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BOLETIM CLÍNICO - número 11 - novembro/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


8. Função do Psicanalista na Psicoterapia Breve com Pais de Bebê Atípico - Maria Cecília Corrêa de Faria(1)

Nota: este artigo mantém o formato de uma comunicação oral no Congresso Internacional de Psicanálise e a Clínica de Bebês em junho de 2001, Curitiba, Paraná.

É minha intenção expor algumas reflexões sobre uma das funções do psicanalista, em todo e qualquer processo psicanalítico, apoiando-me numa experiência clínica de psicoterapia breve.

Convido-os conceber o psicanalista como o profissional capaz de ajudar o seu paciente na recuperação do bom objeto tido como perdido e, desse modo, favorecer a retomada do sentido de vida que ficou como que inalcançável por vicissitudes existenciais de naturezas quaisquer.

Permito-me relembrá-los que o processo de constituição do bom objeto, enquanto tal, efetua-se essencialmente na relação com o objeto exterior. A projeção sobre o objeto de partes boas do self, é a própria condição para o encontro do bom objeto: não basta que o seio seja oferecido, é necessário que seja aceito; a confiança no objeto deriva da "capacidade do lactente de investir de libido o primeiro objeto externo(2)" , pois toda experiência supõe uma aptidão do sujeito para vivê-la e uma contribuição externa; logo o que é introjetado, à partir da disposição inata do bebê para o encontro do seio ideal, é uma relação confiante, serena e satisfatória, ao mesmo tempo que objeto desta relação.

No relato clínico que irei apresentar, atendimento de um casal, o bom objeto e as possibilidades decorrentes de sua presença, isto é, a confiança nas próprias capacidades construtivas e reparadoras bem como na benevolência de seus objetos internos estava como que perdida, distante e inalcançável, pelo evento traumático do nascimento de um filho que tinha a Síndrome de Down; esses pais me procuraram para ajudá-los no percurso que iniciavam - a de pais de um filho atípico.

O processo psicoterapêutico durou cerca de dois anos com etapas diferentes, ainda que seu objetivo inicial: elaborar a ferida narcísica que portavam, enquanto pais fosse mantido em todo o seu decorrer; a ele foi acrescentado: favorecer as relações de fraternidade entre dois irmãos, pois havia um filho mais velho (sem cair no valo de um reducionismo simplificador, pois não é fácil ter um irmão atípico) bem como habilitar os pais para - não negando suas decepções - poderem propiciar a este filho especial condições favoráveis para um desenvolvimento emocional capaz de assegurar o melhor desempenho possível de seu aparelho para pensar pensamentos.

O que estou aqui definindo como psicoterapia breve é a psicoterapia realizada com objetivos determinados pela demanda, e ela implica numa disposição mais ativa de ajuda por parte do psicanalista (que renuncia então a questões epistemológicas, reestruturações profundas, ou a investigações mais acabadas(3) ): este casal me procura enquanto pais de um bebê atípico e não por outros motivos, o que não quer dizer, é óbvio, que estes não existam.

No meu proceder clínico, há muito tempo decidi, por questões que não cabem agora expor, que sessões com casal duram o tempo de uma sessão habitual: 50 minutos e acontecem semana sim, semana não, em dias fixos. Escolhi, nas psicoterapias breves - e eu conceituo todo e qualquer atendimento de casal como uma psicoterapia breve - também não determinar um tempo fixo de duração do processo, como é habitual para alguns terapeutas que trabalham nessa modalidade: é minha apreciação que a dinâmica, as estratégias e o manejo impressos ao processo é que determinam a modalidade, distinguindo-a assim das outras formas de psicoterapias de longo prazo.

Esses pais foram encaminhados a mim por um médico que havia me adiantado, no telefonema que fez perguntando se eu poderia ajudá-los, que tinha sido prevista uma cesárea com acoplamento de ligação de trompas para a mãe, mas que em cima da hora esta desistiu de ambos os procedimentos, preferindo aguardar o parto normal e que a criança, uma menina, nascera com a S D. - o que pode indicar uma apreensão inconsciente, por parte da mãe, das condições de fragilidade do seu bebê ainda não nascido.

Ora, conforme ficou evidente na dissertação de mestrado que cometi O ESTRANHO NO NINHO - um estudo da ferida narcísica dos pais de pessoas especiais deficientes mentais - os pais de crianças atípicas, que são aquelas que necessitam de recursos especiais para que a sua inserção na cultura se efetive, são portadores de uma ferida narcísica, de caráter irredutível, que os torna freqüentemente prisioneiros de um sentimento de solidão, pois seu bom objeto fica distanciado e estes pais aprisionados, assim como seus bizarros filhos, pela singularidade inesperada de seu herdeiro e peculiaridades da situação social, na qual se vêem inseridos abruptamente. O atendimento que vou relatar precede cronologicamente a feitura da dissertação e certamente iluminou a efetivação desta.

Convém relembrar aqui que freqüentemente a família nuclear atípica, i.e., aquela que conta entre seus membros componentes com "pessoa especial" se verá, quase sempre, acrescida de uma família extensiva: a dos profissionais que cuidam de seu filho, o que certamente contribuí para manter o afastamento do bom objeto e exije muito critério, seletividade e economia na proposição destes profissionais.

Interessante realçar que na primeira marcação de consulta, JÚLIA e JULIO trouxeram o bebê: uma garotinha morena clara, medianamente marcada pelos sinais sindrômicos típicos, muita bem arrumada, bastante atenta e interessada aos sons.

