídeo utilizam predominantemente os recursos de imagens.

As imagens oníricas, muitas vezes, são símbolos. Símbolos que nós afirmamos serem mensagens cifradas de uma outra realidade virtual, denominada Inconsciente.

O inconsciente é insciente, ou seja, é uma dimensão à qual eu não tenho acesso direto. Para ter acesso à essa dimensão inconsciente, devo esperar que brotem em mim mensagens cifradas nos sonhos, ou os chamados atos-falhos, ou os comportamentos compulsivos que sugerem motivos inconscientes.

Se determinadas imagens oníricas são símbolos, elas precisam ser decodificadas para que eu possa compreendê-las. Porque é a dimensão da vigília que tem a continuidade de situação. É a dimensão da vigília que apresenta a continuidade do enredo de minha vida. E a dimensão onírica é fragmentária. Meus sonhos não apresentam uma continuidade de enredo não têm uma continuidade no tempo são fragmentos, não são novelas. No máximo, "mini-séries".

Podemos imaginar, dando impulso à imaginação, que se um dia vivêssemos a continuidade temporal na. dimensão onírica, ela passaria a ser uma Realidade em que os símbolos não precisariam ser decodificados, porque eles fariam sentido por eles mesmos. E então seria a vigília que não teria continuidade.

Porque ela perdeu essa dimensão de tempo cronos, que passou a integrar a dimensão do sonho.

Se, por um crescimento de nossa consciência, pudéssemos manter essa continuidade temporal de consciência na dimensão do sonho e também da vigília, teríamos, como seres conscientes, uma abrangência muito maior do quê temos agora.

Então uma pergunta:
"Não será essa continuidade temporal da dimensão onírica, que passa a ser a dimensão fundamental da vida de uma pessoa, que a leva a essa perturbação a que chamamos Psicose?"

Parece muito claro que uma pessoa alucinada, delirante, está vivendo um sonho ou pesadelo na dimensão da vigília.

Talvez isso chegue a ser um achado importante para entender o que acontece com pessoas alucinadas.

Elas estão na contramão do comum das pessoas, que têm a dimensão da vigília em continuidade temporal como a principal, enquanto que eles têm a dimensão do sonho como a principal.

Isso leva a uma "alienação". Estão alheios ao fluxo vivencial dos que nós chamamos "normais", pois para eles a dimensão onírica tem um caráter "principal" e, para nós, "secundário".

A pessoa psicótica está vivendo uma pura subjetividade oniróide na dimensão da vigília. Daí a tremenda dificuldade de compreender seus comportamentos.

Nota:
[1]Psicólogo Especialista e Doutor em Psicologia Clínica da PUC-SP