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BOLETIM CLÍNICO - número 10 - maio/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

3. Internet, Imaginário Coletivo e Religiosidade no Mundo Contemporâneo: Um Estudo Preliminar(1) - Daniela de Andrade Athuil Galvão de Souza(2)

Como expressão maior da chamada Revolução da Informação, a Internet está operando mudanças substanciais na vida individual e social das comunidades, integrando as pessoas sem limite de distância, tempo e espaço.

São novas formas de se fazer negócios, novas alternativas de conhecimento e de acesso às informações, novas possibilidades de entretenimento e de relacionamento. A Internet promete realizar quase tudo que humanamente possamos desejar em termos de consumo, cultura, lazer, informação, contato permanente com pessoas.

O interesse em desenvolver um estudo preliminar sobre as possíveis relações entre o fenômeno da Internet e a religiosidade, sob a perspectiva da Psicologia Analítica, surge a partir de duas motivações. A primeira se refere ao desejo de entender o avanço significativo da Internet na vida individual e social das comunidades; a segunda decorre de uma leitura metafórica e comparativa entre algumas características da Internet e a experiência religiosa, do ponto de vista da função psíquica. Unidade, totalidade, universalidade, eixo ordenador, central e organizador são alguns dos princípios presentes que parecem indicar um ponto de convergência entre os dois fenômenos citados.

Como movimento coletivo, o fenômeno Internet tem sido objeto de estudo em diversos campos da ciência. Na tentativa de compreendê-lo, muitos autores recorrem a determinados conceitos nas áreas da filosofia, antropologia e psicologia. Mas a verdade é que ainda são poucas as conclusões a respeito dessa nova forma de interação com o mundo e os seus desdobramentos psíquicos. No entanto, não resta dúvida de que a Internet veio para fazer parte da vida de todos nós.

Justifica-se, pois, o interesse do psicólogo em acompanhar e refletir sobre o modo como a evolução da tecnologia da informação se articulará com os diferentes aspectos da existência humana. Não se trata de procurar respostas ou verdades, mas de explorar possibilidades e tendências que irão configurar o cenário futuro.

Ao explorar as principais características do fenômeno da Internet e suas possíveis implicações para a vida do homem, sugeri algumas idéias preliminares a respeito do aspecto religioso que ela pode representar no imaginário coletivo, na medida em que foi possível reconhecer nesse movimento, através de uma leitura simbólica, um desejo de busca de algo maior e global, que visa reunir e integrar, num só lugar, informações, culturas e saberes.

Dessa forma, apresento ao longo do trabalho a idéia de que a Internet pode ser entendida como um canal de expressão das aspirações religiosas do homem no mundo moderno. Convido o leitor a explorar, com espírito de investigação e curiosidade, nas páginas que se seguem, esse novo campo fértil da existência humana, que tanto poderá nos dizer sobre nós mesmos e sobre os mistérios de nossas manifestações psíquicas profundas.

A SIMBOLOGIA DA INTERNET
P. Levy (1993), um dos autores escolhidos para o embasamento do presente trabalho, propõe um debate sobre a tecnologia e suas implicações e influências sobre a sociedade, afirmando que: a técnica, repetimos, encontra-se sempre intimamente misturada às formas de organização social, às religiões, às representações em geral (p.194).

Ao manifestar sua religiosidade, o homem também pode eleger objetos inanimados em torno dos quais cria autênticos rituais, segundo Mircea Eliade (1992). Nessa linha de raciocínio, entende-se que a Internet, sob alguns aspectos, poderia representar uma manifestação desse impulso humano, simbolizando a necessidade da busca do Deus interior, o Self, na expressão de Jung.

Essa busca é, para Jung (1999), uma tendência natural, inerente à psique e que sempre se manifestou em diferentes tempos e de diferentes formas. Para ele a religiosidade não é necessariamente manifesta na forma de um credo particular ou na adesão a uma igreja específica. Ele pensa a religião como uma forma de religar o consciente com certos fatores dinâmicos do inconsciente.

