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BOLETIM CLÍNICO - número 8 - maio/2000

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

7. Antígona: A ética do feminino - Elcio Nogueira (1)

Objetivo:
O presente artigo tem como objetivo colocar a figura de Antígona, personagem da tragédia de Sófocles, como a figura ética do feminino, de forma a trazer ajuda para a interpretação psicoterapêutica de pacientes com questionamentos éticos e morais.

Antígona, a tragédia

Época da ação: Idade heróica da Grécia

Local: Tebas

Primeira apresentação: Atenas, 441 a. C. (data aproximada)

Personagens centrais: Antígona e Ismene, filhos de Édipo e Jocasta; Creonte, irmão de Jocasta e sucessor do trono de Tebas; Hêmon, filho de Creonte e Eurídice; Tirésias, adivinho; Eurídice, mulher de Creonte.

Para esclarecimento ao leitor, explicamos o significado de duas palavras importantes para entendermos a trajetória familiar de Antígona. As palavras são Hermatia e Genos. A respeito de hermatia, Junito de Souza Brandão diz que "...dos trágicos a Aristóteles, apesar da ampliação do campo semântico, também este sentido de errar o alvo é encontrado com o de errar, errar o caminho, perder-se, cometer uma falta..." (1991, 76).

Segundo o mesmo autor, "Quanto a Genos, pode o vocábulo ser traduzido, em termos de religião grega, por 'descendência família, grupo familiar', e definido como Personæ Sanguine Coniunctæ, quer dizer, pessoas ligadas por laços de sangue. Assim, qualquer falta, qualquer hermatia cometida por um genos ou outro tem que ser religiosa e obrigatoriamente vingada. Se a hermatia é cometida dentro do próprio genos, o parente mais próximo está socialmente obrigado a vingar seu Sanguine Coniunctus...". Ainda na mesma página: "... a essa idéia de direito do genos está indissoluvelmente ligada à crença na maldição familiar, a saber: qualquer hermatia cometida por um membro do genos reacai sobre o genos inteiro, isto é, sobre todos os parentes e seus descendentes 'em sagrado' ou 'em profano'" (id., p. 77).

A ascendência familiar e sagrada de Antígona

Tântalo, filho de Zeus e Plutó, reinava na Frígia ou Lídia, sobre o monte Sípilo. Rico e querido pelos deuses, já havia traído a confiança destes duas vezes. Em sua terceira hermatia, sacrificou seu próprio filho Pélops e ofereceu-o como iguaria aos deuses. Estes reconheceram o que estava sendo servido, recompuseram Pélops e lançaram Tântalo no tártaro.

Pélops, filho de Tântalo, casou-se com Hipodamia. Hipodamia só seria dada em casamento pelo seu pai, Enomaos, a quem o vencesse numa corrida de carros. Pélops, com o auxílio de Hipodamia, apaixonada por ele, e de Mirtillo, cocheiro de Enomaos, serrou o eixo do carro deste, que nos primeiros arranques dos cavalos, foi lançado para fora do carro e morto. Para silenciar Mirtillo, Pélops o matou. Porém, antes de morrer, Mirtillo amaldiçoou Pélops.

Laio, rei de Tebas, em sua juventude teve uma paixão louca por Crísipo, filho de Pélops. Pélops amaldiçoou Laio. O oráculo avisou Laio que ele seria morto pelo seu próprio filho. Laio teve um filho com Jocasta. Este foi entregue a um pastor de ovelhas, com os pés perfurados e amarrados. O pastor, compadecido, salvou sua vida e o entregou a outro pastor, que levava os rebanhos de Polibo, rei de Corinto. O menino era Édipo.

Já adulto, Édipo foi desrespeitado por um bêbado, que lhe diz que ele fora adotado. Édipo foi sozinho a Delfos, para consultar o oráculo de Apolo. Este nada revelou sobre sua ascendência, mas lhe disse que ele mataria seu pai e se casaria com sua mãe. Édipo, assustado, fugiu e não voltou mais a Corinto, acreditando que Polibo seria seu pai. Durante a fuga, encontrou um ancião e, numa disputa de passagem, matou-o, sem saber que era Laio, rei de Tebas e seu verdadeiro pai. Como prêmio, casa-se com Jocasta, esposa de Laio, sem saber que era sua mãe, e torna-se rei de Tebas.

