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BOLETIM CLÍNICO - número 8 - maio/2000

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

A incerteza provocada pelos resultados discrepantes da comparação entre gêmeos mono e dizigóticos, e entre os últimos com irmãos não gemelares, fez com que os projetos experimentais destinados a investigar o problema se modificassem, visando separar mais claramente os fatores genético e ambiental. Surgiram assim os estudos de adoção.

Um dos primeiros nesse terreno foi o de Heston (1971), que comparou 47 sujeitos nascidos de mães esquizofrênicas e 50 sujeitos de um grupo de controle constituído por filhos de pais não psicóticos. Os resultados apontaram cinco casos bem estabelecidos de esquizofrenia, todos pertencentes ao primeiro grupo e, além disso, "...uma maior incidência de 'personalidades antisociais' e de 'desordens da personalidade'"34 , igualmente entre os sujeitos experimentais. Heston então propôs a noção do "espectro esquizofrênico", sugerindo a presença de fatores quantitativos na determinação da afecção, que se distribuiriam de acordo com diferentes graus de severidade em filhos biológicos de mães esquizofrênicas adotados precocemente.

Outros estudos do gênero, como os realizados na Dinamarca por Kety e colaboradores, indicaram predominância de fatores ambientais, causando considerável polêmica entre organicistas e ambientalistas.Também essa última pesquisa teve sua metodologia criticada.

Advogados da hereditariedade, como Bouchard (1980) e Kendler (1983), estimam ter demonstrado inequivocamente, e fora do campo da patologia, uma semelhança notável de atitudes e comportamentos em gêmeos monozigóticos separados a partir do nascimento. O mesmo estudo de Kendler, feito em conjunto com Rodinnette, teria revelado, em concordância com os resultados de Heston, que 32% dos gêmeos monozigóticos discordantes de esquizofrenia apresentavam algum distúrbio psiquiátrico, contra 18,5% dos dizigóticos.

Os diagnósticos em questão apontavam a presença de "transtornos da personalidade" e "neurose". Os referidos autores julgam que seus dados favorecem uma interpretação a meio caminho entre "...a teoria psicanálitica e os postulados néo-kraepelianos35 ".

Diaz considera que tais dados aproximam a esquizofrenia de condições patológicas como a diabete ou a hipertensão arterial, afecções caracterizadas por sintomas heterogêneos e com prognóstico variado, cuja etiologia se distribui entre fatores biológicos e ambientais. A interrogação sobre o mecanismo genético responsável por tal padrão de manifestação tampouco fornece uma resposta definitiva. Os resultados não se encaixam no paradigma do gen ou locus único nem no da hereditariedade poligênica.

Alguns cientistas propuseram então um modelo misto. Seja como for, as cambiantes evidências que sustentam as diferentes hipóteses se confrontam sem que possam ser dirimidas. Tampouco há evidência de que o impasse possa ser atenuado por alguma interpretação consensual. Diaz conclui: "É assim que não se resolveu o tipo e o grau da contribuição da genética à esquizofrenia, ainda que os resultados tenham iluminado em parte o domínio da realidade à qual o termo se refere36" .

Admitindo o insucesso das pesquisas que visavam identificar no próprio material cromossômico a matriz das alucinações, delírios, euforias e disforias, mesmo assim o cientista mexicano considera que os estudos comparativos sobre gêmeos HZ e DZ bem como a análise dos efeitos relativos à adoção efetivamente indicam a presença do fator genético, embora sem poder medir seu grau de influência. De qualquer maneira, ele conclui que não caberia atribuir exclusividade etiológica à hereditariedade, na medida em que os referidos estudos teriam detectado igualmente a influência de determinantes ambientais.

Contudo, até mesmo uma conclusão tão ponderada como a de Diaz talvez superestime as evidências favoráveis à hereditariedade dos distúrbios mentais. Como foi antecipado acima, a maior incidência de diagnósticos de esquizofrenia em pessoas com laços consangüíneos não constitui necessariamente um argumento a favor da etiologia genética. O próprio Diaz observa que "O enorme acúmulo de informação revisada e contida nessas cifras deixaria poucas dúvidas sobre a tendência da esquizofrenia de 'propagar-se em família', ainda que não separe claramente os fatores genéticos dos ambientais: quanto maior o parentesco, maior concordância entre ambos37 ".