O desenvolvimento do arquétipo do Self, meta do processo de individuação, é o verdadeiro sentido da vida. É nessa experiência de significado que o homem, ao confrontar-se com os conteúdos do inconsciente, realiza o divino.

Comentando o processo de individuação, Nise da Silveira afirma: Todo ser tende a realizar o que existe nele, em germe, a crescer, a completar-se (1997, p.77). Há no homem, portanto, uma tendência à integração dos diversos elementos que potencialmente o compõe, processo que implica numa relação dinâmica entre consciente e inconsciente, e o estabelecimento de um novo centro psíquico, o Self. O resgate do religioso e do divino em nós é uma tarefa árdua, contínua e indispensável para não cairmos em desarmonia com aquilo que é de nossa própria natureza.

A CONFIGURAÇÃO DE UMA NOVA SOCIEDADE
Como uma grande memória universal que armazena e organiza dados, a Internet é um importante instrumento de acesso à informação. Como meio de comunicação também permite diferentes formas de interação com o mundo, refletindo assim a complexidade psíquica e social do mundo contemporâneo.

Lévy (1993) é um defensor da tecnologia enquanto difusora do mundo globalizado, um dos principais agentes de transformação da sociedade. No livro “As tecnologias da Inteligência” sustenta o fim da oposição homem / máquina e afirma que a tecnologia é uma dimensão a mais na qual se estabelecem conexões físicas do mundo humano com o universo.

Referindo-se ao fato da cibercultura mover-se em direção à globalização, Lévy (1993) acredita que os grandes debates planetários acontecem hoje na rede, a partir de iniciativa pessoais e não governamentais. Segundo ele, a evolução da informática é fundamental para qualquer tipo de debate democrático.

Contrapondo uma visão otimista do futuro da Internet, Ciro Marcondes Filho expõe, no livro “Cenários do novo mundo” (1998), uma ótica bastante crítica em relação à instalação da sociedade tecnológica em nosso cotidiano.

Para ele, essa democratização dos meios de comunicação pode estar atendendo a um outro interesse, movido pela disputa dos espaços na indústria de comunicação. Afirma que o crescimento das novas indústrias de natureza imaterial provoca um abandono das formas de vivência concreta e material. São os universos imaginários, constituídos não só de projeção mental, mas com uma dimensão onde se operam acontecimentos.

A compreensão dos diversos aspectos envolvidos na relação do homem com as novas tecnologias promove uma visão mais ampla e profunda das transformações ocorridas em nossas vidas. Da mesma forma, também podemos imaginar as perspectivas que se abrem para o estudo dos fenômenos psíquicos a partir das mudanças operadas concretamente na vida externa.

METÁFORAS DO INDIVÍDUO DIGITAL
Outra visão bastante interessante sobre o papel da Internet na vida do indivíduo e na sociedade é a de Stefik (1997), autor de “Internet Dreams, Archetypes, Miths and Metaphors”. Baseado na idéia de que a Internet pode tornar-se tudo aquilo que podemos imaginar, ele explora as diferentes possibilidades que ela traz mediante 4 metáforas: da Biblioteca Digital, da Correspondência Eletrônica, do Mercado Eletrônico e do Mundo Digital. Referindo-se ao conceito de arquétipo na Psicologia Junguiana, diz que cada uma dessas metáforas desperta em nós elementos internos da psique que refletem nossa experiência cultural coletiva. Elas correspondem também a 4 arquétipos que, segundo ele, vêm orientado e moldando nosso pensamento tecnológico e visão de mundo.

A metáfora da Biblioteca Digital, por exemplo, refere-se ao arquétipo do conservador/guardador de conhecimento dentro de nós. Pela capacidade de comunicação característica de nossa espécie, nós podemos não só conservar, mas também difundir até os mais antigos conhecimentos para futuras gerações.

Através da metáfora da Correspondência Eletrônica evocamos o arquétipo do comunicador dentro de nós o qual, entre outras coisas, nos mostra a necessidade que o homem tem de manter contato e trocar idéias com diferentes pessoas.

Todos temos dentro de nós, segundo Stefik, um negociador. Este arquétipo, correspondente à terceira metáfora - Mercado Eletrônico - que nos move para as mais diversas formas de trabalho.