Em termos de civilização, estas seriam as origens dos Atridas, no período heróico da Grécia micênica.

Poder-se-ia acrescentar a morte de Ulisses por Telégono, um parricídio, mas, aqui, o que nos interessa é a genos de Antígona.

Antígona é a última heroína da Trilogia Tebana de Sófocles. A Trilogia é composta por Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona.

O resultado das maldições acima ficou conhecido como "a maldição dos labdácidas", com Laio, Jocasta, Édipo, Eteócles, Polinice e Antígona..." (id., pg. 78).

O desenvolvimento de Antígona

Após a morte de Édipo em Colona, Antígona retorna do culto ao pai com sua irmã Ismene. É importante ressaltar o culto aos mortos na Grécia desse período. Encontra seus irmãos Eteócles e Polinices disputando a sucessão ao trono.

Ambos acabam entrando em acordo. Cada um ficaria um ano no poder, começando por Eteócles. Porém, após um ano, Eteócles se recusa a entregar o trono. Polinices se retira para Argos, casa-se com a filha do rei Ádrastos, o qual põe à sua disposição um exército para para invadir Tebas.

Após sangrenta batalha, Polinices e Eteócles morrem, um pela mão do outro. Com o trono vago, Creonte torna-se o novo rei. Seu primeiro decreto foi proibir o sepultamento de Polinices, por ele ter invadido a cidade, sob pena de morte para quem o fizesse, e sepultar Eteócles com honras de chefe de estado.

Antígona exige o sepultamento do irmão e o culto aos mortos; desafia Creonte enterrando o irmão e sendo enterrada viva como punição. Durante o desenrolar da peça, Hêmon, filho de Creonte, se apaixona por Antígona, Hêmon se suicida ao ver que Antígona não cede. O orgulhoso Creonte vê seu poder desafiado por uma jovem (e além de tudo, mulher!) e se desespera com o suicídio do filho.

Mais uma vez, é o levante dos jovens contra a velha tirania.

A Psicanálise e Antígona

É Jacques Lacan quem olha e analisa Antígona, fugindo assim de Freud e acrescentando elementos novos à psicanálise. Lacan faz a análise de Antígona no sétimo seminário, A Ética da Psicanálise. Ali, Lacan é taxativo: "O que há em Antígona? Há primeiramente Antígona" (1991, 303). "Antígona nos faz, com efeito, ver o ponto de vista que define o desejo" (id., 300). Neste seminário, Lacan prossegue com tato em seu caminho. Por exemplo: "A Pulsão de morte" (id., pg. 251), "A Função do Bem" (id, .pg. 266), " A Função do Belo" (id, pg. 281).

Lacan associa Antígona à pulsão de morte de Freud: "...Pois bem, sabemos que, para além dos diálogos, para além da Pátria, para além da família, dos envolvimentos moralizadores, é ela que nos fascina, em seu brilho insuportável, naquilo que ela tem e que nos faz refém, e ao mesmo tempo nos interdita, no sentido em que isso nos intimida, no que ela tem de desnorteante -essa vítima tão terrivelmente voluntária" (id., pg. 300).

Para Lacan, Freud chega ao princípio do inconsciente analítico em "Além do Pricípio do Prazer" (1922). Resumidamente, o texto freudiano diz que a descarga gerada na busca do prazer aumentaria o desprazer, o que levaria a uma busca maior de prazer para a eliminação do desprazer.

A resolução que Freud nos apresenta é a seguinte: Em um dado ponto, o inconsciente começaria a desejar a morte, como possibilidade de equilíbrio. Antígona, a "vítima tão terrivelmente vountária" traria, aí, o princípio do desejo de morte: a morte como fim da saga e da maldição dos labdácidas e sua redenção.

Lacan, no capítulo A função do Belo, diz: "... Quanto a isto, Freud foi de uma prudência singular. Sobre a natureza do que se manifesta como criação do Belo, o analista, segundo ele, nada tem a dizer" (1991, pg. 289).

O Belo, enquanto discurso do desejo, é intocável. O brilho de Antígona o próprio belo2. Ao tocar este ponto, o analista invade o terreno do Belo e possibilita a pulsão de morte. Em A Ética da Psicanálise, Lacan coloca Antígona como o desejo do analista em analisar, a qualquer custo. Esse caminho levaria à morte da própria Psicanálise.

