aprimoramento - topo banner - clínica psicológica - puc-sp

BOLETIM CLÍNICO - número 11 - novembro/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


5. Primeira Jornada do Movimento Transpessoal(1) - Andrée Samuel(2)

Aqui estamos após vários meses de trabalho árduo desde nossa escolha e decisão de realizar este evento. Nós do Centro de Psicossíntese de São Paulo e do Instituto Brasileiro de Transpessoal agradecemos muito a presença de todos os colegas, amigos e novos amigos aqui presentes. Desejamo-lhes as boas vindas para esta jornada , que antes de mais nada, se propõe como uma jornada interior.

Proponho que nos coloquemos numa atitude tal que possamos desenvolver a consciência do observador interno. Ele nos ensina a arte de estar no presente - nossa mente dificilmente está onde nós estamos. Ela vagueia pelo passado e pelo futuro, projetando o que deveríamos fazer e lamentando o que não fizemos. Tais cobranças minam nossa energia vital, levando-nos à doença e ao envelhecimento.

Gostaria, inicialmente, de lembrá-los que o tema desta nossa Jornada é "Novos tempos, Nova consciência - Arte, Psicologia e Espiritualidade - Expressões da consciência através dos tempos".

Isto significa que nos propomos a nos colocar dentro de uma perspectiva inclusiva e nos compreender como partes de um todo, todo este muito maior que as partes que o compõem, e que pede um nível de consciência que possa fluir da dimensão da personalidade para a dimensão do Eu Superior, e vice-versa.

O QUE É A PSICOSSÍNTESE?

Para iniciar, eu gostaria de rapidamente explicitar o que é a Psicossíntese?

Roberto Assagioli, médico e psiquiatra italiano (1888-1974), foi um discípulo de Freud e um contemporâneo de Jung. Participou de duas revoluções importantíssimas no universo da psicologia e da busca da profunda compreensão da dinâmica humana.

a. Foi o pioneiro da psicanálise na Itália, mas rapidamente viu suas limitações. A psicanálise não citava nem abrangia os mais elevados aspectos do homem - o domínio principal de criatividade, inspiração, entendimento espiritual e de valores mais elevados como amor, compaixão, alegria, sabedoria - nem reconhecia a procura existencial do homem de um significado: uma procura que Assagioli acreditava ser um anseio da natureza humana tão básico e orgânico quanto qualquer motivação instintiva ou biológica. Então, em 1910 Assagioli começou a formular uma teoria integral do homem abrangendo os fundamentos de Freud e ampliando a concepção de homem.

b. Em meados do século vinte uma nova abordagem de natureza humana veio à luz. É a chamada abordagem humanista e transpessoal, na qual Assagioli já trabalhava desde 1910. As duas abordagens afirmam que podemos fazer muito mais do que simplesmente "nos ajustar" ao que é geralmente considerado "normal", essa espécie de padrão de saúde mental "adequada" aceita socialmente. Os psicólogos humanistas e transpessoais acreditam que a psicologia tem a responsabilidade de ajudar as pessoas a se moverem para além do seu estado "normal" - isto é, condicionado. Estudando pessoas super saudáveis, chamadas de "self-actualizers" por Abraham Maslow, esses psicólogos visam descobrir o que torna as pessoas capazes de façanhas extraordinárias na arte, na ciência, nos esportes, nas lideranças.

O que eles têm descoberto, e isso talvez não seja mais uma novidade para muitos de nós aqui reunidos, é que a maioria das pessoas é capaz de pensar, de fazer (interna e externamente) muito mais do que tem feito.

Somos limitados principalmente pelas nossas crenças a nosso respeito, crenças essa adquiridas na infância e através da pressão social enquanto adultos. À medida que nos desidentificamos dessas crenças construímos e fortalecemos nossa auto-estima o que nos permite dar os passos para acessar nossos talentos e nossos dons inatos. Para fazê-lo, precisamos primeiro aceitar a possibilidade que esse potencial existe além daquilo que conhecemos agora a respeito de nós mesmos. Quando não acreditamos que uma coisa é possível, não desperdiçamos nosso tempo para tentar descobrí-la.