Se Diaz, obedecendo à concepção epistemológica hegemônica nas ciências naturais, considera que os fatores se dividem em orgânicos (no caso genéticos) e ambientais, e que a correlação positiva entre diagnósticos e certos grupos de risco não permite em princípio medir a participação de cada um desses fatores mas de qualquer maneira confirma a exclusividade dos mesmos, a psicanálise ingressa num debate dessa natureza questionando as próprias bases epistemológicas que têm orientado a interpretação das pesquisas.

Para entender o teor dessa crítica à concepção epistemológica que designaremos por darwinista38 (todos os fatores etiológicos seriam inatos e/ou adquiridos e pertenceriam às categorias do orgânico e/ou do ambiental), é preciso refletir sobre as implicações epistemológicas do conceito de identificação, pelo qual a psicanálise visa dar conta do processo de constituição do sujeito.

A premissa sobre a qual se apóia o conceito de identificação é incompatível com o enfoque darwinista, pois pressupõe que a "personalidade" não apresenta componentes herdados39. Por outro lado, a referida estruturação tampouco seria tributária de fatores ambientais como a educação. A identificação pode ser descrita como um processo cujas etapas são regidas pelos efeitos do discurso desejante e normativo daqueles cujo projeto de vida incluiu a maternidade e a paternidade. O termo discurso, enquanto referido à própria identidade individual, é um conceito solidário da concepção epistemológica que situa a linguagem fora da jurisdição referente aos determinantes constitucionais (hereditários) e ambientais.

Tais raciocínios podem surpreender, já que, em primeira instância - e mesmo para muitos psicanalistas ou teóricos - a identificação se enquadraria no campo do adquirido (experiência), em contraposição ao inato (genético). Trata-se, porém, de uma definição questionável. A identificação, como todo conceito cuja referência está situada no 'inconsciente' (ou seja, na linguagem), tem por implicação a impossibilidade de controlar e planejar o que quer que seja da ordem da identidade.

Situa-se assim nos antípodas da famosa afirmação de Watson no sentido de que um programa adequado de reforçamento permitiria esculpir cabalmente na infância o repertório do adulto. Para a psicanálise, independentemente dos fins visados por determinado processo educativo, a identidade se forma a partir do lugar que a criança ocupa na estrutura familiar. Provavelmente a nenhuma mãe ou pai se poderia atribuir o desejo consciente de que determinado filho(a) enlouqueça.

Entretanto, a loucura, seja qual fôr sua manifestação, e tal como acontece com outros tipos de conflito (neurose, perversão) e de não-conflito (sublimação), seria uma possibilidade decorrente do processo de construção da identidade. Por outro lado, é preciso lembrar que a nosografia psicanalítica não pressupõe que as pessoas classificadas em determinado quadro nosográfico sejam iguais ou semelhantes; há tantos discursos obsessivos, histéricos, fóbicos, perversos, psicóticos e sublimatórios quantas pessoas assim categorizadas, e o quadro é tanto mais complexo na medida em que tais discursos nunca são "puros", mas se entrelaçam com diversos graus de predominância - ou sem predominância.

Uma tal descrição certamente levanta a questão, extremamente difícil, de como se dá a articulação entre estrutura (genérica) e identidade (singular)40 . Seja como for, todas essas modalidades de estruturação estão associadas ao processo de constituição do sujeito e ocorrem independentemente do projeto educativo. Dito de outra forma, o comportamento dos desejantes em relação às crianças escapa ao planejamento, controle e mensuração e seu resultado é tudo menos previsível. Tampouco os educadores têm consciência da razão pela qual professam determinados valores e por que auguram para seus filhos tal ou qual futuro.

Ao efeito desse tipo de influência dos modelos sobre o processo de constituição do sujeito se daria o nome de identificação. Na medida em que o discurso dos desejantes é heterogêneo e - pelo menos em algum grau - conflitante, não caberia esperar que o sujeito em constituição venha a ser um decalque de seus desejantes. A relação da identificação com a linguagem, acima referida, não poderia ser examinada detalhadamente neste texto.

