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BOLETIM CLÍNICO - número 11 - novembro/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


4. A possibilidade de Elaboração Psíquica das Perdas na Psicoterapia de Grupos para Idosos - Anamaria Schrepel de B. Mello(1) e Beatriz Castro de Abreu(2)

Sempre nos perguntamos o porquê do nosso interesse sobre as questões do envelhecimento. Quais seriam os motivos que nos impulsionam a desenvolver um trabalho direcionado a uma fase da vida, que muito bem sabemos, é marcada por perdas, pelo declínio físico e a proximidade da morte?

Com certeza, questões nossas pessoais estão em jogo; talvez um desejo de imortalidade, de onipotência de manutenção da beleza em oposição à decadência física e finalmente a ilusão de que estando em contato com essas situações, consigamos elaborar melhor o nosso próprio envelhecimento.

Paralelamente nos perguntamos: será que a velhice não traria ganhos? Acreditamos que sim. Sem dúvida, uma longa experiência de vida é o maior legado que o homem pode deixar para gerações futuras. Mesmo que esse legado seja questionado pelos mais jovens, ficará sempre um exemplo para aqueles que se interessarem e puderem aprender alguma coisa através dele.

Percebemos porém, pela nossa experiência, que as perdas acabam sendo mais marcantes na vida dos indivíduos desta faixa etária.

Uma das primeiras questões que se coloca quando pensamos em perda é a de tentar definir a que nos referimos quando falamos dela.

A perda não é somente a morte de pessoas que nos são queridas, mas todas as outras perdas que nos acompanham durante toda a nossa vida. Na juventude, as perdas são associadas com a evolução da vida, no sentido de que ao renunciarmos a uma etapa dela, teremos uma outra, cheia de esperanças e realizações. Com a proximidade da finitude, a substituição dos objetos amados fica mais difícil, uma vez que a vida vai nos limitando nas possibilidades de fazer novos investimentos, agravado pela diminuição do tempo hábil.

Apontamos os dizeres apropriados de Judith Viorst: "... perdemos, não só pela morte, mas também por abandonar e ser abandonado, por mudar e deixar coisas para trás e seguir nosso caminho. E nossas perdas incluem não apenas separações e partidas dos que amamos, mas também a perda consciente ou inconsciente de sonhos românticos, expectativas impossíveis, ilusões de liberdade e poder, ilusões de esperança - e a perda do nosso próprio eu jovem, o eu que se julgava para sempre imune às rugas, invulnerável e imortal". (VIORST, l998, p.13-14).

Examinando essas perdas percebemos que elas são inexoráveis e necessárias à vida, pois para nos desenvolvermos como seres humanos, precisamos perder, abandonar e desistir. Na velhice, percebemos que essas questões ficam mais exacerbadas, devido ao espaço de tempo que ainda resta de vida para o sujeito. Acrescido a isso tudo, aparece a decadência física, inevitável a todo homem que se mantém vivo por décadas e décadas. Essas renúncias, sem dúvida, geram ansiedade, tristeza e dor.

Essa decadência reverbera em cada um de nós e nos remete ao mais antigo texto desse assunto, quando o filósofo poeta egípcio Ptá-hotep, discorreu sobre o tema em 2.500 a.C.: "Como são difíceis e dolorosos os últimos dias de um velho! Fica mais fraco a cada dia; os olhos quase não vêem, os ouvidos ficam surdos; a força desfalece; o coração não conhece mais a paz; a boca silencia e não diz palavra. O poder da mente diminui e hoje não pode lembrar como foi ontem. Todos os ossos doem. Coisas que até pouco tempo eram feitas com prazer são dolorosas agora; e o paladar desaparece. A velhice é a pior desgraça que pode afligir o homem". (VIORST, 1988, p. 292).

Junto com as perdas e a decadência física, aparece o medo da morte. Mesmo que este medo não seja universal, é, sem dúvida, um sentimento que a maioria das pessoas não pode suportar.

Conscientemente ou inconscientemente a idéia da morte é afastada, só podendo ser percebida através da morte de um ente querido. A partir daí, ela passa a ser não mais um evento vivenciado em termos da perda de outra pessoa, mas um assunto pessoal, a própria morte, a própria mortalidade real e concreta. Como Freud, descreveu tão precisamente: "Nós fomos preparados para afirmar que a morte é a conseqüência necessária da vida... Na realidade, no entanto, fomos acostumados a comportarmo-nos como se fosse de outra forma. Apresentamos uma tendência inequívoca a colocar de lado a morte, a eliminá-la da vida. Tentamos abafá-la... A nossa própria morte é claro... No inconsciente todos estão convencidos de sua própria imortalidade". (FREUD, 1915, p.327).