Numa de suas cartas, Freud disse: "Só estou interessado no porão do ser humano".

A Psicossíntese, porém, está interessada em todo o edifício. Nós procuramos construir um elevador que permitirá às pessoas um acesso a todos os níveis de sua personalidade. Além disso, um edifício que tenha só porão, é muito limitado. Nós queremos abrir os terraços onde se possa tomar um banho de sol ou olhar para as estrelas. Nossa preocupação é a síntese de todas as áreas da personalidade. Isso significa que a psicossíntese é integradora, global e inclusiva.

A Psicossíntese nasceu da necessidade de um homem, Roberto Assagioli, que queria compreender melhor os estágios e a dinâmica do desenvolvimento humano e de suas disfunções, assim como compreender a existência dos estágios mais elevados da consciência e sua contribuição no dia-a-dia.

Nasceu de sua insatisfação com as explicações existentes na época: suas observações de seus pacientes lhe demonstravam cada vez mais que os fenômenos "transcendentais" tinham a ver, muito de perto, com a natureza humana - o que não era aceito na época.

Mais pessoalmente, a psicossíntese nasceu de sua necessidade de ajudar no sofrimento que ele via nos seus pacientes e no mundo - nasceu de um profundo amor pela humanidade e de um desejo e uma vontade de ajudar a curar a pessoa e o planeta.

A Psicossíntese pode ser assim descrita:

a. um modelo teórico-prático para compreender o funcionamento da psique para harmonizar, integrar e sintetizar os vários aspectos da vida da pessoa;

b. uma disciplina ou campo que estuda o processo através do qual o ser humano amadurece, busca se tornar uma pessoa mais coerente e criativa e que gradualmente organiza sua vida a partir do Self genuíno;

c. um conjunto de princípios e práticas que facilitam e favorecem a liberação da energia do Self para o mundo, através da personalidade.

Cada descrição enfatiza um aspecto da Psicossíntese, mas todas apontam para uma suposição básica e central nessa orientação de desenvolvimento humano, que é: há em cada ser uma força motriz, um impulso, para a maturidade e a expressão criativa.

Esse impulso pode ser trazido à consciência: é nosso alicerce para a busca de liberdade, integridade, uma vida melhor, e para melhor desenvolver a qualidade do amor.

Existe em qualquer pessoa, independentemente de raça, cultura, classe social, nação e sua obstrução é a fonte de muitas doenças físicas, emocionais, mentais e sociais. Esse canal está obstruído em algum grau em nós, nas pessoas, mas através da observação, do reconhecimento dos obstáculos e do trabalho interior podemos desobstruí-lo.

Todo o trabalho em psicossíntese se baseia no esforço de dar chão a essa força motriz na direção da liberdade e da maturidade, de trabalhar naquilo que impede o fluxo da energia para afirmar e fortalecer a expressão do Self.

Segundo Dr. Assagioli, o propósito básico da psicossíntese é AJUDAR A LIBERAR A ENERGIA DO SELF. A tarefa, então, é verificar como o processo está bloqueado e como cooperar com ele para restabelecer o fluxo da energia.

Em psicossíntese o Self é o princípio organizador da vida. É visto, paradoxalmente, como aquele que guia o processo de desenvolvimento através dos vários estágios assim como quem somos, a maior parte do tempo.

É ao mesmo tempo, a experiência mais familiar e aquela que temos de desvelar para nós mesmos.

Esse processo de descoberta e de realização do Self é longo e inclui luz e sombra, experiência e vivência interna/externa, análise e síntese.

O Self guia o processo por meio de princípios que são ativos e interrelacionados e que, juntos, compreendem uma dinâmica coerente através da qual o desenvolvimento se dá. Apresentamos quatro desses princípios:

DESIDENTIFICAÇÃO: a consciência humana pode observar o seu conteúdo, dar um passo para trás e reconhecer com o que está se identificando.

"Somos dominados por tudo aquilo com o que nosso eu se identifica. Podemos dominar e controlar tudo aquilo de que nos desidentificamos."

Observamos este princípio quando de repente percebemos que temos uma perspectiva da questão, ou quando somos capazes de olhar por outro ângulo e nos comportamos de um modo diferente. Este pode se dar inconscientemente, mas é possível usar o princípio conscientemente e ter consciência e se liberar de algum aspecto da personalidade que domina nossa atitude ou comportamento.

