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BOLETIM CLÍNICO - número 11 - novembro/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


10. Trabalhando com Crianças com Inabilidades Psicomotoras - Marina Muylaert Assumpção(1), Marisa Silva Lonskis(2) e Regina Célia Gorodscy(3)

Em Curso de Aprimoramento foram estudados uma criança com queixas de tremor e problemas na coordenação motora e um grupo de crianças com queixas de organização pessoal (espaço e tempo) com dificuldades em aprendizagem.

Os dois estudos, em curto prazo, evidenciaram a necessidade de além do trabalho dirigido às crianças, voltado à significação de sua auto imagem e à descoberta de possibilidades de ocupar seu espaço e de perceber o seu corpo, o psicólogo lidar também com as exigências que a família e a escola impõem sobre o desenvolvimento da criança, que ajudam a manter alterados o tônus, a organização temporo espacial e a auto-imagem das crianças.

Em nossa atuação na Clínica "Ana Maria Poppovic", temos recebido com freqüência a procura de pais com queixas referentes a inabilidades psicomotoras de crianças, muitas vezes associadas a preconcebidos sobre a base orgânica das mesmas, assim como sobre deficiência intelectual e a desajustamento escolar. As queixas, descrições acrescidas de valor negativo, são expressas pelos pais como um pedido de socorro. Em algumas situações são acompanhadas de demonstrações corporais, contenções físicas, ameaças e promessas de prêmios. As queixas parecem incomodar muito aos adultos, quando abrangem reclamações, cobranças e ameaças de expulsão escolar.

O estudo genético do movimento, segundo Ajuriaguerra (1971) segue uma linha evolutiva, desde os movimentos descoordenados, passando por coordenados com um fim, até a atividade gestual significativa. Em todas as fases, tônus e motilidade nunca estão isolados; a motilidade se enriquece por condicionamentos e inibições próprias ou estranhas ao sistema. Além disso, antes que o movimento, ato, gesto, atinja a perfeição, o mesmo se desenrola em um campo espacial e na relação com objetos e sobretudo com as outras pessoas. Modificações tônicas acompanham cada afeto e cada fato da consciência. Cada afeto produz uma variação tônica no conjunto da musculatura, a qual, passando de um músculo a outro, resulta em certa qualidade de tônus que o caracteriza.

Wallon (1980) mostra em suas obras a importância da pré-linguagem afetiva das emoções, das posturas e das mímicas a qual denomina "comunicação afetiva" ou "diálogo tônico". Reich e Zornànszky (1998) estudando crianças relatam que desde a mais tenra idade o corpo reage como um todo, com expansão ou contração, aos estímulos externos, sobretudo às relações interpessoais. O encouraçamento do corpo, a contração continuada da musculatura implica na repressão de sentimentos.

Nos estados de tensão, de encouraçamento, a criança pode mostrar limitações na respiração, hiperatividade, aumento ou diminuição de tônus com problemas de coordenação, distúrbios vegetativos, medo, etc. Se a criança puder expressar seus sentimentos o seu medo, ou sua raiva, ou mesmo o seu amor, ela relaxa e ocupa o seu espaço. Quando as crianças estão pouco investidas afetivamente, ou com medo, dor, têm o seu corpo retraído, tenso, Quando estão felizes ou raivosas seus corpos se expandem. A retração produz o encouraçamento muscular, que serve para abafar sentimentos.

Temos refletido, com base em nosso atendimento de crianças com inabilidades psicomotoras, cujo tônus alterado é a expressão de um modo de estar no mundo, muitas vezes ampliado pelas expectativas que a família e escola impõem sobre o desenvolvimento da criança.

C. J., garota de 10 anos, atendida individualmente na Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic", pela psicóloga Marina Muylaert, foi trazida pela mãe com as seguintes queixas: "o único problema de C. é um tremor na mão esquerda, justamente a que ela escreve, além de ser muito distraída na sala de aula". C. come demais durante a tarde. C. já fez tratamento foniátrico, pois sua fala estava prejudicada pelas adenóides. Tira notas boas em algumas matérias, na escola e não apresenta problemas cognitivos.

A mãe conta que engravidou de C. apesar de estar usando DIU, fato que a amedrontava em relação à perfeita formação do bebê. Teve pressão alta nos últimos dias de gravidez, mas C. nasceu no tempo certo. Com relação à família, C. tem uma irmã que é três anos mais velha do que ela. A mãe diz que as duas se relacionam bem. O pai atualmente está desempregado e tem ajudado o sogro em trabalhos particulares. A mãe trabalha como professora. A situação financeira familiar passa por um período de controle de gastos, tendo em vista o panorama do país. C. segundo a mãe, é uma criança muito alegre, que gosta de viajar e ficar com os seus avós e seus pais.

Foram realizadas sete sessões. De início, C. parecia ser uma menina bastante quietinha, mas foi aos poucos ficando a vontade e contando seus casos. Aos poucos, C. foi aliviando suas fantasias acerca do que estava errado com ela, usufruindo a presença da psicóloga e do espaço compartilhado. Em sua comunicação, é evidenciada a dinâmica existente entre ela e sua mãe; observa-se que sempre que ela conta algum fato sua mãe e corrige ou completa sua fala. Além disso, C. pôde recortar, colar, desenhar e pintar livremente, conversar e utilizar jogos com regras.