Representada por Antígona, a própria Ética é questionada e redimensionada, servindo mesmo como advertência ao analista sobre a exacerbação do discurso analítico. Em Antígona, a questão ética é clara. E mais: como o próprio desejo, Antígona deseja somente a morte, seja a morte de uma época, de uma linhagem, seja a sua própria morte. Isso já é a subjetividade do inconsciente analítico.

Mas por que Antígona desejaria a própria morte? Que desejo inconsciente sua morte calaria?

O desejo incestuoso por Polinices? Seguindo Guyomard, Antígona, diante do túmulo de Polinices, lhe dirige estas palavras: "...Se tivesse sido mãe de filhos, ou se o esposo morto apodrecesse exposto, jamais enfrentaria eu tamanhas penas, tendo de opor-me a todos os concidadãos! Que leis me fazem pronunciar estas palavras? Fosse eu casada e meu esposo falecesse, bem poderia encontrar outro, e de outro, de outro esposo teria eu um filho se antes perdesse alguém, mas morta, morta minha mãe, morto meu pai, jamais outro irmão meu viria ao mundo. Obedeci a estas leis quando te honrei, mais que a ninguém..." (1996, pg. 30). Na mesma página: "...Seria impossível explicar melhor o lugar incestuoso de Polinices, duplo insubstituível, por ser, ao mesmo tempo, seu irmão e seu filho, e está justamente nisso o 'excesso' de Antígona" (ibid.).

Façamos uma pausa aqui, e tentemos ver Antígona, ou a pulsão de morte, ou o incesto, com um paciente.

Um paciente

O paciente em questão era um padre, que chamaremos de P. Nutria uma paixão homossexual secreta por um adolescente de sua paróquia.
Nas sessões que mantivemos, vários foram os relatos de auto-flagelação que seguiam à masturbação fantasiando relações com o rapaz, noite após noite. Segundo o paciente, o menino era belíssimo e intocável porque não se poderia mexer na obra de Deus.

Além do mais, sua condição de padre o impedia de concretizar esse amor proibido. Em uma determinada sessão, o sujeito foi inquirido sobre amores proibidos e o significado da homossexualidade. Sua resposta foi singular.

"São proibidos pois ferem a lei de Deus", trazendo o desejo como único motivo de vida. Ainda no meu caso, eu contaminaria minha comunidade, que para mim é a minha família".

Nossa estratégia era questionar o paciente sobre sua crença, sua culpa com a sexualidade, uma visão distorcida do conceito de família e suas funções como padre.

Sua última sessão foi absolutamente diferente. O paciente estava calmo; em sua gesticulação não hava nenhum sinal de culpa ou de ansiedade que tantas vezes apresentou. Perguntamo-lhe se havia algum motivo para uma mudança tão repentina. Seguiu-se o diálogo abaixo:

P.: -Resolvi meus desejos.

Analista: -Quais?

P.: -Cedi às tentações do demônio.

Analista: -Seja mais claro.

P.: -F. Passou mal, me chamou e fui ao seu quarto. Ele estava só de cuecas, me disse quase implorando que só se acalmaria se eu o acariciasse; que ele me amava.

Analista: -F. Sabe o que é amor?

P.: -Aos 15 anos todo homem sabe o que é o amor de um homem por outro homem: É tocar Deus.
Analista: -Mas este amor não contraria Deus?

P.: -Contraria porque o atinge no seu âmago, em sua beleza, sua plenitude.

Analista: -Como foi o amor de vocês?

P.: -Muitas carícias, beijos e felação. Com um grande gozo de F.

Analista: -E como você acha que Deus está hoje?

P.: -Perguntarei pessoalmente.

O analista interrompeu a sessão e encaminhou o paciente para um psiquiatra, suspeitando de um surto. Dois dias depois, chegou uma carta do superior do paciente dispensando nossos serviços como analista, pois P. havia sido transferido para o interior do país. Meses depois, por meio de uma paroquiana, soubemos que P. havia se suicidado.

Antígona: Uma visão, ou aproximação possível para pacientes homossexuais?

Ainda mal compreendida, a homossexualidade merece um estudo que extrapola as dimensões deste artigo. Inclusive porque nossa questão é Antígona e a Ética. Mas o caso em questão possui algumas semelhanças com a tragédia de Sófocles.