SABEDORIA INTERIOR: em algum nível, o organismo sabe o que é melhor para ele, para seu crescimento e desenvolvimento. Este conhecimento, ou sabedoria, pode estar bloqueado ou encoberto. Mas sua presença torna possível ver o impedimento como temporário, não como absoluto e assim conceber o trabalho de desbloqueio. Também pode se dar espontaneamente nas pessoas, visto que se trata de um processo natural. Mas saber e trabalhar com este princípio de modo consciente ajuda mais.

VONTADE: fonte fundamental de nossa capacidade de focar a atenção em algo, na nossa meta, no nosso propósito, e que favorece concretizar nossa ação na direção escolhida.

Em muitas pessoas a vontade é aprisionada ou bloqueada e sua expressão é limitada mas sabemos que o princípio está sempre "a serviço" para trazer mais liberdade e responsabilidade na vida.

Novamente, a Psicossíntese torna explícita esta dinâmica natural como um aspecto do desenvolvimento e planeja meios através dos quais o princípio pode operar mais livremente e com mais eficiência.

UNIDADE: aponta para a realidade da interconexão de todos os aspectos de um sistema vivo.

Para o propósito de uma análise, é necessário diferenciar as partes de um sistema. Mas o contexto subjacente a qualquer sistema é a unidade; é uma mudança em qualquer um de seus aspectos; afeta todas as partes e, conseqüentemente, o todo.

Este princípio sustenta o desenvolvimento de um organismo ou de uma organização levando em conta suas diferenças, incluindo conflito ou doença no contexto de sua unidade inerente.

É então um princípio poderoso na cura e no crescimento.

PSICOSSÍNTESE DAS NAÇÕES

Dr. Assagioli tinha uma visão cósmica da vida. Ele se referia ao ser incluído no todo.

Vocês estão vendo aqui no palco a bandeira do Brasil assim como bandeiras de vários outros países. O que significam estas bandeiras, na Primeira Jornada do Movimento Transpessoal?

Por que Roberto Assagioli, que tinha uma visão cósmica da vida, propôs uma psicologia?

A Psicossíntese parte do individual - que é uma parte do todo - e se projeta para unidades cada vez mais amplas. Dentro dessa perspectiva, nós temos como passos, dentro do trabalho, a Psicossíntese pessoal, interpessoal, social, transpessoal e espiritual. Dr. Assagioli chega à Proposta de uma Psicossíntese das Nações.

Nos seus escritos, encontra-se essa citação de Sêneca, o filósofo romano, extraída das Cartas a Lucilo:

"Você me pergunta o que consegui? Me tornei o amigo de mim mesmo. Tal pessoa, tenha certeza, será amiga de todas as pessoas".

Talvez seja por isso, pensei, que o primeiro passo de Assagioli tenha sido uma proposta psicológica: para aumentar o número de pessoas que, uma vez amigas de si mesmas, sejam capazes de se tornar amigas de todos.

Porque falo de amizade, aqui, agora, neste início da 1a Jornada do Movimento Transpessoal? Quero na verdade me referir ao conceito de cooperação que se embasa na noção da amizade que é, no meu ponto de vista, um conjunto da comunicação, da compreensão e da relação direta.

Para reforçar e clarear o conceito da psicologia como fundamento disso tudo, temos ainda duas citações.

A primeira:

"Um dos prejuízos mais nefasto, que provem de uma falta de bom senso e de conhecimento psicológico, é o de acreditar que para agir bem em relação aos outros basta ter princípios morais, ideais elevados, boas intenções e esse sentimento afetivo pessoal que costumamos chamar de amor.

Pelo contrário, devemos tomar clara consciência que com todas essas coisas bonitas, cometemos - ontem e hoje - erros fenomenais: fomos e ainda somos os autores de uma gama incalculável de sofrimento humano que não é necessário. E isso em todos os aspectos da vida humana".

A segunda:

"Há a necessidade de uma nova psicologia, uma psicologia que pode ser e deveria ser ao mesmo tempo espiritual e científica".

