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BOLETIM CLÍNICO - número 8 - maio/2000

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

4. A resiliência na abordagem holística - Marina Pereira Rojas Boccalandro(1)

O termo resiliência vem do inglês resilience. Na física, significa propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora de uma deformação elástica. Num sentido figurado significa elástico. (Ferreira, 1986, pag' 1493).

Vamos levantar o que alguns autores escreverem sobre resiliência:

"Características de personalidade ou recurso de enfrentamento que facilita a superação da adversidade, a sobrevivência ao stress, e a transcender perdas". (Cicchetti e Garmezy, 1993 e outros).

"Indivíduos resilientes têm sido descritos como possuindo um locus interno de controle, otimismo, significação, força de ego, auto-eficácia, confiança, perseverança, habilidade para resolver problemas e flexibilidade". (Begun, 1993 e outros).

"Indivíduos resilientes têm um repertório de habilidades de enfrentamento a partir do que escolheram, de acordo com a situação que se apresenta". (Flach, 1988 e outros).

"Eles persistem em atingir metas quando a situação não é fútil; quando as situações não podem ser alteradas, eles chegam a um acordo com os aspectos da vida que não são controláveis". (Demos, 1989 e outros).

"Estes traços facilitam mudanças na visão das coisas como sendo inevitáveis, desafiadoras e manejáveis".
(Colerick,1985).

A resiliência é um termo novo na psicologia, mas o que a palavra significa é tão velho quanto a existência do homem. Quanto à existência de pessoas resilientes, creio que não se tem dúvida. O que não sabemos ainda com precisão é se a resiliência nasce com o indivíduo, ou melhor, se há indivíduos que nascem resilientes ou se algumas situações na vida preparam melhor, ou desenvolvem melhor a resiliência nas pessoas.

Esse termo está estreitamente ligado à noção de psicossomática e holismo. Parece que certas características de personalidade fazem com que as pessoas sejam mais felizes, realizadas, saudáveis e tenham maior habilidade de lidar com a dor, com o sofrimento, a doença, muitas vezes tirando desses reveses, forças para mudarem a própria existência.

Creio que a pergunta mais importante a ser feita é: podemos desenvolver a resiliência em nós ou em nossos clientes? Se sim, quais métodos e técnicas seriam mais eficientes?

No modelo primitivo, o homem e a natureza eram um só. O curador era o mediador entre as forças cósmicas e o doente. O xamã era que escutava o doente, não procurando o sintoma, mas procurando achar o erro que ele tinha cometido. A doença era conseqüência de um erro. O doente tinha que se arrepender para obter o dom da cura. Eram feitos rituais, oferendas. O xamã conhecia as ervas, como conduzir os rituais que procuravam ligar o homem ao cosmos, ao divino.

Na China, era dada a maior importância ao equilíbrio do homem com os cosmos e consigo mesmo. A música tinha só 5 notas e não se usava sons dissonantes porque se considerava que música dissonante feriria a harmonia do cosmos. O tratamento pela acupuntura visava restabelecer o equilíbrio interno trabalhando com os pontos energéticos, nos meridianos que continham pontos que lidavam com o corpo físico, o mental e o emocional. Aqui vemos a concepção de que o indivíduo que estivesse melhor harmonizado consigo mesmo e com os cosmos teria condições de ser mais "resiliente".

Na Grécia, já vemos uma abordagem científica através da observação, análise, dedução e síntese. Para os gregos, o mundo e o cosmos eram conhecíveis e a ordem prevalecia na multiplicidade das coisas e na unidade da diversidade mutável.

Os tratamentos eram por meio da música, das palavras de encantamento, da dieta, da compreensão dos sonhos, meditação, banhos especiais, teatro etc., buscando a harmonia interna do doente. A cura, segundo Platão, devia se dirigir à alma. Platão dava enorme valor à palavra e ele é considerado um dos precursores da psicoterapia tradicional. Como vemos nesse modelo, a cura e resistência frente às doenças estavam ligadas a uma boa integração entre mente corpo. Daí vem o aforisma "mens sana in corpore sano". Eles tinham métodos e técnicas para desenvolver "a resiliência".

Já no modelo cartesiano, fica clara a divisão mente-corpo. O corpo é máquina que funciona bem ou mal independente da psique. Eles se relacionam, mas são independentes. Aqui fica uma pergunta, como seriam encarados os indivíduos resilientes? Como explicariam aqueles que saiam das suas doenças superando-as enquanto outros menos graves não?

No modelo biomédico, baseado na fisiologia experimental, a observação foi substituída pela pesquisa experimental, e o enfoque é dado pela importância das anormalidades biológicas O ser psicológico, social, moral e espiritual é desprezado.

