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BOLETIM CLÍNICO - número 7 - outubro/1999

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

6. Aspectos psicológicos de uma paciente com tumor orbitário - um estudo clínico sobre a transferência, a angústia e a rede de relações familiares[1] - Mônica Americano Leite Henriques[2]

"O ser humano é o mais complexo, o mais variado e o mais inesperado dentre todos os seres do universo conhecido. Relacionar-se com ele, haver-se com ele é, por isso, a mais emocionante das aventuras. Em nenhuma outra assumimos tanto o risco de nos envolver, de nos deixar seduzir, arrastar, dominar e encantar...."

J. A. Gaiarsa

Introdução:
A partir de um caso atendido na enfermaria de uma Clínica Oftalmológica, é que surgiu meu interesse em desenvolver este estudo.

Tratava-se de uma paciente idosa - 72 anos, com tumor orbitário no olho esquerdo (fibrohistiocitoma), recidivado. Entretanto, como esta patologia é grave, exige-se a retirada do globo ocular, mais área ao redor ; denominado - exenteração ampliada. O tempo de internação foi prolongado - um mês aproximadamente, fato relevante, pois nesta clínica é alta a rotatividade de pacientes idosos com patologias mais simples exigindo, portanto, menos tempo de internação: como catarata, glaucoma e descolamento de retina.

Minha reflexão partiu da necessidade de se extender os atendimentos também aos familiares e, com estes, perceber toda a angústia que a doença e os procedimentos invasivos estavam causando, além do que, pareciam reviver na relação transferencial comigo, sentimentos de abandono e separações por doenças graves, trazendo à tona um mito familiar. Por meio desta repercussão da doença e de alguns dados obtidos com estes familiares, reconstituí a história da paciente com hipóteses. Estas eram referentes às angústias já presentes na história desta família, decorrentes de abandonos por doenças graves. Esses fatores foram reatualizados durante o período de internação.

Este trabalho objetiva discutir a importância do atendimento psicológico aos familiares do paciente internado, salientando o papel que cada membro ocupa na família como uma rede de relações, em que o paciente não pode ser analisado isoladamente, mas pertencente a um contexto; além do papel do psicólogo na relação transferencial.

Utilizei, como material, atendimentos com a paciente e com seus familiares, além de textos com abordagem psicanalíticas - Freud e Lacan, para esclarecimento do assunto.

Fibrohistiocitoma é um termo aplicado a um grupo heterogênio de tumores malignos e benignos que podem acometer músculos esqueléticos e podem sugir em qualquer parte do organismo, incluindo a órbita.

O Fibrohistiocitoma de órbita é bastante incomum e geralmente ocorre em sua forma benigna. Pode acometer pacientes dos 4 aos 85 anos, com idade média de 43 anos. Não há preferência quanto ao sexo. É uma afecção rara.

Seu tratamento é essencialmente cirúrgico e a excisão completa é o objetivo. Alguns autores acreditam que a remoção total da órbita é o tratamento de escolha nos tumores malignos. A radioterapia é de pouca ajuda nestes casos e, quanto a quimioterapia, pouco se sabe sobre sua real eficácia, devido ao pouco número de pacientes submetidos a esta terapêutica. Monteiro (1993).

Como foi relatado anteriormente, alguns autores acreditam que a remoção total da órbita é o tratamento indicado para os tumores malignos, e o procedimento utilizado para tal, denomina-se exenteração. Existem três tipos, de acordo com Spencer (p.2568 ,1986):
- No primeiro tipo, as pálpebras são preservadas, mas o conteúdo orbitarão é removido.

- No segundo tipo, a pele da pálpebra é preservada, e um enxerto de pele é usualmente utilizado para preencher a cavidade.

- No terceiro tipo, se faz a completa remoção da pálpebra (e área ao redor), e foi o procedimento utilizado para o caso em questão.

RELATO DO CASO
Foi sujeito do presente estudo, uma paciente idosa - 72 anos, que virei a chamar de C., primeiro grau incompleto, casada há 50 anos, residindo com marido. Tinha três filhos - dois homens 48 e 29 anos, respectivamente, e uma mulher de 34 anos. Era natural do estado do Maranhão e trabalhou na lavoura.