-Ética: Tal como Laio, que seqüestra Crísipo por uma louca paixão, P. rompe a ética.

-O incesto surge quando o padre -em latim Pater, pai- deseja seus filhos. Se em Sófocles é Édipo que deseja a mãe, aqui temos o inverso: o pai deseja o filho.

-O ritual sagrado: Antígona não quer quebrar a lei dos deuses, tal como o padre não quer romper as leis cristãs. Deseja, e só deseja enterrar o irmão morto. A importância do rito fúnebre na Grécia no período de 1500 a 400 a. C. pode ser comparada à importância da abstinência sexual entre os católicos praticantes: os mortos, se não forem cultuados, não serão entregues aos deuses e serão condenados a vagar. A abstinência sexual em um padre significa abrir mão dos prazeres carnais para se aproximar de Deus.

-O poder: O frágil menino F. seduz o poder representado pelo padre e o leva ao ato sexual. Da mesma forma, Antígona questiona o poder do rei Creonte, quebrando assim as ordens divinas ou o poder supremo de Deus.

-O oráculo: Este papel cabe ao analista, que desvenda ou dá pistas sobre o futuro do consulente ou cliente.

Enfim, a maior semelhança: a morte como apaziguamento dos desejos e restauração do equilíbrio.

Em nossa trajetória como psicoterapeuta, vários pacientes homossexuais com relações sexuais compulsivas relataram o desejo como uma forma de vida em morte, ou como a vítima terrivelmente voluntária de Lacan.

Enquanto desejassem, estes pacientes estariam vivos; e morreriam quando o ato acabasse, pois percebiam que o ato nunca era com o "alguém sonhado ou idealizado". Poderia vir daí a identificação de alguns homossexuais com personagens do mundo do espetáculo excessivamente glamourizados, aumentando inconscientemente a distância entre o objeto do desejo e o resultado da conquista. Poderia vir deste desejo a obsessão de alguns homossexuais pelos estereótipos do gênero "ricos e famosos", trazendo aí o conceito de estética, o qual nada mais é senão o belo inatingível de Lacan.

Para muitos destes pacientes, a morte física era uma resolução real. A redenção, ou o simbólico da autoflagelação diuturna solucionado, como em Antígona.

Segundo esses pacientes, o fim de cada ato sexual significava que o belo, o perfeito não havia sido tocado3.

E cada relação tinha que acontecer novamente, de maneira compulsiva, na tentativa de se tocar o belo, na ânsia de transgredir, ou atingir o ideal do eu e ter a morte como solução.

Questionar a ética, eis o que a relação sexual significava para alguns pacientes. Bem entendido, para estes pacientes, ser homossexual significava ser anormal. O questionamento ético é questionar o prório desejo.

Ao questionar a ética, tendo a morte como motivação inconsciente, para o paciente, restaurava-se o ethos familiar.

Mas ética tem um significado especial. Segundo o dicionário do MEC, significa "parte da filosofia que estuda os deveres do homem para com Deus e a Sociedade; deontologia; ciência da moral."

Antígona traz uma questão acima do incesto: a da correção da hermatia de seu geno. De Tântalo a Laio e Édipo, Antígona é a herdeira das hermatias de seus ancestrais.

Nos versos 1045 a 1050, Antígona deixa clara sua intenção religiosa de restauração de um erro de percurso.

Já perto de cumprir sua sentença e ser enterrada viva, diz o seguinte:

"Cidade de meus pais, solo de Tebas e deuses ancestrais de nossa raça! Levai-me agora, não hesitai mais! Vêde-me, ilustres próceres de Tebas - a última princesa que restara - as minhas penas e quem as impõe, apenas por meu culto à piedade".

Quaisquer dúvidas sobre a função religiosa e de restauração da ética de sua família e do povo de Tebas, podem ser esclarecidas em Édipo em Colona, no último diálogo entre Antígona e Teseu:

Antígona: -Queremos ver nós mesmas o sepulcro de nosso pai.

Teseu: -Mas isto é interdito!

Antígona: -Que estás dizendo, rei, senhor de Atenas?

