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BOLETIM CLÍNICO - número 7 - outubro/1999

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

11. Cinema: Assista o "O oitavo dia" - Maria Cecília Corrêa de Faria

Está nas locadoras, e portanto ao seu alcance, um dos mais originais filmes lançados em 97: "O OITAVO DIA". Como seu próprio nome indica, refere-se ao fato de que o Senhor, após ter se comprazido com a criação do universo, concebeu o diferente e colocou Sua Criação perante um paradoxo.

Os atores principais do "O OITAVO DIA" arrebataram a Palma de Ouro de Interpretação em Cannes (pela primeira vez atribuída a dois atores ao mesmo tempo), e seu argumento trata da negação da humanidade frente àquele que não é a nossa imagem. No filme, esse susto no espelho é representado por um portador da Síndrome de Down, um mongolienne, ou, se você quiser, um mongolóide.

Assista ao filme. Você vai rir e chorar, vai se chocar e se envergonhar e vai se interrogar sobre as razões do véu de silêncio que envolveu seu lançamento: quase nenhuma crítica, retirada rápida dos cinemas, nenhum comentário sobre o tema fundamental abordado - o narcisismo humano; possivelmente elas são, parcialmente, as suas próprias razões desse susto no espelho.

O filme, que percorre a trilha aberta por Forrest Gump e Rain Man, é uma obra de arte no uso das linguagens simbólicas. Seu roteiro, que em nenhum momento resvala para o patético, tem um modo todo francês de ser - fotografia limpa, atores competentes, argumento inteligente, direção delicada, significativa trilha sonora, ousadia na escolha dos recursos fílmicos.

Aborda, pela primeira vez no cinema, o mundo construído a partir do ponto de vista de alguém que é visto como limitado e rude pela cultura ocidental: o portador de deficiência mental. O encontro desse mundo com o mundo empresarial, representado por um alto executivo da área de recursos humanos, setor de vendas, coloca em choque todo o sistema de vida deste (e, portanto, de nossa escala de valores ocidental) e serve de ponto de partida para uma exposição de situações diversas decorrentes do fechamento psicológico ao insólito e a tentativa, tão ocidental, de formatação do ser humano.

Georges (interpretado por Pascal Duquenne, portador da S.Down na vida e no filme) nos apresenta seu mundo, seus desejos, sua sensibilidade, sua nítida percepção de que amedronta os que o cercam e seu amigo Harry (interpretado por Daniel Auteuil) secundados por Miou-Miou, constróem um corajoso filme, fundamental como o foram muitos dos dirigidos por Costa Gravas, sem a intelectualização destes. "O OITAVO DIA" é um filme visceral que instiga o pensar e recoloca a questão, levantada por Caim no Gênesis: sou eu o guarda do meu irmão?

Notas:
[1] Maria Cecília Faria é professora assistente mestre do Dpto de Psicodinâmica, o qual chefiou por dois mandatos consecutivos, foi Diretora da Clínica-escola Ana Maria Poppovic, de 85-89; é doutoranda em Psicologia Clínica e pesquisadora sobre questões do narcisismo ferido pela existência e presença de pessoas especiais deficientes mentais.