Na primeira internação - fevereiro de 1993 - C. submeteu-se somente à retirada do tumor - exerese, fazendo com que, parte da pálpebra superior "virasse" para dentro dos olhos, segundo relato da filha da paciente.

Em maio do ano corrente, foi observado que o tumor estava reaparecendo e a paciente retornou ao âmbulatório de oftalmologia. Verificaram que seria necessária sua internação, pois seria submetida à nova cirurgia, em que pretendia-se retirar o globo ocular esquerdo, mais parte da face = exenteração ampliada.

Após uma semana de internação, C. foi encaminhada à psicologia pela médica que acompanhava o caso. A princípio, foi um encaminhamento verbal, em que pôde-se observar que o mesmo havia sido feito em decorrência de certa angústia da equipe em lidar com o caso, pois seria uma cirurgia demasiadamente "invasiva" (SIC), existindo a possibilidade da paciente não sobreviver a cirurgia, além do que, a cavidade ocular ficaria exposta por um longo período - 6 meses, para a cicatrização completa e, a partir daí, ser feita plástica ocular - encobrindo a cavidade com pele sintética. Futuramente, poderia vir a usar um óculos que dá a impressão de um olho.

O encaminhamento médico foi feito a partir de duas dificuldades :

1a - de executar uma cirurgia deste porte, extremamente invasiva, na qual a paciente poderia morrer.

2a - da cavidade ocular permanecer exposta durante um longo período, dificultando as relações sociais e familiares da paciente.

Foi um encaminhamento visando trabalhar, antecipadamente, prováveis dificuldades que a paciente enfrentaria no pós-cirúrgico. Também seria necessário a autorização dos familiares quanto à realização da mesma. A médica que ia realizar a cirurgia também mostrava-se preocupada. Seu discurso traduzia um medo por receio de morte da paciente, bem como da mutilação facial. A preocupação da médica motivou o encaminhamento da paciente para o atendimento psicológico. Vendo a paciente sob este ponto de vista, percebe-se que um atendimento psicológico poderia contribuir; dando lhe apoio. Havia preocupação da médica relativa à paciente, em que esta parecia "não poder escutar" naquele momento a perspectiva da deformação.

A linguagem médica não era compreendida pelos familiares, pois não sabiam exatamente o que aconteceria à paciente.

Os atendimentos foram iniciados, e no primeiro contato C. verbalizava acerca da doença referindo ser um "tumor" (SIC). Não sabia explicar a origem da doença, mas relatava que se submeteria a uma grande cirurgia. Repetia: "...se Deus quiser, vou ficar boa e voltar para minha casinha no Maranhão..." (SIC); onde poderia retornar aos seus afazeres domésticos.

Observei que C. parecia ter conhecimento da doença e do ato cirúrgico ao qual se submeteria.

Naquele momento, "ficar boa" (sic) significava poder executar suas antigas tarefas - cuidar e limpar a sua casa. Não mencionava seqüelas estéticas da cirurgia, estando longe de viver um conflito em relação à perda de imagem. Referia sobre o medo de sentir-se mal com a anestesia geral, pois na cirurgia anterior, vomitou muito e não queria experimentar novamente sensações físicas desconfortáveis que a faziam sentir-se aproximando da morte. Parecia valorizar negativamente, neste momento, a anestesia e seus efeitos, muito mais do que a cirurgia. A mutilação não parecia trazer nenhum impedimento quanto a executar suas atividades rotineiras, que é o que prevalecia até aquele e instante.

A troca da equipe médica, por outra mais especializada em tratar tumores do tipo que C. era portadora despertou seu interesse acerca dos procedimentos médicos e cirúrgicos

Obteve a informação da retirada do globo ocular e referia estar assustada, não sabendo se iria "agüentar a cirurgia "(sic). Se tivesse êxito..., quem sabe, teria um pouco de vida para usufruir. Iniciando nesta fase um processo de conscientização dos fatos, por meio da reflexão acerca da sua existência e do seu futuro.

C. solicitou a presença da filha após a cirurgia. Sua presença representava proteção. Era reconhecida e aceita por alguém que já fazia parte de sua vida ... Percebia-se necessitando de cuidados maternos - inversão de papéis - a filha cuidando, ao invés de ser cuidada.