A quarta metáfora, a do Mundo Digital, revela em nós o arquétipo do aventureiro interior, aquele que explora o mundo e que encontra novas possibilidade de existência.

Mais do que uma forma de interpretar a tecnologia, o autor utiliza tais metáforas para descrever o que somos e aquilo que coletivamente desejamos ser: Estes arquétipos, com as suas raízes profundas e ancestrais em muitas culturas, representam o que vemos nos outros, mas que também fazem parte de nós mesmos (Stefik, 1997, p.23).

Romanyshyn, autor de “Internet as Sympton and Dream” (1992) define a tecnologia como a representação da imaginação do ser humano no mundo e por isso ela é a magia do mundo. Na construção da tecnologia, diz ele, nós construímos a nós mesmos. E faz uma interessante analogia, ao comparar a Catedral Gótica, que expressava o corpo do mundo medieval, às grandes produções tecnológicas como a Internet, que representam o corpo social e psicológico da nossa época.

Campbell, ao falar das novas metáforas que incorporam o mundo moderno e tecnológico, cita alguns símbolos que estariam a serviço de velhas histórias, como, por exemplo, as armas, representando a “Senhora Morte”, e os aviões, representando a libertação do espírito da terra. Numa perspectiva mitológica, as máquinas serviriam como um instrumento no qual projetaríamos um mundo ideal e que revelariam algo de sagrado: é um milagre o que acontece naquela tela (1990, p.21).

INTERNET E RELIGIOSIDADE
Jung sempre reconheceu a importância dos aspectos culturais e históricos da psique, abrindo diferentes dimensões de análise sobre nossa existência para podermos reencontrar nossa alma. Para ele a alma pertence à cosmologia sagrada e dessa forma situa a mente dentro da natureza e do cosmos. O interior de cada uma de nós se torna então um lugar novo de experiência.

Escreve:
Visto que a religião constitui, sem dúvida alguma, uma das expressões mais antigas e universais da alma humana, subentende-se que todo tipo de psicologia que se ocupa da estrutura psicológica da personalidade humana deve pelo menos constatar que a religião, além de ser um fenômeno sociológico ou histórico, é também um assunto importante para grande número de indivíduos (Jung, 1999, p.7).

Preocupado em preservar seu compromisso com o método empírico, Jung (1999) se mantinha distante de qualquer indagação metafísica das religiões. Sua abordagem sobre a religião não se referia a qualquer credo ou a qualquer igreja em particular. Seu interesse fundamentalmente era entender a atitude religiosa, vista por ele como um fenômeno inerente à psique humana. O encontro com os conteúdos inconscientes é para Jung (1999) uma experiência primordial, uma experiência religiosa.

A partir da idéia de que os dinamismos arquetípicos se expressam nos mitos e ritos em diferentes épocas, podemos pensar que hoje o homem encontra novas maneiras de estabelecer comunicação com a esfera do divino, seja na forma de religião, seja de modo não diretamente relacionado a um culto ou dogma religioso. Nas palavras de Tardan – Masquelier: Esses conjuntos simbólicos perduram na modernidade até naqueles que não adotaram nenhuma forma de crença explícita, até no interior de sociedades tecnológicas e profanas (1994, p.147).

O interesse de Jung por todas as formas de espiritualidade através das quais o homem procura entrar em contato com o sagrado e com o que há de mais íntimo, que é o Si-mesmo, não significa uma defesa da religião enquanto instituição ou defesa de algum credo específico. Da mesma forma não se trata de uma descoberta mística ou da formulação de um novo dogma espiritual. Para Jung (1999) a religião é antes de tudo uma atitude inerente ao homem, uma dimensão da psique.

Jung adverte ainda que suas observações acerca das religiões e símbolos religiosos não significam uma demonstração da existência de Deus, mas da existência de uma imagem arquetípica de Deus.

Numa perspectiva simbólica a teoria junguiana considera o arquétipo do Self e as imagens de Deus indistinguíveis, sem no entanto negar a existência de Deus como ser em si mesmo ou pretender dizer que a noção do inconsciente o substitui.