Com a proximidade do envelhecimento, a realidade da própria morte impõe-se sobre nossa atenção e não pode mais ser colocada de lado tão prontamente.

Diante de tantas questões ansiogênicas, os indivíduos envelhecem de acordo com suas possibilidades. Não existe um único modo de viver plenamente a velhice, mas sim, vários modos de enfrentá-la.

Alguns velhos se tornam introspectivos, isolados, com poucas atividades; outros mantém uma vida ativa substituindo os antigos projetos por novos relacionamentos. Há os que puderam com a experiência da vida, amadurecer, admitir os limites impostos pela idade e fazer o quê ainda se pode a despeito deles.

Outros não conseguem sozinhos enfrentar as inúmeras adversidades que a vida apresenta e frente a situações angustiantes não perdem as esperanças e procuram uma ajuda, visando a melhoria da saúde tanto física como psicológica.

Essa ajuda psicológica foi muito questionada, uma vez que os próprios teóricos levantaram dúvidas se nessa faixa etária uma abordagem psicoterapêutica traria benefícios. Eles partiam do pressuposto que os indivíduos apresentariam uma estrutura psicológica mais rígida e portanto menos aberta a mudanças.

Do ponto de vista psicanalítico, o pai da psicanálise, Sigmund Freud, se mostrava pessimista quando, no ano de 1903, escreveu o seguinte: "...Também a faixa etária próxima dos cinqüenta anos cria condições desfavoráveis para a psicanálise. Nesse caso, já não é possível dominar a massa do material psíquico, o tempo exigido para a cura torna-se longo demais e a capacidade para desfazer processos psíquicos começa a enfraquecer". (FREUD, 1903, p.237).

Não devemos nos esquecer que a psicanálise surgiu no final do século XIX, numa época onde as pessoas não só viviam por menos tempo, como também, seguiam regras sociais mais rígidas das vigentes hoje em dia.

Freud e seus seguidores foram se mostrando cada vez menos pessimistas quanto ao atendimento psicanalítico de pessoas idosas, à medida que a psicanálise foi sendo aceita e mais pessoas recorriam a ela, reagindo positivamente ao tratamento.

Dentre os seguidores de Freud, o que se mostrou mais otimista quanto a essas questões sobre o envelhecimento foi Karl Abraham, quando em 1920, escreveu: "Podemos esperar que no começo da involução uma pessoa se sinta menos inclinada a privar-se de uma neurose que tenha sofrido durante quase toda a sua vida". E prossegue: "Durante minha prática psicanalítica tratei pessoas de mais de quarenta e até de cinqüenta anos de idade. No começo hesitaria em tomá-los em tratamento, mas várias vezes os próprios pacientes insistiam, já que tinham sido tratados por outros métodos sem resultado algum... Para minha surpresa, um numero considerável deles reagiu favoravelmente ante o tratamento. Conto essas curas dentre alguns de meus casos mais bem sucedidos". (ABRAHAM, 1993, p.69).

Em 1980, Hanna Segal, relata o caso da análise de um homem idoso com setenta e três anos e meio, onde os problemas da velhice puderam encontrar um equilíbrio mais saudável, "... capacitando-o a voltar a viver uma vida normal e conseguir, pela primeira vez em sua existência, um sentimento de estabilidade e maturidade". (SEGAL, 1980, p. 229). Concordamos com Melanie Klein (1960), quando diz que "equilíbrio não significa evitar conflitos; supõe a força para atravessar emoções penosas e poder lidar com elas". (KLEIN, 1991, p.308).

É com esse pensamento que ao nos depararmos com a oportunidade de desenvolver um trabalho psicoterapêutico direcionado a terceira fase da vida - assim é denominado pela Organização Mundial da Saúde os indivíduos com mais de sessenta anos - não hesitamos em aceitá-lo, por constituir-se em uma experiência tanto desafiadora como motivadora.

Esse conceito de idade é controvertido, uma vez que nos referimos à velhice cronológica, mas sabemos que, ao lado desta, existe também a velhice psicológica ou subjetiva. De acordo com os acontecimentos que ocorrem à volta tanto da vida privada, quanto da vida pública do indivíduo, são os que determinarão, como e quando este se colocará, nessa fase da vida.

RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA CLÍNICA

Passaremos a relatar a nossa experiência com um grupo de idosos, que procura a Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic" (PUC-SP), onde é oferecido atendimento psicológico à comunidade.

O atendimento foi feito:

· semanalmente
· com duração de 1,30hs.
· durante o ano de 1997 (início após o carnaval e encerramento nas vésperas de Natal)
· com 15 dias de férias em julho
· em co-terapia
· com 7 participantes
· com supervisão para os terapeutas de 2 hs. semanais.

Através desse relato, queremos mostrar que é possível que indivíduos acima de sessenta anos, sejam beneficiados com esse trabalho.

Na prática, por observarmos que há procura de pessoas com idade aproximada dos cinqüenta anos, ampliamos essa faixa etária, por apresentarem o mesmo tipo de demanda.

Para a formação do grupo foram marcadas entrevistas prévias com os idosos, onde foram ouvidas suas queixas, apresentadas as características do atendimento e a adesão dos mesmos.

Logo após o início dos encontros, deparamo-nos com a resistência de alguns participantes que, em alguns casos, levou-os a desistir desse trabalho.

Por resistência entendemos "tudo o que nos atos e palavras do analisando, durante o tratamento psicanalítico, se opõe ao acesso deste ao seu inconsciente" (LAPLANCHE e PONTALIS, 1992, p.458). "O fato de a consciência excluir propositalmente estes dados visa, é claro, a obstar-lhes os efeitos reais e, mais, o sofrimento da respectiva conscientização; mas o que é reprimido, se bem que o indivíduo não o sinta conscientemente, continua atuante". (FENICHEL, p.138).

Para ilustrar relataremos a fala de uma paciente:

"... eu não quero ficar no grupo porque eu fico deprimida ao escutar os problemas dos outros. Os meus eu procuro esquecer" (sic).

Com os participantes que ficaram, foram surgindo e ganhando importância assuntos referentes a perdas, como: limitações físicas, doenças, aposentadoria, a perda do papel ocupado no meio familiar, gerando sentimentos de inutilidade e desvalia. Diante de tudo isso o indivíduo se percebe impossibilitado de exercer alguns dos poucos projetos pessoais que ainda lhe restam.

"... eu reclamo da cabeça ter vinte anos e o corpo sessenta anos..." (sic).

"... a cabeça funciona e o corpo não ajuda..." (sic).

Percebemos nessa fala que as limitações físicas, que ocorrem em conseqüência do envelhecimento, provocam sofrimentos, que apesar de poderem ser minimizados pelos avanços da medicina, terão que ser enfrentados pelo fato de serem inexoráveis.

"... gosto dos meus filhos e da minha família, mas eles têm a sua própria vida e não precisam mais de mim..." (sic).

Essa fala mostra a perda do papel ocupado no meio familiar, demonstrando empobrecimento de vida e poucas perspectivas de novos investimentos.

"... eu pensei que estava preparada para a aposentadoria depois de 35 anos de trabalho, mas agora eu vejo que eu não estava..." (sic).

Indicando que a perda do trabalho é mais um fator desencadeante de ansiedade, uma vez que o indivíduo, além de se deparar com uma real diminuição do poder aquisitivo, também se depara com poucas oportunidades de utilização de seu novo tempo livre.

A princípio, essas falas eram isoladas, onde cada um estava mais voltado para o próprio problema.

À medida que o grupo foi se interagindo e seus participantes se identificando uns com os outros, passaram a participar mais ativamente, apontando novas alternativas entre si, de maneira a focalizar outras formas de repensar o mesmo problema.

Isso foi acontecendo entremeado por nossas colocações, que foram de simples apontamentos a interpretações, tendo como colaboração o uso da reminiscência trazida pelos participantes.

Por reminiscência, entendemos que "... não é uma simples concatenação de lembranças, nem a repetição cansativa de um mesmo relato... Sua função é realizar uma articulação entre a dimensão do passado e as circunstâncias do presente, outorgando um sentido de comando da realidade e continuidade do ser". (GOLDFARB, 1997, p.60-61).

Acreditamos que o exercício das reminiscências só pode promover elaboração psíquica, se houver uma escuta adequada, o que permitiria então, ao indivíduo, trazer o passado no presente, reatualizando e promovendo um processo de auto construção contínua.

De acordo com as possibilidades de cada um, alguns dos participantes puderam aproveitar melhor o atendimento psicoterapêutico em grupo, conseguindo a elaboração de conflitos, com a retomada de projetos pessoais.