Teseu: - O próprio Édipo deu-me a incumbência de não deixar qualquer mortal chegar às vizinhanças daquele lugar, e de impedir até com sua voz, alguém que pudesse perturbar a paz do túmulo sagrado onde ele jaz. Dessas promessas foram testemunhas nosso deus e o próprio Juramento, filho do grande Zeus, que ouve tudo.

Antígona: -Se é este seu desejo, que assim seja. Manda-nos logo a Tebas, nossa antiga cidade, para que, se possível, consigamos ambas deter a marcha desta carnificina funesta para nossos dois irmãos.

Teseu: -Vou tomar esta providência e todas que me cometem para vos servir e para dar satisfação ao morto recém partido; não descansarei enquanto não cumprir minhas promessas.

Corifeu: -Agora basta; não há mais motivos para insistir nessas lamentações. Tudo está decidido para sempre.

Priorizar o incesto em Antígona, como fez Guyomard, é abdicar da questão central do texto de Lacan.

A restauração da ética e da harmonia do povo é a incumbência de Antígona. E esse é o excesso que Lacan, ao nosso ver, percebe no personagem.

Sabemos bem que Lacan não era religioso, mas a questão é abordada por ele em um seminário em que se fala da ética do analista, ou seja, do desejo de analisar infinitamente.

De mais a mais, se seguirmos a psicanálise tradicional, a tese do incesto poderia ser superada por Antígona, sublimando, ou seja, transferindo seu amor incestuoso por seu tio Creonte casando-se com Hêmon, filho de Creonte e seu primo.

Se o desejo incestuoso transparece no diálogo citado por Guyomard, Antígona sabe que só a morte a purificaria de tal desejo, salvando ainda seu povo. Daí a citação acima.

Outra questão deixada de lado é a própria mudança no sistema de governo das cidades-estado da Grécia, como é colocado pela própria Antígona, ao qualificar-se como "a última princesa".

A subjetividade da pessoa é importante, mas cada subjetividade e cada desejo inconsciente têm de ser vistos separadamente, sob pena de perder-se o todo.

A negação pura e simples da religiosidade e dos deveres de estado em Antígona acaba reduzindo, mais uma vez, a psicanálise à subjetividade do desejo sexual.

Para nós, o excesso de Antígona e seu brilho, provém do fato de ela ser mulher.

Em uma sociedade absolutamente falocrática, onde a figura feminina transita entre os papéis de escrava e serviçal, é Antígona quem restaura o Estado e sua família.

Simbolicamente, o útero da grande mãe seca para não mais gerar herdeiros amaldiçoados.

O feminino revigora suas múltiplas funções e gêneros por meio de Antígona. De menina a mulher, Antígona mostra que o complexo de castração é mais masculino do que propriamente feminino. Em vários trechos da peça, Antígona é chamada de "a jovem".

Se os reis tiveram suas loucas paixões uns pelos outros e soberba excessiva, Antígona abre mão de qualquer paixão. O suicídio, tido erroneamente como atributo da mulher em paixões mal sucedidas, com Antígona torna-se destino de Hêmon.

Podemos concordar com Freud em que o incesto é um dos maiores tabus humanos, mas não podemos concordar com sua teoria de um Parricídio Primordial, de um texto seu de 1927:

"...Não cabe atribuir ao azar que três obras mestras da literatura universal tragam o mesmo tema: o parricídio. Tal é, com efeito o tema de Édipo de Sófocles, de Hamlet de Shakespeare e de Os Irmãos Karamazov. E nos três aparece também à plena luz o motivo do feito, a rivalidade sexual por uma mulher" (1981, pg. 3011).

O parricídio, ou a morte do pai pelo próprio filho, é o desejo incestuoso do menino pela própria mãe, tese que apóia a teoria do super-ego. Ou a punição pela realização do desejo. O filho mata o pai e sofre diversas punições, tal qual Édipo.

O super-ego seria formado pelo medo inconsciente da punição. A punição seria a castração do menino pelo pai. O "parricídio" seria uma fantasia inconsciente. O super-ego funciona como "mediador" inconsciente entre o ego e o id (satisfação plena do desejo, no caso, o desejo sexual).

A partir das punições, o super-ego assume as funções da moral e da ética sociais.

Voltando ao nosso paciente e a alguns homossexuais, o desejo por um parceiro do mesmo sexo já fere por si as normas morais da sociedade. Daí a pulsão de morte.