INTERNET, EXPRESSÕES E SÍMBOLOS BÍBLICOS
Como um fenômeno genuíno, a religião conserva as imagens simbólicas que têm sua origem no inconsciente. Ao buscar modos de expressão, muitos objetos passam a ser reverenciados. A este respeito escreve Nise da Silveira:

O século XX conhece grandes ídolos: raça, sexo, Estado, partido, dinheiro, máquina……O automóvel, sem dúvida, é um ídolo: “Basta visitar o salão anual do automóvel para reconhecer ali uma manifestação religiosa profundamente ritualizada. O Culto do veículo sagrado tem seus fiéis e seus iniciados” (A. Greley) (Silveira, 1997, p.127).

Palco de inúmeras projeções humanas, a Internet também pode ser vista como um veículo em torno do qual o homem expressa sua religiosidade. Para reforçar esta idéia podemos estabelecer algumas analogias entre as imagens que a Internet nos oferece e a questão da religiosidade.

A semelhança de algumas expressões utilizadas no vocabulário da Internet, como, por exemplo, a expressão “Portal”, sugere algo de sagrado (vide expressões bíblicas como Reino de Deus). Outro exemplo seria a comparação entre o verbo conectar, usado constantemente na terminologia da Internet, e o significado da palavra religião usada por Jung no sentido de religio (re e ligare), tornar a ligar.

Lévy (1993) defende a idéia de que a tecnologia, como dimensão do humano, propicia a conexão física do nosso mundo com algo maior, com o universo. Parece-me assim, justificar-se a hipótese de que a Internet representa, na sua dimensão simbólica, um veículo através do qual o homem pode promover a conexão do Ego com o Self, atingindo assim a esfera divina de sua existência. Em outras palavras, conectamos o computador à Rede e isso pode ser lido metaforicamente como uma intenção de ligarmos a nossa consciência a algo maior.

A CONSAGRAÇÃO DO ESPAÇO VIRTUAL
A Internet estabelece um novo espaço, o ciberespaço, que possibilita novas formas de relações sociais. É um novo espaço ordenador, central, uma espécie de paraíso.

Cabe aqui retomar o conceito de Lévy (1996) sobre o Virtual. O senso comum nos leva a pensar que o Virtual é o oposto do Real. Para ele, entretanto, o real assemelha-se ao possível; em troca, o atual em nada se assemelha ao virtual: responde-lhe (Lévy, 1996, p.17).

Essa distinção é importante, pois o virtual não significa uma desrealização, mas uma problematização de uma solução já existente. O virtual é aquilo que existe em potência. No exemplo de Lévy: A árvore está virtualmente presente na semente (1996, p.16).

A atualização como resolução de uma problemática mais geral seria o movimento inverso da virtualização. Ao transformar essa atualidade inicial em um complexo problemático, a virtualização se torna uma das principais fontes de criação de realidade. Mesmo ocupando um espaço não designável e tendo como característica a desterritorialização, o virtual não perde a sua existência: A virtualização reinventa uma cultura nômade, não como volta ao paleolítico nem às antigas civilizações de pastores, mas fazendo surgir um meio de interações onde as relações se configuram com um mínimo de inércia (Lévy, 1996, p.20).

Na obra “O Sagrado e o Profano”, Mircea Eliade (1992) apresenta um estudo sobre a essência das religiões e busca explicar a atitude religiosa estabelecendo as polaridades profano x sagrado, homem religioso x homem não religioso. Segundo ele, o sagrado se manifesta de diversas formas, inclusive em objetos inanimados. A este fenômeno deu o nome de hierofania, que consiste no ato de manifestação do sagrado, que algo de sagrado se nos revela:

A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque revelam algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere(3) (Eliade, 1992, p.15).

Para o homem religioso toda a natureza pode revelar-se como sacralidade cósmica.