A referida articulação, certamente complexa, tem sido tratada na literatura psicanalítica, principalmente nos textos teóricos que descrevem o processo de constituição do sujeito e a psicose infantil, aos quais remetemos o leitor41. Ela é mencionada aqui unicamente com a finalidade de indicar a possibilidade de que a maior incidência dos distúrbios mentais em grupos familiares pode ser interpretada de outra maneira, muito diferente da que se orienta pela suposição de que tais evidências comprovam a existência da causalidade genética.

Quais seriam as implicações do conceito de identificação para os dados relativos à correlação positiva entre esquizofrenia e meio familiar? A partir do acima exposto, deduz-se que, de acordo com o enfoque psicanalítico, a estruturação da identidade deve-se unicamente às razões pelas quais determinada mulher e determinado homem optaram pela maternidade e pela paternidade. Para cada nascimento, há um conjunto de expectativas, cujo grau de consciência sempre será ínfimo.

Essa afirmação não elimina a responsabilidade parental, embora certamente implique que determinar o seu grau será tudo menos uma tarefa fácil; cabe perguntar até sobre sua possibilidade. (O ato de julgar - julgar os pais, por exemplo - poderia ser acrescentado às empresas impossíveis de que falava Freud: educar, psicanalisar, governar). Conseqüentemente, a psicose, a neurose, a perversão e a sublimação bem como suas incontáveis combinações e interrelações seriam possibilidades decorrentes do processo de constituição do sujeito e diriam respeito à incidência do desejo parental sobre o sujeito em processo de constituição.

Quanto à modificação do discurso/identidade, trata-se de uma questão que envolve a compreensão dos efeitos atribuíveis ao método psicanalítico, algo que está longe de ter sido realizado até o momento. Essa lacuna de importância considerável constitui uma das principais razões do estado precário em que se encontra o debate entre psicanálise, organicismo e ambientalismo. Além do que, muitos teóricos consideram que a epistemologia psicanalítica não difere da da positivista.

Segundo tal ponto de vista, a personalidade seria formada por uma somatória de fatores constitucionais e ambientais - nesta última categoria se enquadrariam os eventos traumáticos e a educação. Tudo leva a crer que, dentro e fora da psicanálise, e nas ciências humanas em geral, há um longo caminho a percorrer para superar as consideráveis confusões existentes, simultaneamente em epistemologia, teoria e metodologia.

Discurso, sistema nervoso autônomo, drogadição e psicose

A teorização psicanalítica acerca da drogadição não poderia contentar-se com a menção à dependência. De tudo quanto foi dito acerca das possíveis relações entre estados delirantes e alucinatórios, de um lado, e as vivências buscadas através dos psicotrópicos, de outro, é possível hipotetizar que a intoxicação química constitui uma espécie de surto artificial. Tal como o organicismo, mas por vias muito diferentes, a psicanálise não escapa à constatação de que delírios e "baratos" são vasos comunicantes.

Enquanto o organicismo considera que a comunhão entre os dois estados repousa no desequilíbrio neuroquímico, a psicanálise vê na atração exercida pelas vivências eliciadas através dos fármacos a manifestação do desejo de não desejar (a anulação da diferença com o outro), isto é, o mesmo sentido subjacente às diversas manifestações da psicose. Conforme mencionado acima, este não é o lugar para discutir a questão exaustivamente42.

Por outro lado, a psicanálise não teria porque renunciar ao escrutíno das conseqüências orgânicas decorrentes da psicose e da drogadição. A hipótese desenvolvida ao longo deste texto tem examinado a possibilidade de que os psicotrópicos possam induzir, percorrendo na contramão o trajeto discurso Õ SNA, estados em que o sujeito experencia quer uma integração com o outro conducente à sensação de plenitude, quer uma sensação de poder sobre o outro que igualmente protege da perda, ao prometer abolir a diferença e conseqüentemente a relação, a falta e o desejo.