Os sintomas deixaram de ser símbolos e sim manifestação externa da doença. Nesse modelo, fica difícil explicar a resiliência.

Já nos modelos psicossomático e holístico, vemos a importância que é dada a parte psicológica interferindo nos processos do corpo e já se estuda como isso se dá por meio das vias nervosas e hormonais. Esses dois modelos vêm ganhando força e, nas duas últimas décadas principalmente, vêm substituindo o modelo biomédico. No modelo holístico, a visão do mundo é ecológica, abrangente, e o universo é visto como um sistema inter-conectado.

A partir da visão do homem dentro desses modelos, há uma tendência a considerar todas as doenças psicossomáticas na medida em que envolvem inter-relação contínua entre mente, corpo, na sua origem, desenvolvimento e cura. Cada indivíduo é único e como tal deve ser tratado. O doente é encorajado a ajudar a colaborar no seu processo de cura.

Dentro desse modelo, há psicólogos que, de certa forma, trabalharam e continuam trabalhando para entender o que faz um indivíduo ser mais realizado e mais forte no combate aos seus revezes, em outras palavras, mais "resilientes".

Procuramos em três autores que têm uma visão holística de homem, o que havia em comum em relação aos indivíduos que se saiam bem na vida, que tinham habilidade para terem sucesso, serem felizes, mais saudáveis e tinham condições de reverter situações difíceis de suas vidas em mudança para um nível melhor de existência. Procuramos em Maslow, Vitor Frankl e Assagioli.

Maslow estudou pessoas bem sucedidas que ele chamou de auto-atualizadoras. Levanta algumas características que ele encontrou: "as pessoas auto-atualizadoras, estão, sem nenhuma exceção, envolvidas numa causa estranha à própria pele, em algo externo si próprias; tem percepção mais eficiente da realidade: tem aceitação (capacidade de amar) a si mesmas, aos outros e a natureza. São espontâneas, concentram-se mais nos problemas e menos no próprio ego; são mais depreendidas; tem autonomia e independência em relação à cultura e ao meio ambiente; têm relações interpessoais mais profundas e internas; tem estrutura de caráter mais democrático, tem senso de humor, discriminam entre meios e fins, bem e mal, são mais criativos. Essas são algumas características entre outras."

Maslow propõe vários exercícios que ajudam na aquisição dessas qualidades. Entre esses exercícios podemos citar Exercício de Amor .

Para Maslow, "o amor do ser é desinteressado; não exige nada em troca. O próprio ato de amar, de apreciar a essência e a beleza do objeto de amor é sua própria recompensa. Em nossa experiência diária, sentimos usualmente uma mistura de amor do ser e de deficiência. Em geral, esperamos e recebemos algo em troca por nossos sentimento de amor.

Este exercício deriva de uma velha prática cristã, destinada a desenvolver sentimentos de amor puro. Sente-se num quarto escuro frente a uma vela acesa. Relaxe e tome contato, gradualmente, com seu corpo e seu ambiente. Permita à sua mente e ao seu corpo diminuírem a velocidade, tornarem-se calmos e tranqüilos.

Olhe atenta e fixamente para a chama da vela. Expanda sentimentos de amor de seu coração para a chama. Seus sentimentos de amor por ela não têm qualquer relação com o valor da chama em si. Você ama por amor ao amor. (Pode parecer estranho, à primeira vista, tentar amar um objeto inanimado, uma mera chama, mas este é exatamente o ponto-experimentar o sentimento de amor numa situação em que não há volta, nenhuma recompensa além do sentimento de amor em si). Expanda seus sentimentos de amor para incluir todo o quarto e tudo que há nele". (Maslow, in Fadiman e Frager,1979)

Vitor Frankl, que esteve preso no campo de concentração alemão de Auschwitz, relata no livro "Em Busca de Sentido" a sua experiência.

Num trecho do seu livro, ele coloca uma frase de Freud e a sua opinião sobre ela: "Imaginemos que alguém coloca determinado grupo de pessoas bastante diversificadas numa mesma situação de fome. Com o argumento da necessidade imperativa de fome, todas as diferenças individuais ficarão apagadas, e em seu lugar aparecerá a expressão uniforme da mesma necessidade não - satisfeita."(Freud, S.).

Frankl, V.: (1993) "Graças a Deus, Freud não precisou conhecer os campos de concentração do lado de dentro. Seus objetos de estudo deitavam sobre divãs de pelúcia desenhados no estilo da cultura vitoriana e não na imundice de Auschwitz. Lá as diferenças individuais não se apagaram, mas, ao contrário, as pessoas ficaram mais diferenciadas; os indivíduos retiraram suas máscaras, tanto os porcos quanto os santos. E hoje não se precisa mais hesitar no uso da palavra 'santos'. Basta pensar no padre Maximilian Kolbe, que foi deixado passando fome e finalmente assassinado através de uma injeção de ácido carbólico em Auschwitz, e que em 1983 foi canonizado."