A manifestação do sagrado funda o mundo. Neste sentido a Criação do mundo torna-se o arquétipo de todo gesto criador humano. O homem não religioso que opta por uma vida profana recusa a sacralidade do mundo, diz Eliade. Admite porém que por mais que ele tente eliminar o comportamento religioso, o homem sempre conterá algo de sagrado. O homem religioso repete invariavelmente o ritual de criação do Universo. A construção do ciberespaço poderia, nesse sentido, ser comparada a esse momento cosmogônico na sociedade moderna, a busca de uma metáfora orientadora.

Eliade (1992) diz que a aspiração do homem religioso equivale ao seu desejo de não limitar-se às experiências meramente subjetivas, mas de se situar na realidade objetiva, onde o sagrado é atualizado pela experiência humana em todas as suas potencialidades, tornando-o portanto real. Não estaria a Internet proporcionando as condições para que o homem, consciente ou não dessa nova dimensão, possa viver a sacralidade de forma objetiva ?

A CONSAGRAÇÃO DO TEMPO VIRTUAL
A peculiar forma de vivência do tempo parece ser uma das dimensões mais importantes da revolução cibernética. Numa tentativa de nos colocar à frente do próprio tempo e de certa forma eternizá-lo, o homem cria soluções tecnológicas cujo grande desafio é fazer tudo acontecer de forma cada vez mais rápida, em tempo real.

Como parte desta revolução foi criado o tempo da Internet que representa um novo conceito global de tempo, idéia que partiu de Nicholas Negroponte, guru da Internet e director do Media Lab do MIT. A empresa suíça de relógios, Swatch, lançou a unidade de medida Swatch Beats(4) para substituir as horas e os minutos.

Essa concepção de tempo decretada pela era da informatização anuncia o que Lévy (1993) chamou de implosão cronológica, de um tempo pontual instaurado pelas redes de informática (p.115), mais atual e mais presente. Ao imprimir um novo ritmo de difusão das informações, o tempo da alta velocidade, da instantaneidade dos contatos e das comunicações, o homem reinterpreta a cronologia e relativiza os referenciais da temporalidade.

Assim como o tempo só existe após alguma coisa existir, a ausência dele também revela a possibilidade do retorno ao estágio anterior, ao Caos. Pode-se compreender por exemplo a histeria coletiva e a mobilização mundial em torno da ameaça catastrófica que vivemos no final do ano passado com a possibilidade de ocorrência do Bug do Milênio.

Da mesma forma, vencer o perigo também nos remete ao mito de origem, pois significa revivê-lo ou, como na história do Bug do Milênio reescrevê-lo: Toda vitória contra o atacante reitera a vitória exemplar do Deus contra o Dragão (quer dizer, contra o “Caos”) (Eliade, 1992, p.43).

Mas não é só o Bug do Milênio que representou esse medo de perder o eterno presente do acontecimento mítico e consequentemente a constante renovação do Cosmos. Os ataques dos hackers, os piratas invasores da Internet que desafiam qualquer serviço de inteligência no mundo, além de mostrar objetivamente as falhas de segurança na Rede, representam simbolicamente os inimigos dos Deuses, os demônios ou o Dragão primordial.

Receptor de projeções humanas, o espaço cibernético abarcará as diversas manifestações do homem, o que não significa que ele resolverá seus problemas, suas frustrações, carências e incertezas, mas que terá as condições para tornar-se consciente de sua pequenez e impotência, único caminho viável para uma possível transformação.

Ou seja, esse “novo” Universo apenas repetirá os eternos temas humanos. Filmes como 2001 - uma Odisséia no Espaço, Blade Runner e Matrix já retrataram o fenômeno. O homem, espantado, sempre estará encontrando seu velho reflexo, mesmo no meio mais avançado ou até mesmo nos confins da matéria e do Universo.

OS DESAFIOS DO ENCONTRO COM O SELF
Para Jung (1999), na experiência mítica religiosa o indivíduo se arrisca numa aventura interminável e deverá suportar o confronto com os conteúdos inconscientes para então perceber seu significado, o que pode ser doloroso.