Essa busca do absoluto se vale do acionamento contínuo de um dos ramos do sistema nervoso autônomo, com a conseqüente inibição do seu congênere, promovendo assim a hegemonia inconteste do discurso correspondente, o que aproxima os estados de intoxicação aguda das manifestações da loucura, na medida em que o conflito interno é como que suspenso pelos efeitos da polarização do sistema nervoso autônomo. De fato, uma das poucas afirmações consensuais da literatura psiquiátrica sobre a psicose reside na caracterização do delírio como crença inquestionável.

O tratamento psiquiátrico, desse ponto de vista, nada mais seria do que o equivalente a uma intoxicação por psicotrópicos de adição, mas pelo avesso. (A afirmação vale sobretudo para as fórmulas que incidem primariamente sobre o SNA, embora seja aplicável também, mesmo se com alguns acréscimos, distinções e ressalvas, para descrever a ação dos choques - elétricos ou químicos - e dos desinibidores discursivos do tipo fluoxetina, como o Prozac). Se a droga de abuso é demandada precisamente pela sua propriedade de produzir uma psicose artificial (caracterizada pela recusa da falta, ou seja, da relação com o outro), a medicação psiquiátrica visa alterar (desorganizar) uma configuração similar do autônomo produzida no psicótico não por via química mas discursiva.

Quando isso efetivamente acontece, e durante o período em que dura a intoxicação43, o respectivo discurso é afetado. Se esse raciocínio for razoavelmente plausível, seu corolário é que o tratamento da loucura por psicofármacos obedece à mesma lógica subjacente ao abuso de drogas, mas aplicada em sentido inverso. O dependente visa aceder, pela modificação química do seu SNA, ao mesmo estado de plenitude que, no caso da loucura, é perseguido espontaneamente. Espontaneamente, mas não aleatoriamente: a estruturação da identidade psicótica (que paradoxalmente visa a uma não-identidade), dever-se-ia ao teor da identificação com o aspecto dominante do discurso desejante responsável pela própria existência.

Freqüentemente os remédios induzem uma configuração do autônomo simetricamente oposta à parametrizada pelo estado delirante e, dessa maneira, ocasionam a manifestação de um quadro sintomático exatamente inverso ao debelado (como no caso da substituição da depressão pela mania ou vice-versa). Essa afirmação tem por implicação que as modificações neuroquímicas associadas à psicose são secundárias, e decorrem da ação primária exercida pela estrutura discursiva de crenças sobre os ramos simpático e parasimpático do autônomo.

Conseqüentemente, este seria configurado primeiramente em obediência ao conteúdo do delírio e das alterações (eufóricas/disfóricas) da auto-imagem. Pelo mesmo motivo pode-se dizer que a relação de correspondência entre discurso e SNA permite a modificação temporária de comportamento por via química. A via química, porém, não fornece acesso à estrutura discursiva, porque esta não constitui um epifenômeno do estado neurológico - antes o contrário.

O discurso, sendo basicamente heterogêneo, se apresenta na forma de manifestação e latência; o discurso manifesto configura o sistema nervoso autônomo e pode, reciprocamente, por via química, transformar-se em latente pela ação das substâncias capazes de estimular o ramo do autônomo até então inibido. Mesmo uma condição tão simples como a resultante das modificações fisiológicas induzidas por uma gripe é capaz de demonstrar essa relação entre discurso e SNA.

A predominância do parasimpático, resposta adaptativa do organismo à infecção, costuma acarretar sentimentos de apatia e desânimo (expressas singularmente por cada pessoa). Tal estado de espírito não resulta diretamente da ação do vírus, mas constitui um efeito da predominância do parasimpático resultante do estado gripal.

Em resumo, os estados delirantes e os estados relativos à alteração bi-polar da auto-imagem configuram o sistema nervoso autônomo, mas ao contrário da intoxicação química produzida pelas drogas de adição, o fazem através do trajeto habitual discurso Ý SNA. O papel do discurso, na drogadição, se expressa através da demanda pelo psicotrópico. Portanto, em ambos os casos, trata-se, em última análise, de uma escolha (ou "escolha"44 ), isto é, de um fenômeno de sentido, que só secundariamente envolve o orgânico.