Observamos que o tremor de suas mãos e hipotonia que apresenta, em um primeiro momento, influência bastante a performance psicomotora de C. Esta prefere usar apenas o lápis grafite evitando colorir seus desenhos, não gosta dos mesmos em um primeiro momento. Para marcar os pontos de algum jogo ou executar alguma tarefa motora, necessita exercer um controle muito grande sobre o tremor a fim de conseguir finalizar a tarefa. Por outro lado, observamos, em seus desenhos livres, que esse tremor diminui em condições emocionais mais favoráveis, ou seja, quando foi percebendo-se acolhida, aceita, pela terapeuta, foi conseguindo "controlá-lo".

C. precisa de "apoios" para desenhar e escrever, como por exemplo, o uso excessivo da borracha e o emprego inadequado de sua força para segurar o lápis, fato que sugere, insegurança. Apresenta dominância lateral esquerda.

C. gosta de falar sobre si mesma e demonstra grande admiração por sua irmã mais velha, referindo-se a ela como uma menina "inteligente, que tem muitas amigas". Também a preocupa o desemprego do pai, pois "ficam sem dinheiro para fazer as coisas".

Além do atendimento individual, foram propostas as seguintes orientações para a família e escola: Aconselhou-se que C. deve fazer as suas lições de casa ou qualquer outra tarefa que exija o uso das mãos, em movimentos de coordenação motora fina, em locais apropriados e confortáveis que favoreçam um aperfeiçoamento de sua letra e uma colocação postural correta. No ambiente escolar, merece ser incentivada e elogiada em seus esforços e conquistas. Cabe também à escola uma orientação na correção postural em sala de aula. Deve-se ter sempre em mente o fato de que esse tremor não a impede de desenvolver-se intelectualmente como qualquer outra criança. Menos considerado o tremor, a letra pode manifestar-se em comunicação cada vez mais clara.

C. pode e deve saber os pensamentos de seus pais e professora a seu respeito. A criança, muitas vezes, precisa sentir-se capaz de decidir com os seus pais qual o caminho que deve seguir. A independência nas realizações e autonomia nas decisões encaminham o processo de desenvolvimento. A expressão de seus sentimentos deve ser estimulada.

O atendimento em grupo foi realizado pela psicóloga Marisa Silva Lonskis, na Escola Estadual de 1º Grau "César Marengo", no período de 31/08/00 a 23/11/00. Este trabalho foi proposto a partir de demanda da própria escola que não tinha recursos da comunidade próximos para encaminhar os alunos para um psicodiagnóstico.

Foi feito um contrato com a escola, representada pela diretoria e coordenadora pedagógica e com os pais, que após uma reunião de esclarecimento com a própria psicóloga forneceram uma autorização para início do psicodiagnóstico.

Inicialmente foram encaminhados pelos professores 26 alunos de primeira a quarta série, com faixa etária entre 7 a 12 anos. Algumas mães também solicitaram essa avaliação independente do encaminhamento da escola por que achavam que seus filhos tinham algum tipo de problema psicológico e queriam a avaliação de um profissional.

Os encontros ocorreram na própria escola com duração prevista de 50 minutos. Devido à ansiedade inicial apresentada pelos alunos esse tempo foi reduzido para 40 minutos por grupo, com cerca de cinco alunos por grupo.

Nesses encontros, com finalidade psicodiagnóstica, foram solicitados alguns desenhos que tinham como tema a escola, a família e alguns desenhos livres. Foram realizadas também dinâmicas corporais através de jogos e brincadeiras, que tinham o objetivo de propiciar uma percepção do corpo em relação ao movimento, ao espaço e os limites corporais.

Os encontros permitiram a observação da criança no espaço escolar e sua interação com o grupo. Foram realizadas também entrevistas com os pais para saber o histórico da criança e envolvê-los no processo. A maior parte das mães apresentou a mesma queixa das professoras que encaminharam os alunos: dificuldade de atenção, displicência, agressividade com os irmãos, não saber reconhecer limites, etc. Muitas diziam estar cansadas de punir com surras, castigos e ameaças. Parece que essas crianças eram consideradas "problema" na própria família, pois eram classificadas como: o "diferente" dos irmãos, o "rebelde", o "mal criado", aquele que "não tinha jeito".

Durante o primeiro mês, os alunos mostraram-se de maneira geral ansiosos e agressivos entre si. Era difícil estabelecer uma tarefa comum, pois eles não aceitavam, ficavam dispersos e agrediam-se verbal e fisicamente. Os desenhos solicitados eram, na sua maioria, feitos de forma displicente e rápida, pois o objetivo era sair rapidamente da tarefa. Muitos derrubavam coisa da sala; sugeriam que castigasse os mais "bagunceiros". Alguns falavam palavrões. Testavam atitudes e autoridade da psicóloga.