O confronto com os perigos do inconsciente foram comparados por Jung (in Jaffé, 1995) à luta mítica com o dragão, uma experiência arquetípica primordial. Ainda sobre o confronto com o inconsciente, Jung (1998) revela em “Resposta a Jó”, interpretação do “Livro de Jó e do Apocalipse de São João”, a experiência do processo de individuação onde o “eu” e o Self se confrontam. Ao falar do aspecto duplo e paradoxal do Self e das imagens de Deus, que também incluem o mal, Jung faz um relato simbólico da experiência de encontro com o Si-mesmo (encontro entre Jó e Javé). Como diz Edinger (1995): O aparecimento do Si-mesmo inaugura uma espécie de “juízo final” (p.122).

Deus submete Jó a um drama. Privado de quase tudo que tinha na vida, cai em desespero. Mas é justamente a miséria e o desprendimento em relação a certos valores que irão torná-lo consciente de sua existência e assim permitir seu encontro com Deus.

Reconhecendo sua fragilidade diante do Self, o Ego torna-se individuado. Essa experiência arquetípica de encontro do Ego parcial com a totalidade equivale à descoberta de Deus. Sobre a experiência religiosa Jung afirma: A aventura espiritual do nosso tempo consiste na entrega da consciência humana ao indeterminado e indeterminável (1999, p.112).

Essa aventura implica em descobrir o sentido de nossa existência, restabelecer o contato entre o Ego e o Self. Há portanto a necessidade de encontrarmos novos símbolos que possam acolher as projeções do homem moderno e também mediar o dinamismo dessa experiência arquetípica.

Mais do que um instrumento de comunicação a Internet promove união e encontros de saberes diversos, formando algo maior que cada um de nós individualmente, um coletivo capaz de ir além de barreiras culturais e geográficas. Não seria esse o momento oportuno para criarmos uma nova consciência, buscarmos um novo sentido de existência? Ou deixaremos que a tecnologia enfim assuma seu caráter autônomo e independente de nós, como profetizam muitos autores?

No livro Cibercultura (1999), Pierre Lévy usa a expressão “dilúvio informacional” (termo inicialmente usado por Roy Ascott, um dos principais teóricos da era da informatização), numa alusão ao dilúvio bíblico. Diante do caos, Noé cria um mundo pequeno, um microcosmos, representado pela Arca que abriga aqueles que depois irão reconstruir o mundo. Mas o dilúvio informacional não terá um fim. Sua continuidade será uma condição: Temos que ensinar nossos filhos a nadar, a flutuar, talvez a navegar (p.15).

Por meio dessa metáfora ele explica que a cibercultura promoverá o surgimento de um novo universal, onde cada um de nós, com suas respectivas Arcas, representaremos pequenas totalidades abrigadas no universo oceânico de informações. Esse conjunto de pequenas totalidades, as comunidades pensantes, apontam para a construção de uma nova inteligência qualitativamente diferente da individual, a inteligência coletiva, na qual cada um contribui com seus conhecimentos e suas capacidades, fortalecendo-as e criando novas potências. Para Lévy (1998), o intelectual coletivo constrói um pensamento transpessoal, contínuo e que jamais se extingue. Essa construção é para ele uma maneira de atingir a divindade:

Abrimos a perspectiva de uma teologia transformada em antropologia. Continua tratando-se de aproximar o humano da divindade, mas desta vez, permitindo a coletivos humanos reais e tangíveis construir juntos um céu, céus, que só devem sua luz a pensamentos e criações daqui de baixo. O que foi teológico torna-se tecnológico (p.83).

O grande desafio torna-se então navegarmos em uma mesma direção: a da reconciliação entre as dimensões científicas e religiosas, trabalho empreendido por Jung durante toda sua vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Empreender novos estudos sobre esse território expressivo que é a Internet, de onde surge um novo modo de existir, será vital para que possamos nos conduzir a possíveis formas de pensar e discutir as transformações decorrentes dela, que estão ocorrendo dentro e fora de nós. No intuito de contribuir para a construção dessa compreensão apresento algumas considerações a respeito do tema proposto, resultantes do desenvolvimento e do trajeto percorrido ao longo do trabalho.