É assim que Assagioli pensou a psicologia e uma psicologia por meio da qual aprenderíamos a fazer sínteses sucessivas. Desta forma, as pessoas tornando-se amigas de todos, seriam também capazes de produzir cientificamente sínteses para o bem comum.

Os dois atributos dessa nova psicologia precisam ser sublinhados e enfatizados "espiritual e científica".

Por ora, abordarei o aspecto "científico" mas não podemos esquecer nunca o outro aspecto: espiritual.

Transformar algo em ciência é, para Assagioli, tornar um processo e seus efeitos reproduzíveis e capazes de serem propostos aos outros. Isto significa possibilitar a cada um, a qualquer pessoa, não só às pessoas dotadas de uma personalidade original ou excepcional, produzir os mesmos efeitos.

É um grande dom, um grande presente que ele nos deixou, um presente que significa ao mesmo tempo grande oportunidade mas também grande responsabilidade. Ele mesmo se encarregou de levar esse presente para alguns países do mundo. Assim hoje, todos aqui reunidos, representamos uma rede viva de energia de síntese em ação, rede essa que pode servir não só à saúde individual mas também se colocar a serviço do bem comum.

As citações acima são muitas claras no que diz respeito às "boas intenções". Quero dizer que as boas intenções não garantem efeitos benéficos.

Assagioli continua se questionando:

"A que se devem tantos erros? E as dores que deles resultam? As causas podem se dividir em três grupos:

Ø Ignorância das próprias pulsões inconscientes.
Ø Incompreensão em relação aos outros.
Ø Ignorância geral das leis que regem as energias psíquicas e dos métodos para dirigi-las e utilisá-las.

O percurso da psicossíntese visa esses três fatores:

-O primeiro é substituído pela análise.

-O segundo pela desidentificação e pelo estudo das tipologias humanas.

-O terceiro pela descoberta, pelo exercício e uso da Vontade.

Trata-se de um processo de harmonização da pessoa cujo objetivo vai além do pessoal.

As técnicas da psicossíntese são como as peças de um "lego" com as quais podemos construir configurações sempre diferentes, se as usarmos de modo adequado.

Devemos nos lembrar que para Assagioli, a atenção em relação ao indivíduo, ao pequeno - para assim dizer - não significa nunca o esquecimento do grande e vice-versa.

Nos seus escritos, há o seguinte conceito: "Propor projetos muito evoluídos é um erro; é necessário, em primeiro lugar, um preparo em relação à diversidade".

Se a política trata no macro de projetos nacionais e internacionais, a psicossíntese pode trabalhar com garra e sem muito alarde (no silêncio) com as pessoas e grupos pequenos para essa educação em relação à diversidade; desta forma, implicitamente, ela está também trabalhando para o macro.

COMO PODEMOS IMAGINAR ESTE PROCESSO?

Se estamos todos aqui reunidos hoje, não será somente para trocar idéias, mas para de fato realizarmos um encontro, isto é, nos encontrar, nos olhar nos olhos, escutar os sons de nossas vozes, respirar o mesmo ar.

Não devemos nos encontrar unicamente para trocar técnicas de psicossíntese, de transpessoal, nem somente para descobrir ou compartilhar novos campos de aplicação da psicossíntese / transpessoal - por mais que estes aspectos em si sejam muito motivadores.

A psicossíntese é um meio, não uma finalidade.

Também deveremos nos encontrar aqui com a intenção consciente de aumentar o número de pessoas capazes de apreciar a diversidade.

Trabalhar o reconhecimento, a valorização e a apreciação da diversidade é um meio sábio de produzir a unidade graças ao princípio da polaridade que Assagioli nos convidou a estudar e a utilizar de várias formas.

A introdução da energia num dos pólos chama o outro, bem o sabemos. Logo, se queremos produzir diretamente a unidade, evocamos mais facilmente a diversidade.

Esta diversidade, chamada como uma reação, apresentar-se-á dificilmente de maneira harmoniosa. Se, em contrapartida, trabalhamos com sabedoria a diversidade, evocaremos implicitamente a unidade a qual, vinda do Self, é por natureza harmoniosa.