A psicóloga procurou agir com eles de forma calma, mas firme, conversando a respeito de seu comportamento, mostrando que não ignorava o que eles estavam fazendo. Muitas vezes era necessário contê-los fisicamente para que não se machucassem e gradualmente foram percebendo que não haveria nenhum tipo de punição "tradicional", que independente do comportamento, seriam tratados de forma efetuosa e aceitos como participantes do grupo.

A partir do segundo mês, com a desistência de alguns alunos, o grupo foi se tornando mais receptivo ao que era proposto e tendo mais demonstrações de afeto entre si e para com a psicóloga. Começaram a recriminar quem não participava da tarefa ou era agressivo; a sentir o espaço da escola mais como seu e um lugar onde podiam se expressar mais livremente. Demonstravam alegria quando vinham para as sessões.

Com o decorrer do trabalho, foram mostrando interesse pelos livros de estórias da sala e pelos jogos, além do desenho livre. Demonstravam gostar dos jogos corporais, principalmente os jogos de regras e os jogos que trabalhavam partes do corpo (pés, mãos, ombros, cabeça).

À medida que os encontros foram acontecendo houve aumento do respeito entre eles e as agressões diminuíram. Começaram a expressar mais o que queriam ou não, fazer.

A maior parte deles parecia gostar de escrever e desenhar na lousa, mostrar o que estavam aprendendo, escrever palavras novas, apagar o quadro negro, etc. Isto sinalizou que de alguma forma eles começavam a ter prazer na relação com a escola.

No final das sessões, algumas mães disseram que seus filhos haviam mudado de comportamento ficando mais calmos e receptivos. Muitos deles não receberam mais bilhetes do professor e passaram a se interessar mais pelas tarefas. Alguns, segundo as mães ficaram mais "maduros", o que pode indicar que houve um crescimento emocional nesse período.

Apenas três alunos foram encaminhados para atendimento psicológico, por problema emocional, como fator que interfere na aprendizagem.

A sugestão dada para escola foi a de que o acompanhamento desses alunos deveria ser feito em classes menores, pois são crianças que requerem bastante atenção do adulto em situação grupal. É importante que o tempo dado para as tarefas seja aumentado gradualmente e que a concentração seja trabalhada de forma gradual, bem como a inserção no contexto escolar e nas regras. Seria importante também o aluno ser ouvido nas dúvidas e dificuldades para não se desinteressar do que está sendo aprendido.

Mesmo em escola pública, onde os professores dão o máximo de si com poucos recursos, esses alunos, trabalhados em grupos menores, podem alcançar o que é esperado deles em termos de alfabetização. Foi sugerido para as mães, que envolvessem mais seus filhos nas tarefas diárias e que tivessem horário para o brincar e o estudar, o que organizaria sua rotina e a forma como agiriam em situações de aprendizado.

Concordamos com Violet Oaklander (1980, pág 73-74) que "a maioria das crianças consideradas necessitadas de ajuda, possuem uma coisa em comum: são incapazes de fazer bom uso de uma ou mais funções de contato ao se relacionarem com os adultos de suas vidas, com outras crianças ou com o ambiente em geral". De alguma maneira as crianças se protegem... algumas se protegem querendo aparecer; estas são as que recebem mais atenção, o que freqüentemente tende a reforçar o comportamento mais detestado pelos adultos... as crianças fazem o que podem para ir em frente, para sobreviver.

A investida das crianças é em direção ao crescimento. Em fase de ausência ou interrupção do funcionamento natural, elas adotam algum comportamento que aparece servir para fazê-las avançar. Elas poderão agir de modo agressivo, hostil, irado, hiperativo... É importante tentar construir o sentido do "eu" da criança para fortalecer as funções de contato e para renovar o seu próprio contato com seus sentimentos e uso do intelecto... Quando buscamos isso através dos desenhos e do trabalho corporal os comportamentos e sintomas mal dirigidos que ela utilizada para crescimento e expressão caem por terra sem que ela tenha plena consciência de que sua conduta está mudando.

Os dois trabalhos apresentados evidenciam a importância da consideração dos sintomas psicomotores, como diálogo tônico da criança em suas relações, tanto familiares como escolares. Permitem também a reflexão sobre a importância da existência do psicólogo em espaços escolares, como o profissional que entende estas relações, para em curto prazo, auxiliar a criança com queixas a conquistar o seu espaço na família e na escola.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Ajuriaguerra, J. (1971) Manuel de psychiatrie de L'enfant. Paris: Ed. Masson Reich, E.; Zornànszky, E. (1998) Energia Vital pela Bioenergética Suave. São Paulo: Summus Ed.

Oaklander, V.(1980) Descobrindo Crianças; São Paulo, Summus Ed Wallon, H. (1950) L'evolution psychologique de l'enfant; Paris: ArmandCollin.

Notas:

(1) Psicóloga do Curso de Aprimoramento Clínico em Abordagem Corporal da Clínica Psicológica “Ana Maria Poppovic” em 2000

(2) Psicóloga do Curso de Aprimoramento Clínico em Abordagem Corporal da Clínica Psicológica “Ana Maria Poppovic” em 2000

(3) Profa. Dra. Associada da PUC-SP