Verbaliza que sentiu muito quando os filhos vieram para São Paulo - "... eu chorava muito ... quando batia saudades, achava que era capricho meu, pois a vida pertencia a eles" (SIC) .

Quanto a sua infância, relatou que foi morar com seus padrinhos, por volta dos cinco anos de idade, pois os pais já haviam cuidado de todos os seus irmãos mais velhos, e como ela era caçula, "pode decidir sozinha", além da casa dos padrinhos se situar num local onde mais lhe agradava. Essa "autonomia precoce" foi investigada posteriormente.

Entrar em contato com outras doenças, durante a internação, causava-lhe "horror" (SIC). O sofrimento e a dor dos outros tornaram-se um espelho para si mesma. Esse horror a que se referia era também relativo às suas perspectivas em relação à cirurgia.

Ao mesmo tempo, foram realizados atendimentos também com seus familiares. Ele sentiam-se ameaçados diante desta cirurgia de alto risco, pois podiam "perder" (sic) a mãe, segundo informações obtidas por intermédio dos médicos. Caso não fosse realizada, havia a possibilidade do tumor se expandir pelo cérebro. A decisão de assinarem ou não o termo de autorização, para que a mesma ocorresse foi muito debatida. Expuseram seus medos em relação à morte da mãe, se não fosse realizada a cirurgia. Se realizada, resistiria por quanto tempo e ainda "deformada"? Como seria a qualidade de vida futura? Questionavam a pouca garantia que a cirurgia oferecia. Havia preocupação, se seriam avisados, ou "pegos de surpresa" (SIC) , pelos médicos e enfermeiras.

Neste primeiro atendimento com seus filhos, havia dúvida em relação a autorizar ou não a cirurgia. Por um lado, teriam a mãe inteira, completa fisicamente, por outro, possivelmente mutilada, sem garantia de que sobrevivesse à cirurgia e à doença. Havia a fantasia de que não veriam mais a mãe com vida num próximo encontro, e se angustiavam com a impossibilidade de não poderem visitá-la após a cirurgia. Nesse atendimento, verbalizaram acerca de seus medos e angústias depositando em mim sentimentos hostis por tocar em conteúdos de morte. Quando demonstrei pesar pelo que ocorria, um dos filhos verbalizou num tom desafiante e com muita hostilidade: "...já que você sabe o que sentimos, o que você decidiria se estivesse em nosso lugar?" (SIC). Para eles, minha atitude era de apaziguar a dor pelo que estavam passando. Este comportamento dos filhos marcou um momento de transferência negativa.

Com a proximidade da cirurgia, C. referiu sobre a morte, dizendo: "...acredito em Deus, e aceito o que for a vontade dele... de que eu morra, ou de que viva mais um pouco..."(SIC). Parece se dar conta, mais uma vez, de seu diagnóstico e, conseqüentemente, da limitação que a doença pode lhe trazer, além do descontrole sobre a mesma.

Refere que nunca ficou doente e internada num hospital e que, de repente, nasceu-lhe algo nos olhos que, aos poucos, foi lhe encobrindo a visão, e refere ; "... a doença vem sem avisar... , ela caçoa da gente mais que as pessoas..."(SIC). A doença representava afastamento da vida, de sua casa e de toda sua família, além da falta de controle sobre a mesma. Algo passou a existir e a modificá-la fisicamente, sem que nada pudesse ser feito, acarretando uma sensação de profunda impotência.

Quanto ao atendimento psicológico, referia ser uma via de acesso às informações que seriam posteriormente passadas aos médicos, para que pudessem saber como uma pessoa reagiria diante da morte. Observei, em sua fala, que eu era alguém que "extraía" informações para fornecer ao médico - transferência marcada pela persecutoriedade, porque eu ocupava o lugar de informante.

Após a cirurgia, refere que sentiu mal estar com a anestesia, muito mais intenso que na cirurgia anterior, e evidencia: "... retiraram tudo, mas Deus vai me ajudar a ficar melhor..."(SIC).