Relata que, enquanto muitos se deixavam morrer abatidos pela dor, pela depressão, pelas doenças e desesperança, outros, como ele, passando por fome, privações, humilhações, doenças e toda a sorte de maus tratos, conseguiram sobreviver apesar de toda essa situação difícil. Ele, analisando o que viveu e viu, chega também a algumas conclusões sobre os sobreviventes.

Todos tinham um "sentido", uma motivação para continuarem vivos; fala da importância do amor por si mesmo e pelos outros; fala da importância do senso do humor, do riso, da capacidade de ajudar os outros, de não estar centrado só em si mesmo, mas voltado para o que pode ser feito, no aqui e no agora para o outro. Fala que existem três caminhos principais por meio dos quais se pode chegar a um sentido na vida.

1 - criar um trabalho ou fazer uma ação;

2 - experimentar algo ou encontrar alguém, em outras palavra, o sentido pode ser encontrado não só no trabalho, mas também no amor;

3 - mesmo uma vítima desamparada, numa situação sem esperanças, enfrentando um destino que não pode mudar, pode erguer-se, crescer acima de si mesma e assim mudar a si própria.

Pode-se mudar a tragédia em triunfo, portanto, ele acredita que alguém possa tornar-se "resiliente".

Segundo a Psicossíntese de Assagioli, é muito importante procurar ter pensamentos e emoções positivas, assim como procurar levar a vida com mais alegria, procurando rir até mesmo das nossas próprias limitações, gostar de si mesmo e de outras pessoas, desenvolver o Amor em todos os níveis ajuda a viver melhor, a ter melhor saúde e combater com mais sucesso as doenças e os revezes da vida.

Assagioli propõe várias técnicas e exercícios para se alcançar a psicossíntese pessoal e a transpessoal. Um dos principais trabalhos da Psicossintese é o que poderíamos chamar de atualização de Talentos, isto é, buscar no próprio inconsciente superior as qualidades positivas do ser como: amor, criatividade, senso de justiça, sentido de vida, alegria, beleza, etc. e trazê-las para a nossa vida diária.

De forma suscinta, podemos verificar que todos esses três psicólogos acreditavam que se pode ajudar uma pessoa a ser mais "resiliente".

Precisamos de estudos cada vez mais acurados nos indivíduos resilientes, que combatem e vencem as suas doenças, para sabermos o que há de comum entre eles e se é mesmo possível desenvolvermos por meio de técnicas de educação e psicoterapia essa qualidade.

O que vemos de comum nesses três autores são palavras como: amor, alegria, senso de humor, sentido de vida, não estar ego centrado, satisfação no trabalho e ou na vida afetiva entre tantas outras.

Todos os que lidam com a imaginação como por exemplo: Simonton, Epstein, como técnica complementar ao tratamento do câncer, sabem como é importante trabalhar em imagens positivas, de alegria, amor, sucesso, a importância dos pensamentos e emoções positivas no auxílio e na busca da cura.

No livro bem instigante "O código de ser", de James Hillmann, ele fala que o indivíduo nasce com um "daimon" que precisa ser cumprido.

Pensando por aí será que a resiliência de um indivíduo viria no seu código genético? Não sabemos, ficam dúvidas e muitas possibilidades de estudo e pesquisa nesse campo.

E para encerrar, a frase de Lucrécio:

"Assim, a força vivida da sua mente
Derrubou todas as barreiras,
E ele foi muito além
Dos muros flamejantes do mundo
E, em mente e espírito,
Cruzou o universo ilimitado
."


Lucrécio (De rerum natura)


Bibliografia:

ASSAGIOLI, R. Psicossíntese - Manual de Princípios e Técnicas. São Paulo, Cultrix, 1982

FADIMAN, J. e FRAGER Teorias da Personalidade. São Paulo, Ed. Harbra, 1979

FERREIRA, A . B. H, Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira 2º Edição, 1986

FRANKL, V. E. Em busca do Sentido. São Paulo, Ed. Sinodel e Ed. Vozes, 1993

HILLMANN, J. O código do Ser. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva Ltda, 1997 RAMOS, D. G. A Psique do Corpo. São Paulo, Ed. Summus editorial, 1994

Notas: (1) Psicóloga clínica, Chefe da Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic"da PUC-SP, Psicoterapeuta, Professora e Supervisora da Faculdade de Psicologia, Doutorada em Psicologia Clínica pela PUC-SP.