As relações diretas só podem se dar entre entidades vivas e que tenham consciência de si mesmas; esta consciência é fruto de uma análise bem feita.

Diz Dr. Assagioli: "Para fazer uma análise psicológica bem fundamentada e, de fato, científica das nações, é preciso levar em conta tanto seu aspecto físico como material, já que para as nações como para as pessoas, corpo e psique estão intimamente relacionados".

No que diz respeito às relações internacionais, penso que fazemos bem: basta verificar as salas de bate papo e as consultas na Internet, a participação em congressos internacionais, etc.

Porém, na minha opinião, chegou o momento de iniciar essa fase de análise, que tanto desejava Assagioli, para tornar mais densa e consistente a rede que já existe.

A psicologia conhece as dificuldades da comunicação transcultural. Penso ser importante refletirmos a respeito do fato seguinte: se a separatividade representa um obstáculo, o mesmo se dá com a uniformidade.

Infelizmente, a aceleração das comunicações nos conduz mais à uniformidade do que à valorização da diversidade, e a uniformidade enquanto negação intrínseca da diversidade gera mais agressividade do que paz.

"Aceitar a diversidade, é integrar-se com ela para criar, e não para anular", disse um colega no Congresso Internacional de Psicossíntese, em Bologna, no ano passado.

Assim também disse Lama Govinda, na citação que faz Assagioli no seu livro "O Ato da Vontade":

"A individualidade não é somente o oposto e o complemento do Universo, mas também o único ponto central por meio do qual podemos viver a experiência da universalidade. Suprimir a individualidade, negar seu valor ou sua importância, só pode gerar um estado de total indiferença e de dissolução."

Graças à nossa experiência em psicossíntese pessoal, podemos afirmar que o poder de ação de uma pessoa que se conhece bem, que vem fazendo o seu "conheça-te a ti mesma" terá uma qualidade numa oitava acima; assim como será também outro o poder de relação de uma pessoa que conhece e sabe apreciar os outros.

Assagioli sugere que essas pesquisas sejam realizadas por estudantes de vários países. Assim evitar-se-iam problemas resultantes da identificação com seu próprio país e da trabalhosa desidentificação do modo de pensar daqueles que pertencem a outros países.

O último pedido é que a psicossíntese de cada nação preceda a psicossíntese entre as nações e que a finalidade seja a síntese planetária.

No que se refere à Psicossíntese das Nações, Assagioli nos legou uma excelente contribuição em vários de seus escritos sobre o hebraismo

Assagioli atravessou duas guerras mundiais e, nessa medida, ele sublinha a importância do papel das pessoas que sentiram muito sofrimento e que viveram algumas experiências históricas.

Sem falarmos dos efeitos da guerra, cada nação assim como cada pessoa tem uma história, ou seja, ela possui um patrimônio de experiências que pode ser útil para o bem comum como energia específica. Vamos imaginar, por exemplo, uma menina que cresceu no seio de uma família patriarcal machista e que, de alguma forma, pode ter experienciado alguma ferida em relação à sua feminilidade. Esta pessoa pode passar o resto de sua vida queixando-se deste fato e se sentindo injustiçada, ruminando sua mágoa e seu ressentimento. Porém, ela pode também ajudar todo e qualquer outro ser humano, seja ele homem ou mulher, a descobrir o verdadeiro valor do princípio feminino.

Da mesma forma, cada nação tem a possibilidade de propiciar que todos possam se beneficiar com sua própria história.

Na maioria dos seus escritos Assagioli não trata do tema em questão. Suas anotações são como sementes, luzes, idéias que convidam à meditação, à reflexão e à ação.

Aqui temos algumas:

"Psicologia dos povos. Limitação de todos os povos isolados. Necessidade de reunir as qualidades de cada um."

"Psicologia dos povos. Insistiria sobre a qualidade, sobre os dons que cada povo ofereceu e oferece à humanidade, à sua função humana e sua missão espiritual. Essa compreensão mútua e apreciação gerarão simpatia, fraternidade, possibilidade de cooperação e integração, a verdadeira paz, SÓLIDA, mas também dinâmica, construtiva, CRIATIVA."