O mal estar atribuído à anestesia parece encobrir o porte da cirurgia e suas conseqüências - a "mutilação". Evidencia o desejo de retornar às suas atividades cotidianas, todavia, a cirurgia parecia não ocasionar impedimento, pois mesmo permanecendo "mutilada" ainda estava apta a exercer estas atividades. Queria ir embora, pois ficaria mais próxima de sua família e se sentiria mais acolhida, já que o hospital era sentido como um ambiente hostil onde, a todo momento, se defrontava com outras pessoas doentes.

Em seguida, C. foi submetida ao primeiro curativo, tendo eu e a filha como espectadoras. A filha angustia-se e verbaliza: "...meu Deus! ... como ficou! ... como as pessoas sofrem neste mundo..." (SIC). Evidenciou que seria difícil conseguir alguém que se prontificasse a fazer o próximo curativo: "... eu não me sinto preparada para fazê-lo ..." (SIC) ilustrando a dificuldade em lidar com a situação e reconhecer a mãe mutilada. A alta, três dias após a cirurgia, dificultou encontros posteriores, entre paciente e psicóloga.

Após a alta, a paciente seria acompanhada pelo setor de plástica ocular, no ambulatório de oftalmologia. No primeiro retorno médico, foi solicitado à paciente que se encaminhasse a minha sala, para que fosse atendida. Ela não compareceu. Por algumas semanas, eu procurei localizá-la, sem sucesso, pois retornava conforme solicitação médica às segundas-feiras, pela manhã, horário em que eu tinha outras atividades. Foi solicitado para a auxiliar de enfermagem, que agendava pacientes para este setor, que lhe informasse a necessidade de a paciente comparecer à psicologia, mas isso nunca ocorreu.

Observei, com este fato, a dificuldade da paciente em retornar aos atendimentos psicológicos, pois isto implicaria falar sobre conteúdos angustiantes. A família também parecia não querer trazê-la pelo mesmo motivo.

Um dia, encontrei sua filha na sala de plástica ocular. Ela veio ao meu encontro verbalizando que me viu num dos retornos médicos. Quando questionada acerca do não comparecimento ao atendimento marcado, referiu que, neste dia, aguardavam por muito tempo a consulta médica e foram embora, pois estavam exaustas. Segundo seu relato, não tinha conhecimento que meu trabalho continuaria após a alta hospitalar e desculpou-se justificando: "... o médico não falou nada de psicóloga..."(SIC). Supus, neste reencontro, a dificuldade de estarem diante do atendimento comigo, como já foi explicitado anteriormente. Ela necessitava de elementos externos para justificar este não comparecimento. O fato de estar sozinha neste dia parece ser um meio de preservar a mãe e a si própria, não necessitando tocar em conteúdos delicados, pois seria ameaçador transferencialmente.

Apontei a importância de concluir o trabalho com a paciente, pois o mesmo teve uma interrupção e deveria ser retomado. Verbalizou que C. permaneceu um mês, sem se olhar no espelho, quando removeu o curativo, ficou chocada com sua imagem. Chorou muito por alguns dias.

Relatou que estava a procura do médico para que pudesse autorizar a alta de C., e que retornaria para São Paulo somente em março de 1995, para consulta na Fundação Oncocentro, onde a prótese ocular seria feita. O atendimento teve continuidade mesmo sem a presença de C. A filha verbalizou acerca da dificuldade da mãe em reconhecer-se diante do espelho desfigurada, referindo que ela gostaria de estar em sua cidade natal e, caso desenganada pelos médicos, lá se sentiria mais acolhida. Com vergonha de sair à rua, procurava cobrir o rosto com um lenço, achando que os outros não gostariam de vê-la assim... O retorno à sua cidade de origem somente deveria ser feito após a colocação da prótese, mas não foi possível adquiri-la em tempo hábil. Desta forma, teria que "se conformar" (SIC) em levar o antigo óculos de grau.

Referia não saber da importância do acompanhamento psicológico nestes casos, e verbalizava: "... achava que a psicóloga era uma amiga que estava lá para dar conselhos..." (SIC). Coloca-me no lugar de amiga. Este elemento pode estar indicando a dificuldade familiar em aceitar a minha colaboração, como mais um agente "causador" de angústia. Levantei a hipótese de que, na minha presença, houve reutilização de sentimentos de impotência, configurando o aspecto negativo da transferência.