A colocação do parricídio em Freud é central, pois na sua visão da sexualidade, a realização satisfatória da fase edipiana se dá com parceiros heterossexuais.

Sem o parricídio ou a proto-fantasia, as normas sociais e éticas em Freud ficariam sem explicação, ou teriam como explicação a religiosidade, sentimento que Freud descarta ao longo de sua obra.

Freud era culto demais para não ter lido Édipo de forma clara. Édipo é vítima do "erro de percurso". Freud apreciava muito a cultura grega, para não saber das hermatias.

Então, o que fazer com o desejo de Laio por Crísipo? Seria pedir demais a Freud? É o desejo por sua mãe que faz Édipo matar seu pai ou é o aviso mediante uma metáfora, feita por um oráculo, que tira Édipo de seus pais adotivos? Édipo mata Laio sem saber que este é o rei de Tebas e seu pai. Assim, em Édipo, talvez a causa do parricídio não seja o desejo sexual por uma mulher.

O desejo é consciente ou inconsciente? A luta entre Édipo e Laio acontece pela disputa pelo poder de passagem, não por uma mulher...

A consciência ou não do desejo é a subjetividade da pessoa; é o que traz a Lacan a figura do Outro, ou do analista, que a partir da fala do paciente, lê seu inconsciente e a subjetividade de seus desejos.

Além disso, em Freud, a posição do feminino aparece como passiva do desejo do masculino. Antígona rompe essa situação. Subverte as posições e coloca o homem como frágil e submisso, sujeito aos próprios desejos da carne e do poder.

Mas, como mulher e soberana de si, Antígona embasa Freud e deseja a morte (pulsão de morte), não como fim de seus desejos libidinosos, mas como restauração dos "erros de percurso" e para que o Olimpo possa perdoar seus antepassados. É uma resposta possível.

Dessa forma, Além do Princípio do Prazer faz seu pleno sentido: traz a morte, não como punição ou cessação do desprazer, mas também como reconciliação com o Cosmos.

Talvez isso pareça estranho ou incorreto para a psicanálise mais ortodoxa, mas alguns de nossos pacientes, portadores de AIDS, no período de 1985 a 1990, encaravam a morte desta forma: da culpa à restauração da alma.

Conclusão
O presente artigo não esgota a análise de textos como Além do Princípio do Prazer ou Totem e Tabu e o Sétimo Seminário de Lacan, que são inesgotáveis - e nem seria este seu objetivo.

Mostramos que, quando nos deparamos com pacientes homossexuais, invariavelmente, tocamos em questões da Ética, da Moral e do Belo.

Muitas vezes, enquanto analista, nossa própria ética e moral e nossos valores de Belo ou do ideal do ego são questionados.

Antígona, enquanto obra, é uma possível ajuda.
Isso justamente por se tratar de uma mulher, em uma sociedade patriarcal e autoritária, que redimensiona valores éticos e morais e suspende a sexualidade. Dessa forma, ela dá à pessoa uma moralidade que não parte mais da libido, e sim do princípio cósmico.

Bibliografia:


BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. (1991) Petrópolis, Editora Vozes, vol I.

FREUD, Sigmund. Dostoievsky y el Parricídio. (1981a) Madri, Biblioteca Nueva Madrid, 4ª edição, vol. III. _____. Más Allá del Princípio del Placer. (1981b) Madri, Biblioteca Nueva Madrid, 4ª edição, vol. III.

_____. Totem y Tabu. (1981c) Madri, Biblioteca Nueva Madrid, 4ª edição, vol. III.

GUYOMARD, Patrick. O Gozo do Trágico. (1996). Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.

LACAN, Jacques. Seminário nº 7, A Ética da Psicanálise. (1991). Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.

NEUMANN, Erich. A grande Mãe (Um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente). (1995). São Paulo, Editora Cultrix.

SÓFOCLES. Trilogia Tebana. Tradução de Mario Gama Kury. (1997). Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.

VVAA. Dicionário da língua portuguesa. (1979) MEC-FENAME.

Notas:
(1) Psicoterapeuta, com ampla experiência com pacientes homossexuais.

(2) O Belo entendido como o ideal do eu, a imperfeição, o princípio.

(3) Ver nota sobre o Belo neste artigo e o conceito do eu ideal projetado no outro em Freud.