A partir da análise feita ao longo deste texto, é possível hipotetizar que a teoria organicista da drogadição enfrenta objeções consideráveis que só poderiam ser atenuadas mediante suposições cuja plausibilidade é ínfima. Além do caráter falacioso relativo à aproximação proposta entre doenças neurológicas, psicoses funcionais e drogadição, há que considerar a colisão das hipóteses organicistas com a lógica.

As pesquisas que visam demonstrar a indução de dependência química em animais não abolem o fato, muito mais significativo, de que a drogadição inexiste no estado de natureza45. Por outro lado, conforme já argumentado, as condições experimentais e as respectivas curvas de respostas podem ser muito mais plausivelmente consideradas como típicas de condicionamentos operantes relativos à esquiva do que decorrentes da demoníaca propriedade aliciadora das respectivas drogas.

Em acréscimo, lembremos que o ser humano exibe, além da drogadição, preferências e hábitos que não envolvem qualquer tipo de ingestão e nem por isso são menos compulsivos. Assim, tanto o "vício" do jogo - cavalos, dados, cartas, roleta, loteria - como outras condutas eventualmente consideradas saudáveis (cinema, teatro, música, filatelia, esporte, leitura, internet, trabalho ["workaholismo"], etc.), se enquadrariam perfeitamente na "adição", se o critério adotado for a freqüência do comportamento em questão.

A menos que hipotetize a existência de receptores e neurotransmissores responsáveis pelo ato de debruçar-se em guichês de hipódromos e mesas de cassinos46, bem como freqüentar concertos e bibliotecas, o organicismo será obrigado a aceitar uma dicotomia: a assim chamada dependência química se deveria a desequilíbrios orgânicos, enquanto a dependência não química (expressão ainda inexistente) derivaria de algum outro fator.

Para comparar ainda uma vez os diferentes enfoques, tomemos o exemplo do "vício' do jogo. A hipótese "discurso/SNA" presumirá que há um sentido subjacente ao tudo ou nada perseguido pelo apostador compulsivo. Ganhar e perder sem outra razão que não seja o resultado caprichoso de um sorteio, a rapidez do cavalo, a volubilidade da bolinha correndo sobre uma esfera de ranhuras bicolores, produz certamente emoções fortes, que novamente se expressam na parametrização do SNA, configurado pelos extremos da euforia resultante do ganho ou da depressão associada à perda.

Em outras palavras, mais do que a quantia em jogo na aposta, o jogador obedece ao desejo de ganhar sem outro mérito que o da sorte e perder sem outro castigo que o do azar. Tudo se passa como se a respectiva fantasia colocasse em pauta a dependência em relação a poderes sobre os quais não se tem qualquer controle - e a cujas decisões se está assujeitado. A vitória significa ver-se ungido como eleito pela preferência absoluta do que quer que esses poderes representem - mesmo porque o número de perdedores é sempre muito maior.

Que o comportamento de arriscar tudo prossiga independentemente dos resultados - inclusive os favoráveis - significaria que, como no famoso lema olímpico, o importante não é ganhar, mas competir... pela ilusão da preferência dos deuses. Para a psicanálise, obviamente, tais deuses e seus milagres com cubos, esferas, números e naipes metaforizam "outra coisa". O contraste entre as dádivas eventualmente oferecidas por Fortuna Imperatrix Mundi e as modestas alegrias quotidianas talvez tenha auspiciado, através de um sentido que aponta menos para o fato em si e mais para o desejo polarizado do protagonista, a confecção do conhecido provérbio: "sorte no jogo, azar no amor"47.

Bibliografia:
Dias, José Luis. Psicobiología y Conducta. Fondo de Cultura Económica, México, (1989).

Garrabé, Jean. La noche oscura del ser. Fondo de Cultura Económica, México, 1987, (Original: Histoire de la schizophrénie, Éditions Seghers, Paris, 1992.)

Graeff, Frederico Guilherme e Lira Brandão, Marcus. Neurobiologia das doenças mentais. Lemos Editorial & Gráficos Ltda, São Paulo, 1993.