Quando C. utilizava um lenço para cobrir a cavidade deixada pela cirurgia, indicava a maneira que dispunha para lidar com esta falta e, assim, tentava recuperar a possibilidade de relacionar-se socialmente. Sentia-se desfigurada e, desta forma, acreditava na impossibilidade de manutenção de seus vínculos afetivos, daí encobrir aquilo que não podia ser visto, o que facilitaria à paciente sua aceitação social.

Em seguida, verbalizava acerca do "pavor" (SIC) que ela e os irmãos estavam sentindo em relação à doença da mãe. Investigou sobre a avó, junto à mãe e concluiu que ela faleceu de câncer na garganta, devido à impossibilidade de engolir alimentos. Refere-se à doença como "silenciosa" (SIC), difícil de ser diagnosticada, e que gostaria de estar se submetendo à outros exames, inclusive ginecológicos, embora, mesmo fazendo-os, correria o risco de a doença se desenvolver em outras partes do corpo, vindo a descobri-la tarde demais. Quanto aos irmãos, referiu que o mais velho estava com o olho esquerdo (o mesmo olho da mãe, que foi exonerado) inchado e dolorido, mas achava que não poderia ser nada grave - "...acho que é psicológico..."(SIC). Acredita que o câncer mesmo diagnosticado no início, não tem cura, e me pergunta como isso acontece.

Respondi que cada tumor é um caso diferente, dependia de vários fatores, sendo o médico o mais indicado para explicá-los. Aponta o fato de a doença "ser hereditária"(sic), e do pavor de todos adoecerem. Esse relato indica a repercussão angustiante da doença da mãe, nas fantasias, e associações e atos dos filhos, identificando-se de forma paranóide com o adoecimento dela. Essa doença se constituiu em depositário externo de todos os perigos que ameaçavam a sobrevivência familiar despertando o fantasma da hereditariedade (algo, talvez, ainda em estudo pela própria medicina) ou seja, por gerações, a família não conseguiria livrar-se do destino catastrófico.

A filha buscava um sinal visível e manifesto, para dar significação ao que podia vir a sentir. Mesmo não havendo a concretude dos fatos, estava quase certa de que tinha câncer. Estava atenta a qualquer sinal e procurava indícios na realidade.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A TRANSFERÊNCIA, A ANGÚSTIA E A REDE DE RELAÇÕES FAMILIARES.
De acordo com Silvestre (1987 p.97-98): "Quando o analisando começa sua análise, o que ele confia ao analista é, antes de tudo e principalmente, o que ele não sabe de si... confia a seu analista como um depósito - um envelope fechado - o que ele tem de mais querido e mais precioso. Chamamos isso: o sentido de sua existência, a significação de seu ser, o segredo e a verdade de seu desejo, ou ainda a prenda do que constitui seu gozo".

Assim, a transferência é designada como um sentimento, um transporte de amor. "Está ligada à presença do analista e à função que ele ocupa no tratamento." Pode acontecer que este amor transferencial dê lugar ao ódio - transferência negativa. "Entretanto, ela em nada é negativa, apenas mais difícil de manobrar pelo analista e, sem dúvida, menos agradável para ele". Freud (apud Laplanche, 1991 p.517) também "... distingue duas transferências: uma positiva, outra negativa, uma transferência de sentimentos ternos e uma transferência de sentimentos hostis". Em ambas, a resistência "entra em serviço", tornando-se um instrumento muito poderoso e imprescindível ao processo de cura.

Isso ficou evidenciado com a paciente e com seus familiares, sendo o eixo central dos atendimentos.

A relação transferencial, num primeiro momento, foi positiva, já que imaginariamente, eu era vista como uma "amiga". Alguns conteúdos acerca de sua infância foram trazidos. Quando optou em morar com seus padrinhos aos cinco anos idade, e não ficou "magoada" (SIC). Esta fala remete à lembrança precoce e distorcida, já que uma criança não toma uma decisão deste porte sozinha. Provavelmente, utiliza-se de um mecanismo de defesa - intelectualização, evitando entrar em contato com sentimentos e afetos que, segundo Laplanche (1991 p 243), era definido como: "processo pelo qual o sujeito procura dar uma formulação discursiva aos seus conflitos e às suas emoções, de modo a dominá-los".