O que mais nos chamou a atenção nesse grupo, foi o caso de uma paciente de 56 anos, que trataremos de M.

No início do atendimento, M. relatava-nos só poder vir acompanhada de seu marido ou de seu filho, pois temia não chegar a clínica e nem conseguir voltar para sua casa, por não confiar que tivesse condições de escolher o ônibus certo, e nem de descer no ponto específico.

Decorridos alguns meses, M. traz para o grupo a possibilidade de viajar para a Alemanha, onde sua filha reside e solicitava-lhe a sua presença para acompanhá-la no parto e cuidados de seu primeiro filho.

A princípio, as psicoterapeutas se perceberam apreensivas e duvidosas quanto a possibilidade de M. enfrentar essa jornada, uma vez que viajava sozinha, enfrentando aeroportos e conexões com utilização de línguas estrangeiras que não faziam parte do repertório dessa paciente.

O grupo se mostrou solicito às questões de M. se interessando, sendo receptivo e colaborando para que ela enfrentasse essa nova experiência.

Nesse ínterim, M. já vinha à clínica para os atendimentos sozinha, relatando que não precisava mais depender dos outros para trazê-la.

Depois de algumas sessões, onde esse assunto pode ser refletido, M. nos comunicou que seus documentos já estavam prontos e a passagem comprada. Disse deixar o grupo com pesar, mas naquele momento havia optado por visitar a filha.

Falou do seu desejo de retornar ao atendimento quando voltasse da viagem, mesmo sabendo que esse fato se daria no próximo ano e num grupo diferente.

Passados dois meses, recebemos um cartão postal endereçado ao grupo e às psicoterapeutas, onde M. dizia que estava passando bem, apesar das saudades.

Gostaríamos de informar que M. voltou a procurar a clínica e se encontrava em atendimento no grupo psicoterapêutico da Terceira Fase da Vida do ano de 1998. Com essa informação, esperamos ter mostrado que a paciente pode usufruir do atendimento, de forma a alavancar projetos que anteriormente eram sentidos como impossíveis por não confiar nos próprios recursos. Por outro lado, o fato de ter continuando esse trabalho, mostrou-nos sua preocupação em melhorar sua qualidade de vida, caminhando na tentativa de atingir um maior grau de maturidade.

Pensamos que o grupo psicoterapêutico proporciona um espaço para a escuta e a reflexão dos conflitos, possibilitando um equilíbrio entre os desejos do mundo interno e a realidade do mundo externo, de forma a promover a saúde mental.

Esperamos que esse trabalho tenha atingido seu objetivo de mostrar que indivíduos da terceira fase da vida possam ser beneficiados com grupos psicoterapêuticos.

Acreditamos que resultaria em benefício social se esse tipo de atendimento pudesse ser ampliado, no sentido de poder abranger uma parcela maior dessa faixa etária, que todos sabemos, está em franco crescimento.

BIBLIOGRAFIA

ABRAHAM, Karl in KRASSOIEVITCH, Miguel, Psicoterapia Geriátrica, México, Fondo de Cultura Econômica, 1993, p.69
FENICHEL, Otto, Teoria Psicanalítica das Neuroses, RJ, Livraria Atheneu Editora, p.138
FREUD, Sigmund, Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte, RJ, Imago, 1915, volume XIV, ESB, p.327
FREUD, Sigmund, O Método Psicanalítico, RJ, Imago, 1903, volume VII, ESB, p.237
GOLDFARB, Délia C., Corpo, Tempo e Envelhecimento, Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica, PUC-SP, 1997, p.60-61
KLEIN, Melanie, Inveja e Gratidão, RJ, Imago, 1991, p.308
LAPLANCHE E PONTALIS, Dicionário de Psicanálise, SP, Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1992, p.458
SEGAL, Hanna, A Obra de Hanna Segal, RJ, Imago, 1980, p.229
VIORST, Judith, Perdas Necessárias, São Paulo, Melhoramentos, 1988, p.13-14, 292

Notas:

(1) Psicóloga, com curso de: Aprimoramento Clínico Institucional em Psicoterapia em Grupo para a 3ª Fase da Vida na Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic" PUC-SP e curso Clínica Psicanalítica do Envelhecimento no Instituto Sedes Sapientiae. Estágio de Psicologia no CAISM - Centro Atendimento Integrado da Saúde Mental da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo no setor de idosos.

(2) Idem.