Kramer, Peter D. Ouvindo o Prozac. Editôra Record, Rio de Janeiro, (1993). (Original: Listening to Prozac Viking Penguin, 1993.)

Restak, Richard M. Receptors. Bentham Books, Nova York, 1993.

Turecki, Gustavo. Genética da esquizofrenia: A complexa relação entre a variabilidade genotípica e a predisposição ao fenótipo in O desafio da esquizofrenia, orgs. Shirakawa, Itiro - Chaves, Ana Cristina - Mari, Jair J. - Lemos Editorial, São Paulo, 1998.

Notas:

1. Professor da Faculdade de Psicologia da PUC. Autor de Trauma, amor e fantasia (Escuta, 1988) e O complexo de Édipo (Ática, 1989), entre outros livros.

2. Identidade, personalidade,

3. Restak, p. 198.

4. Idem, ibidem.

5. O delirium tremens do alcoólatra é um exemplo.

6. O que reflete uma ambigüidade interessante. Do ponto de vista da dependência química, o tabagismo seria uma forma de drogadição. Do ponto de vista valorativo (ideológico), não, visto que o cigarro não está associado à "perda de controle" decorrente do hiperestimulação do simpático, nem ao estado quase autístico decorrente da hiperestimulação do parasimpático.

7. Pois a anorexia demonstra - ou em muitos casos de anorexia tal interpretação é muito plausível- que a oralidade, enquanto ligada à alimentação, pode ter um caráter ansiógeno.

8. Restak, p. 106.-

9. Idem, ibidem.

10. Idem, p. 127

11. Restak, p. 157. (Entre hipersensibilidade e ansiedade, de qualquer maneira, vai uma grande distância...)

12. Restak, p. 176.

13. Garrabé refere-se aos efeitos simultaneamente antidelirantes e extrapiramidais dos neurolépticos.

14. Garrabé, p. 186; (grifo meu).

15. Mesmo assim, deparamos com exceções: "...o psicólogo norte-americano M.E.P. Seligman verificou que um cão submetido a choques elétricos que ele não podia prever nem evitar ficava tristonho, não abanando mais a cauda, deixava de comer e perdia a capacidade de aprender novas tarefas. Este quatro lembra muito a depressão clínica, de tal forma que o teste parece satisfazer ao critério de validade analógica". (Graeff & Brandão, op.cit., pgs. 29/30).

E um pouco adiante: "Assim, um padrão de comportamento como o de roedores ocultarem objetos que lhes causaram dor, recobrindo-os com serragem, tem sido encarado como modelo animal de ansiedade". (Idem, ibidem, pg. 30). Essa ilação, segundo Graeff, "...admitindo-se o princípio da continuidade filogenética..." seria plausível. Julgamos desnecessário qualquer comentário.

16. Ao historiar as hipóteses tóxicas sobre a esquizofrenia, Diaz comenta: "Por exemplo, muita excitação causou a notícia de que a urina de esquizofrênicos bebida por certas aranhas induzia a fabricação de teias peculiares e anormais. Em meados do século, essa linha de investigação começou a declinar pela impossibilidade de replicar os resultados..." (op.cit., pg. 68).

Um pouco adiante, ao discutir a hipótese da relação entre dopamina e esquizofrenia, ele assinala: "Por outro lado, a concentração de ácido homovanílico produzido pela dopamina parece estar diminuido no líquido cefaloraquidiano de alguns pacientes (Bowers, 1974 e 1977) e é normal no cérebro de esquizofrênicos não tratados (Bacopoulos e col. 1979)" (pg. 75).

17. "Genética da esquizofrenia: a complexa relação entre a variabilidade genotípica e a predisposição ao fenótipo", in O desafio da esquizofrenia (Shirakawa, I., Chaves A. C. e Mari, Jair J.), Lemos Editorial, São Paulo, 1998).

18. Op.cit., pg. 33.-

19. Os estudos de segregação visam estabelecer o modelo de transmissão dos genes tidos como responsáveis pela patologia estudada, a partir da distribuição dos indivíduos afetados num dado grupo consanguíneo.