Reconstruindo a história da infância da paciente, teria sido na vigência da doença grave que houve um abandono parental da filha em favor dos padrinhos. Parece ter sido feito um arranjo familiar para que a paciente fosse poupada de presenciar o sofrimento da mãe, que já deveria estar gravemente doente. Deve ter feito a "escolha" de permanecer com seus padrinhos, configurando na lembrança um caráter de atividade que, certamente, é uma formação invertida de passividade com que sofreu o abandono dos pais.

Possivelmente, se o atendimento tivesse continuidade, a paciente poderia, na relação transferencial, repetir fragmentos desse passado esquecido, e transformado na memória emergindo sentimentos reprimidos, pois o afeto da paciente pode ter sido negado:..."não fiquei magoada..." (SIC).

De acordo com as idéias de Freud (vol. Xll , p.197): "... Se o paciente começa o tratamento sob os auspícios de uma transferência positiva branda e impronunciada, ela lhe torna possível, de início, desenterrar suas lembranças.... Mas se, à medida que a análise progride, a transferência se torna hostil ou excessivamente intensa e, portanto, precisando de repressão, o recordar imediatamente abre caminho à atuação (acting-out). Daí por diante, as resistências determinam a seqüência do material que deve ser repetido.

O paciente retira do arsenal do passado as armas com que se defende contra o progresso do tratamento - armas que lhe temos de arrancar, uma por uma". E, como forma de resistir, a paciente optou por não se entregar ao trabalho de elaboração. Eu era vista por ela como alguém que "sabia de sua morte". Parecia que ela refletia a partir do movimento transferencial em que achava que eu a observava perversamente, e que contaria para os médicos como uma pessoa se porta diante da morte. Nesse momento, houve resistência de minha parte em manejar as resistências da paciente e, se isto tivesse sido feito, talvez teriam emergido associações importantes.

Segundo Silvestre (p.98) "... a posição do analista e mesmo sua técnica, se já não são simples nem fáceis, não deixam de ser determinadas por mecanismos disparados pela situação analítica, e que se desdobram na transferência. A única coisa que ele deve evitar é entravar estes mecanismos, razão pela qual Lacan pode declarar que só há resistência por obra do analista". A resistência surgiu de minha parte contratransferencialmente, pois as resistências do paciente podem e devem ser manejadas com interpretação na transferência, pois assim, deixam de ser resistências e passam para um nível simbólico, mas as do psicólogo não, continuam atuando. De acordo com Silvestre (1 p.99), "o analista não é neutro, como se chega a repetir de maneira enganadora, o analista está comprometido no tratamento, ao lado do sujeito...". Família e paciente atuam, diante da cirurgia invasiva.

Num momento em que decidiam entre autorizá-la ou não, viram-se ameaçados pela separação e possibilidade de morte. Diante dessa ameaça, que parecia a repetição de uma história prévia de afastamentos e abandonos por doenças graves, na relação transferencial, predominaram sentimentos de dúvida e desconfiança quanto à possibilidade de acolhimento da angústia que emergia na família. Eu estava presente, na fantasia familiar para forçar e se intrometer, para que tomassem uma decisão, permanecendo no abandono a família, com seus conflitos psíquicos e receio de perda materna.

A seguir, um dos filhos verbaliza num tom hostil, ... "já que você sabe o que estamos sentindo, o que você decidiria em nosso lugar? ..." (SIC). Percebo nesta fala toda hostilidade que depositam em mim por tocar em conteúdos extremamente angustiantes. Foi um momento em que teriam que decidir sobre a autorização ou não da cirurgia, além da culpa que poderiam sentir caso a separação e o abandono se concretizassem com a perda desse objeto de amor primordial que é a mãe. Aqui se configura a transferência negativa. Penso no "lugar" em que este filho me coloca - de alguém incapaz de compreender suas angústias e medos. Somente por meio da interpretação é que a investigação poderia prosseguir, dando margem para que as situações pudessem ser reconhecidas, e, portanto, transformadas em recordações.

Segundo Silvestre (p.97): "...do ponto de vista transferencial, amor e ódio são equivalentes, são paixões produzidas pela transferência". Cabe aqui, uma análise mais detalhada. Para Freud (vol. Xll, p.197) "a transferência é ela própria um fragmento da repetição, e a repetição é uma transferência de um passado esquecido, ou seja, a relação com o analista é um campo fértil que vai propiciar a lembrança deste remoto passado e suas relações com figuras parentais".