O meu primeiro ato foi estender os braços para receber o bebê que me tinha sido trazido e já com ele no colo e a ele me dirigindo, com pequenas frases tais como: como você é bonitinha, como o vermelho combina com você, como você presta atenção ao que estou falando, como a minha voz é novidade pra você... , foi que entramos todos na minha sala.

Talvez possamos a partir daqui refletir um pouco: ao retomar este atendimento para escrever estas notas verifico que Paula (era o nome do bebê) permaneceu para mim, para sempre, como sendo aquela para quem eu centralizaria a ajuda, ainda que jamais novamente vista ou por mim recebida; sua lembrança, a lembrança deste breve encontro, permeou todo atendimento de seus pais e as diferentes medidas que sugeri, indiquei, providenciei - o compromisso que assumi com Paula, com sua atenção, com seu direito de viver plenamente, é a marca desta psicoterapia breve com seus pais.

Pode-se objetar aqui que eu me contra - identifiquei com seus pais, apresentando-me e sentindo-me uma mãe mais capaz... Não vejo assim contratransferencialmente, mas certamente eu focalizei minha percepção na salvaguarda de uma família em risco de dissolver-se num caos emocional e na salvaguarda de Paula dos efeitos dele.

JULIA e JULIO me colocam, numa segunda sessão, ciente da sua mais urgente aflição: Paula já tem um mês e ninguém, fora seus pais e os médicos, têm conhecimento de que ela tem a S.D., sequer a própria irmã da mãe e os avós paternos sabem disso, assim como o irmão de Paula; os pais estão desnorteados, não sabendo o que fazer e muito menos o que dizer, mas intuem que a situação de esquiva, na qual estão refugiados, precisa terminar. Assim se apresenta na sua nudez, o sentimento de solidão, que Klein e Winnicott tão bem assinalam - os pais não podem nomear, e muito menos comunicar o que os atingiu, por perceberem-se apartados e diferentes do grupo social e familiar aos quais, até então, se julgavam pertencentes; colocam-se à margem e isolados.

Desenrola-se então o processo de desvelamento da ferida narcísica, e neste processo percebo logo que o pai se encontra profundamente dividido: ajustou um sorriso fixo no rosto e perdeu quase que totalmente o contato consigo mesmo; faço a indicação de uma psicoterapia individual de orientação psicanalítica para ele, encaminhando-o a uma terapeuta da minha confiança, sem prejuízo dos atendimentos de casal - estabeleço dessa forma uma discriminação entre as questões do casal (enquanto pais) e as de foro íntimo e pessoal, não compartilháveis e que merecem uma investigação mais profunda.

Continuamos os atendimentos, quando recebo a notícia de que Paula tem um grave distúrbio cardíaco, que precisa ganhar peso para ser operada e que isto está muito difícil - deve tomar uma série de remédios, que por sua vez diminuem seu apetite. Rapidamente verifico que a casa está se tornando uma enfermaria e o espaço para o lúdico cada vez mais estreitado; o filho mais velho está profundamente perturbado com as vicissitudes que assolam a família.

Indico uma amiga qualificada para Paula e a denominação é essa mesmo: amiga qualificada / acompanhante qualificada, pois sua presença tem por objetivo principal introduzir o lúdico na vida de Paula, reforçar as relações de fraternidade bem como, através de uma presença menos angustiada, assegurar o desenvolvimento da capacidade imaginativa das duas crianças.

Escolho para a delicada tarefa de trabalhar na casa da família uma recém formada em Psicologia, minha supervisionanda na Faculdade de Psicologia, de quem eu conhecia o bom senso, a palavra oportuna e o encantamento com crianças. Elaboramos um plano de intervenção, no qual uma vez por semana o irmão é especificamente contemplado - ele é envolvido em atividades com Paula no play-ground do prédio em que a família mora.

Paula evolui bem e rapidamente. A operação cardíaca é marcada. A tarefa da amiga qualificada é acrescida do planejamento feito por nós duas (a acompanhante qualificada e eu) do preparo de Paula para a cirurgia do coração, realizada com sucesso e com um mínimo de repercussões psíquicas negativas para Paula - ela estava preparada para a hospitalização e sabia dos cuidados que lhe seriam prestados.

Finalmente o casal está bem (na medida em que as limitações de cada um se expressam na relação conjugal), os filhos com saúde e a mãe trabalhando: deixou seu emprego de secretaria executiva, com seus horários estendidos e abriu uma confecção de malhas, que lhe permite organizar seu próprio horário de trabalho e pode assim usufruir, com qualidade, da presença dos filhos.

De comum acordo marcamos o final de nossos encontros, que passam, durante dois meses, a serem mensais.

Algum tempo depois a mãe me telefona e pede a indicação de uma terapeuta para ela. Dou.

Notas:

(1) Psicanalista, professora da Faculdade de Psicologia da PUC/SP, doutoranda do Núcleo de Psicanálise do Programa de Estudos pós graduados em Psicologia Clínica, Coordenadora do Projeto INCLUSÃO, e-mail cecíliafaria@uol.com.br

(2) Klein, M.: Inveja e Gratidão e Outros Trabalhos, 1946 – 1963,Imago ed.,1991, Rio, Br

(3) Knobel,M.: Psicoterapia Breve: São Paulo, EPU, 1986, vol.14, Coleção Temas Básicos em Psicologia .