20. Op.cit., pg.36.-

21. Diaz, op.cit., pg. 66

22. Conforme argumentaremos adiante, essa suposição é questionável.

23. Turecki, op.cit., pg. 39.

24. Idem, pg. 40.

25. Idem, ibidem.

26. Idem, ibidem.

27. Idem, pg. 41.

28. Eis um exemplo típico de como os jornais veiculam notícias que endossam a verossimilhança da etiologia orgânica: "Agressividade pode ter causas biológicas. Londres.- Garotos com tendência a comportamento violento apresentam níveis baixos de cortisol, hormônio relacionado ao estresse e encontrado na saliva, disseram pesquisadores.

Em um estudo que durou quatro anos, meninos entre 7 e 12 anos com níveis de cortisol abaixo do normal demonstraram comportamento anti-social mais cedo e exibiram três vezes mais sintomas de agressividade. Os resultados sugerem que o comportamento violento tem causa biológica e não pode ser atribuído meramente ao modo de criação de cada pessoa. (The Times)". (Notícia publicada n'O Estado de São Paulo, em 18 de janeiro de 2000, pg. A 10).

29. Idem, pg. 43.-

30. Idem, pg. 46.-

31. Chandy et al.

32. Idem, pg. 47.-

33. Diaz, op.cit., pg. 64.

34. Diaz, op.cit., pg. 66.

35. Diaz, op.cit., pg. 67.

36. Diaz,.op.cit., pg. 68.

37. Diaz, op.cit., pg. 64.

38. É possível igualmente mencioná-la pelo termo "positivismo" ou pelo seu derivado "néo-positivismo".

39.Na própria psicanálise, como já foi assinalado, essa questão está longe de poder ser considerada consensual. Tanto na obra de Freud como de seus sucessores é possível constatar a fratura epistemológica.

40. Que tampouco poderá ser tratada aqui. Ver nota de rodapdé seguinte.

41. Limitar-nos-emos a mencionar a importância da aquisição de linguagem para o processo de constituição do sujeito.Remetemos o leitor à literatura psicanalítica sobre o tema. De nossa parte, tratamos dessa questão nos livros Trauma, Amor e Fantasia (1988) e A Máquina do Fantasma (no prelo), e no artigo 'Reflexões e hipóteses sobre a nosografia freudiana' (2000), publicado no Boletim Clínico Nº VII, em outubro de 1999.

42. Ver nota de rodapé anterior.

43. E desde que nenhuma modificação estrutural ocorra nesse lapso.

44. Novamente há que reconhecer a indecidibilidade sobre o grau de liberdade (e não somente no que se refere à loucura ou à drogadição) do ser humano.

45 .Mesmo assim, no artigo "Efeito nocivo das drogas surpreende cientistas", publicado no Estado de São Paulo em 30/1/2000, pg. A-14, lê-se: "A atração por drogas é comum no reino animal. Muitas espécies abandonam os hábitos normais para se inebriarem.

Gatos domésticos adoram ficar ligados comendo erva gatária. Já se observou que elefantes em seu ambiente natural interrompem o que estão fazendo para se embriagar com frutas fermentadas. Há alguns tipos de pássaros que gostam de comer bagas que os deixam tão embrutecidos que eles não conseguem voar em linha reta". O que pensar disso, para além do caráter vago das referências?

Que a autora, Sally Squires, compartilha da tendência a antropomorfizar o comportamento animal. Exemplos desse tipo de fabulação, cuja tradição literária remonta a Esopo, não faltam; entre eles, a fidelidade dos cavalos marinhos, a memória dos elefantes, a safadeza dos macacos, o suicídio de baleias e cabritos monteses, o namoro dos pombos, a bravura do leão, o amor zeloso da loba pelos filhotes, etc. O último da série é que certas espécies não dispensam um barato.

46. A possibilidade não pode ser sumariamente descartada; Restak, como outros autores, já conjeturou acerca das bases genéticas da timidez e da extroversão.

47. Este texto foi escrito com base no quarto capítulo do livro Psicanálise e Neurociências, em elaboração. Os capítulos já escritos (quatro) encontram-se à disposição dos interessados na pasta de textos de apoio da matéria Psicanálise III, no xerox Symposium.