Portanto, o passado sai do campo da atuação e passa a pertencer à memória. Como um traço mnemônico, ele se constituiu numa representação, passando de um nível de realidade concreta para o nível simbólico. Segundo Freud, (p.197) "recordar um passado significativo, onde foram experimentados sentimentos de amor e ódio, implicam numa resistência por parte do sujeito, e quanto maior esta resistência, mais extensivamente a atuação (acting-out) substituirá o recordar, pois o recordar ideal, do que foi esquecido, corresponde a um estudo no qual a resistência foi posta completamente de lado".

Visão hipotética que possivelmente foi construída para explicar aquilo que observava na relação transferencial. Assim, a paciente vai retirar de sua experiência passada, as armas para se defender contra a melhora do tratamento - armas que devem ser arrancadas - uma a uma - para que seja desvendada a vivência traumática.

É notório que neste estudo de caso predominou a atuação sobre a recordação. Por hipótese, teria que o conflito infantil atuante é a angústia da separação da mãe, somada à culpa por ter provocado tal separação (opção cirúrgica que fica sob responsabilidade da família, a qual estava ciente dos riscos que tal ato representava à paciente).

Durante os atendimentos, o "acting-out" não foi explicitado de maneira a abrir um espaço para a investigação na relação entre a psicóloga e a família.

Essa experiência, para os filhos de C., despertou uma defesa contra-fóbica. Queriam conhecer sob que estrutura viviam, buscando a história de sua linhagem. Observaram que algo ocorrido no passado se repetia - o fantasma da transmissão hereditária na expressão do tumor. Sua filha estava atenta a qualquer sinal no corpo que pudesse vir a ser a doença. Procurava indícios na realidade que constatasse a "profecia".

A transferência negativa observada em seus filhos foi um indicador dessa angústia de morte e de possível separação da mãe.

Quando C. verbaliza: "Eu não fiquei magoada, porque a decisão foi minha..." (SIC). Verificamos, segundo Freud (apud Laplanche p.294), que "... a negação conserva o mesmo valor de confirmação quando, se opõe à interpretação do analista...". "Quando o analisando nos aprova, tem razão, mas quando nos contradiz, isso não passará de um sinal da sua resistência e, assim mais uma vez nos dá razão". Freud apresentou para estas críticas uma resposta ponderada, incitando o analista a procurar a confirmação no contexto ou na evolução no tratamento.

Nem por isso a negação deixa de ter para ele o valor indicador que assinala o momento em que, uma idéia ou desejos inconscientes ressurgem e isto tanto no tratamento como fora dele". A afirmação vem no próprio contexto, levando-me a pensar que a partir de uma possível reconstituição dos fatos, constato que, na vigência de uma doença grave, se deu um abandono pela mãe da paciente, de significativa importância para uma criança de cinco anos de idade. Parece altamente improvável que se delegue a uma criança a escolha da casa e da família com quem vai conviver definitivamente. Teria sido imposto, pelo acometimento da doença grave da mãe e, tendo-lhe sido justificado como lhe sendo "mais agradável e divertido" morar com os padrinhos.

Quando verbaliza não ficar "magoada" (SIC), não deixa de ser um indicador momentâneo em que uma idéia ou desejos inconscientes começaram a ressurgir. E, ainda, segundo Freud (apud Laplanche p.295), que apresentou uma explicação metapsicológica muito concreta que desenvolve três afirmações estreitamente convergentes acerca da negação:

1a - "A negação é um meio de tomar conhecimento do recalcado... ".

2a - "... o que é suprimido é apenas uma das conseqüências do processo de recalcamento, isto é, o fato de o conteúdo representativo não atingir a consciência, enquanto persiste o essencial do recalcamento... ".

3a - "Por meio do símbolo da negação, o pensamento liberta-se das limitações do recalcamento..."

Esse afeto reprimido ficou negado sem ressentimentos e num momento em que ameaça romper à consciência, mesmo parcialmente, surge outro mecanismo de defesa - intelectualização - que é manter os afetos a distância e neutralizá-los, segundo Laplanche (2 p.244).