"A psicologia e missão dos povos. Seu dom particular à síntese humana. Utilidade, valor imediato para cada um de nós : saber onde recorrer para obter ou desenvolver essa qualidade particular ou esse aspecto (essa "nota") que nos falta e da qual precisamos.

Essa última afirmação me parece ter um valor fundamental. Cada ser humano tem dentro de si mesmo qualidades. Ver essas qualidades expressas e manifestadas favorece a assimilação e a expressão dessas mesmas qualidades pelas outras pessoas.

O mesmo se dá em relação às nações.

No "futuro presente" - já agora - precisamos saber onde nos encontrar para obter efeitos específicos favorecidos pela particularidade do lugar, e saber onde recorrer para obtermos essa contribuição da qualidade específica para nossos projetos. Na falta desse "encontro", dessa interdependência para a colaboração, penso que pulamos etapas fundamentais do processo de cooperação.

Um outro aspecto que eu gostaria de colocar em evidência é a questão levantada por Assagioli em relação ao estudo da natureza da "Alma nacional". Essa questão evoca o outro atributo da nova psicologia que desvendou Assagioli: o "espiritual".

Acredito na Alma das nações e essa crença se fortaleceu no decorrer das minhas viagens, dos meus encontros com pessoas e grupos de pessoas; muitas vezes, sem conhecer sua língua, me parece ouvir o seu "canto". Um canto que é também um chamado; um eco que, talvez, aquele que vive imerso naquela mesma nação não ouve mais ou ainda não ouve, tomado que se encontra pelo ritmo acelerado do cotidiano e desvinculado do conteúdo do idioma ao qual não se dá mais importância.

Penso que podemos nos ajudar mutuamente a ouvir esse canto e a captar sua mensagem.

Eu gostaria que essa Jornada cujo tema é "Novos Tempos, Nova Consciência - Arte, Psicologia e Espiritualidade - Expressões da Consciência através dos Tempos", nos levasse a uma reflexão e a uma prática de colaboração vertical nas várias dimensões da existência, nos seus vários níveis: pessoal, interpessoal, grupal, social, transpessoal e espiritual.

COMUNICAÇÃO

Um outro aspecto que eu gostaria de levantar é o seguinte:

"Comunicação. Introdução. Necessidade urgente IMEDIATA (DESDE JÁ). A cooperação mundial requer comunicações DIRETAS DE PRIMEIRA ORDEM!"

"Não pode haver cooperação construtiva sem verdadeira compreensão, e isto exige relações e comunicação diretas."

"Comunicação - Compreensão - Relações diretas - Cooperação - Criação - Renovação."

Essas são algumas das qualidades transpessoais e palavras evocativas que Dr. Assagioli sugere e convida a "respirar" para se inspirar e manifestar no cotidiano.

Essa seqüência de qualidades inclui a amizade evocada no início da minha apresentação com a citação de Sêneca, a amizade síntese dos três primeiros estágios da seqüência, e lembra também a frase de Teillard de Chardin que Assagioli citava nos cursos de meditação:.

"Obtida com simpatia, a união não limita. Ela exalta as possibilidades de nosso Ser".

Para a realização da seqüência completa, penso que é necessário re-valorizar o aspecto do som. Não estou dizendo que não é necessário levar em conta o conteúdo, digo simplesmente que é importante prestar atenção, estar MAIS atento ao som. O conteúdo provém do espírito; o som, da Alma. De fato, Assagioli nos fala da "nota" da Alma.

Na minha opinião - corroborada pela minha prática, vivência e exercício de vida - se conseguirmos nos comunicar incluindo a atenção ao som, poderemos nos compreender melhor ainda pois introduziremos um nível mais sutil e elevado de realidade na nossa comunicação.

Quando mostro os escritos de Assagioli (falar na sua língua teria sido o ideal) é essa tentativa que faço e é o meu modo de colaborar com outros aspectos da existência para nosso trabalho hoje.

Se minha hipótese for correta, dando mais atenção ao som, estaremos potencializando a seqüência acima da comunicação à renovação.

Talvez a confusão das línguas citada na Bíblia, tenha começado no momento onde a atenção prestada ao som e ao conteúdo perdeu o equilíbrio em função do conteúdo tão somente até que se esqueceu totalmente o valor do som. - Fica a pergunta!