Analisando as possíveis repercussões da era da informática no devir da cultura contemporânea, Lévy afirma:

Uma coisa é certa: vivemos hoje em uma destas épocas limítrofes na qual toda a antiga ordem das representações e dos saberes oscila para dar lugar a imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação social ainda pouco estabilizados. Vivemos um destes raros momentos em que, a partir de uma nova configuração técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade é inventado (1993, p.17).

Em pouco tempo a Internet deu ao mundo a possibilidade de realizar uma grande revolução: a integração entre diversas partes geograficamente separadas, sem limite de distância, tempo e espaço, compartilhando informações e experiências de forma instantânea. Essa perspectiva de mudança foi rapidamente detectada pelo mercado financeiro, dando origem à “nova economia”. Mas a era da informação não se limita à esfera econômica. Ela está associada a aspectos mais profundos da vida humana.

A partir dela surge a possibilidade de se realizar uma poderosa conversação cósmica, onde seres humanos reais se relacionam e realizam trocas de diversas naturezas, sem que estejam fisicamente no mesmo lugar. Bastam alguns cliques e rapidamente, como num passe de mágica, incorporamos o espírito virtual e passamos a fazer parte de um todo universal. Parece ser apenas o começo de uma aventura humana.

O jornalista científico Tom Siegfried, autor do livro ”O Bit e o Pêndulo – A Nova Física da Informação”, mostra que os estudos da física envolvida no processamento da informação têm ajudado no deciframento de antigos mistérios do Universo.

A grande novidade trazida por essa nova disciplina é a idéia de que os componentes fundamentais da matéria não são os átomos e nem mesmo as partículas subatômicas, mas os “bits”, as unidades fundamentais de informação. Ao estabelecer uma interseção entre a gênese da vida e a computação, Siegfried (2000), diz que a nova Era da Informação representa a própria síntese da vida, e que o computador pode ser usado como uma metáfora do mundo.

A Internet tem potencialmente a capacidade de plantar, na consciência das novas gerações, a semente de uma cultura universal, onde poderá prevalecer o sentimento de que somos seres planetários, sem distinção de raças, fronteiras e nacionalidades. Em artigo divulgado na publicação “Le Monde de l`Educacion, de la Culture et de la Formation” o grande astrônomo Hubert Reeves, diretor de pesquisa no Centro Nacional da Pesquisa Científica da França, diz que antes de sermos franceses ou canadenses, negros ou brancos, homens ou mulheres, somos terrenos, solares, via-lactianos, filhos e filhas do Universo. Nossas raízes estão nas estrelas (1999, nº 272, p.33).

Uma análise comparativa do conceito de Jung sobre religiosidade e das palavras do astrônomo Hubert Reeves leva-nos à reflexão de que, graças ao seu poder de universalização, a Internet pode se apresentar como um poderoso símbolo capaz de receber a projeção da religiosidade arquetípica humana.

A Internet poderá representar um dos símbolos prenunciadores de uma nova era, que corresponderia ao que Campbell (1990) afirmou a respeito da necessidade do surgimento de um novo mito. Este mito deverá basear-se numa consciência planetária, numa imagem de totalidade, onde todas as coisas estarão interconectadas. Diz ele: o único mito que valerá a pena cogitar, no futuro imediato, é o que fala do planeta, não da cidade, não deste ou daquele povo, mas do planeta e de todas as pessoas que estão nele (1990, p.33).

No empenho de alcançar imaginariamente os limites do Universo, e na busca por respostas às suas angústias, o homem pode lançar-se a um novo desafio, projetando seus anseios no universo virtual da Internet.

Interessa ao psicólogo acompanhar, refletir e ajudar a mapear o modo como a evolução da tecnologia da informação se articulará com cada aspecto da nossa existência. O desafio de percorrer esse território cibernético, cada dia mais ocupado, implica na busca não de respostas ou verdades, mas de possibilidades e tendências que irão compor um cenário a partir do qual surgirão novas demandas.

Nós, como profissionais que buscam entender a psique, não podemos deixar de nos engajar profundamente com tudo que diga respeito à expressão humana, seja qual for a forma que assuma.

Continuação...