Quanto ao discurso da filha, percebe-se a resistência em entrar em contato com conteúdos dolorosos, negando-os. É um meio de lidar com a angústia de morte precariamente. E, quanto à angustia, Laplanche (p.27), a descreve da seguinte forma:

"...Como fenômeno automático e como sinal de alarme, a angústia deve ser considerada como um produto do estudo do desamparo psíquico do lactente..." Assim, a separação poderia ser para os filhos uma ameaça, principalmente para a filha, com quem tive um maior contato. Desamparada diante dessa ameaça, dá-se conta de que é mãe e, que a história poderia se repetir, buscando esclarecer os fatos ao invés de cumprir o destino passivamente. Sente-se perseguida por este mito familiar - o câncer como significante da angústia de morte, da separação e do abandono. Qualquer detalhe pode ser um indício da doença, daí vontade de refazer alguns exames ginecológicos, pois, para ela, o câncer é uma doença "silenciosa"(SIC), que se desenvolve inesperadamente...

Quando relata acerca do irmão - mais velho, que estava com conjuntivite - inchaço e vermelhidão no olho esquerdo, como o olho da mãe, pensa no pior. A transformação de um sintoma, em diagnóstico grave, indica o "pavor" ligado à ameaça de uma doença fatal ou mutiladora. O irmão, ao associar seu problema no olho ao diagnóstico da mãe, atua o que os outros temem, isto é, dá continuidade e consistência ao mito familiar. Ele realiza, imaginariamente, o destino prescrito aos elementos da família, buscando, na realidade, sinais investidos de significação.

DISCUSSÃO
Faço aqui, uma reflexão a respeito da extensão do atendimento psicológico aos familiares do paciente internado, visto que a família é uma rede de relações em que a posição de um membro existe em função, ou relativa a outro. Desta forma, a compreensão destes em relação à doença pode propiciar um melhor enfrentamento da mesma por parte deles mesmos e da próprio paciente, além desta não poder ser vista isoladamente.

Verifiquei a repercussão da doença junto aos familiares de C., e, por de hipóteses, o mito que se instalou pelo significante - câncer. Assim, reviveram toda história referente ao abandono de crianças, e estas sendo repassadas à guarda dos outros. Levantou-se, portanto, o fantasma da hereditariedade - exterminando todos os descendentes. Vivenciaram, também, a angústia de morte em relação à mãe, e a eles próprios. Poderiam adoecer, abandonando seus filhos.

Por meio dos dados obtidos durante o atendimento com a filha de C., foi possível a reconstrução do caso, por intermédio de hipóteses, e compreender sua dificuldade em lidar com este mito familiar, que se traduziu em angústia de morte. Esforçar-se para unir os dados referentes ao passado, procurando modificar esta profecia.

Ressalto a importância do atendimento abrangendo os familiares, pois, de posse dos dados obtidos, pode-se ter uma melhor compreensão do caso.

Notas:
[1] Este trabalho foi apresentado como conclusão do curso de pós-graduação em Psicologia Hospitalar- Latu Sensu - em Hospital Público Estadual na cidade de São Paulo - 1994/ 95. Revisado pela Professora Doutora Marina Rojas Boccalandro em 1999.

[2] Psicóloga graduada pela Pontifïcia Universidade Católica de São Paulo em 1992. Atualmente trabalha em Ambulatório Saúde Mental do Estado/SP.

Referências bibliográficas:

FREUD, S. Obras completas de Sigmund Freud. Trad. James Strachey. 2a ed. Imago, Rio de Janeiro, 1988.

LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J. B. Vocabulário de psicanálise. Trad. Pedro Tamen, 11a ed. Martins Fontes, São Paulo, 1991. p 27/242 - 4 293 - 5./517

MONTEIRO, M. L. R. Fibrohistiocitoma maligno de órbita. Revista Brasileira de Oftalmologia, nº 57, 1993, pp. 203-204

SILVESTRE, D. Silvestre, M. LACAN - Organizador Gerard Miller. ed. Jorge Zahar, 1987, pp. 92-101.

SPENCER, W. H. Ophthalmic pathology an atlas an textbook. Philadelphia London, 1986.