Talvez a cooperação seja "melodia" e a paz "harmonia". Se nós nos exercitarmos à escuta do som, talvez essas qualidades sejam mais fáceis de serem atividades.

Assim como os terapeutas que, trabalhando com a personalidade de seus clientes, criam conexões com o Self, da mesma forma, nós - as pessoas em geral, independentemente de sua prática profissional e do lugar onde se encontrem (em casa, no trabalho, no grupo social, na sua cidade, no seu país ou fora dele) - dizia então, nós podemos tomar consciência e nos tornar responsáveis para levar essa atitude transpessoal no âmbito de todas as nossas relações: nos conectar - através do OUVIR A VOZ E O SOM do nosso Eu Superior - podemos estabelecer nossas relações dentro dessa visão bifocal: incluindo tanto a nossa personalidade quanto nosso Self (Eu Superior) convidando assim - simplesmente através de nossa atitude - convidando assim o outro a fazer o mesmo.

As personalidades reagem, podem sentir um certo desconforto e até se rechaçar. O Eu Superior, a Alma, não. O Eu Superior não julga, não critica. Ele aceita e inclui.

Nós, do Centro de Psicossíntese de São Paulo, trabalhamos muito dentro dessa perspectiva e dessa atitude pois o Centro é uma entidade viva, e buscamos dessa forma colaborar também com os níveis mais sutis da vida dessa entidade. Assim, convivemos diariamente com todos os obstáculos e dificuldades que essa tarefa impõe e temos plena consciência das dificuldades que essa visão e essa postura implicam nas nossas relações com tipologias diferentes.

Por outro lado e ao mesmo tempo, tenho plena consciência também que essa visão só pode ser concretizada pelos que sabem fazer sínteses e ouvir o som da diversidade, como fundamento da harmonia e não como entrave dela.

Por essa razão, me parece que nós que nos encontramos aqui, na 1a Jornada do Movimento Transpessoal, somos também chamados por essa percepção e por essa postura transpessoal - pelo menos alguns dentre nós aqui reunidos hoje.

Para concluir, convido todos os participantes dessa Jornada à "Cultura do querer" (Assagioli escreveu um livro precioso sobre o "Ato da Vontade" - colocando a Vontade como uma função reguladora do Eu - mas isso é uma outra conversa) pois para se compreender uns aos outros, é necessário primeiro querer se compreender.

Assagioli dizia que o primeiro estágio de qualquer ato de vontade era o de esclarecer o propósito. Ter um senso de propósito, com certeza, eleva nosso olhar para além das dificuldades imediatas e nos motiva para que caminhemos para diante.

"O correto meio de se comunicar: comunicar para se compreender. Logo, antes de mais nada, a VONTADE de se compreender. A vontade de chegar a um entendimento mútuo".

O convite para essa Jornada é, citando mais uma vez Dr. Roberto Assagioli:

"Criar uma oportunidade para cumprir a missão superior de conexão e de síntese, sensibilizando as elites de cada nação, as pessoas todas, e possibilitar e favorecer os encontros, as relações e as trocas".

Penso que trabalhando dentro dessa perspectiva, com essa atitude de abertura e de atenção plena, exercitando a nossa vontade por um mundo melhor poderemos, ao término desse nosso encontro, deixar uma marca que contribua para uma melhor colaboração entre as pessoas, os grupos, e as nações.

Muito agradecida pela sua atenção e desejo a todos nós que nos coloquemos como aprendizes para usufruir ao máximo as trocas preciosas que teremos a oportunidade de fazer nesse nosso encontro.

Notas:

(1) Palestra apresentada por Andrée Samuel na abertura da Jornada em 01/09/2001

(2) Psicóloga clínica, psicoterapeuta, presidente fundadora do Centro de Psicossíntese de São Paulo e coordenadora de cursos de Formação em Psicossíntese. É membro do Instituto de Psicossíntese, Firenze, Itália, Centro de Bolonha; é membro da AAP – Association for the Advancement of Psychosynthesis, USA, e do Institute of Noethic Sciences, Sausalito, CA, USA.