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BOLETIM CLÍNICO - número 11 - novembro/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


11. Resenha de Filme; "O Bicho de Sete Cabeças" Dirigido por Laís Bodansky - Efraim Rojas Boccalandro

Este filme é duro, chocante, cruel. Duro porque apresenta a realidade dos hospícios manicomiais com uma transparência que parece de documentário e não de filme; chocante porque os espectadores no mini cinema de um shopping ficaram sofrendo o impacto "da medicina manicomial", e cruel porque as cenas de violência desumana em nome de um tratamento psiquiátrico mostravam sem alegorias ou metáforas como o homem pode ser o lobo do homem.

A psiquiatria manicomial retratada no filme não está muito longe da situação nos hospícios de Paris, que Pinel tentou combater no fim do século XVIII na Sarpetriére. Pinel encontrou pessoas torturadas por serem loucas, presos a correntes de ferro como se ainda no século XVIII permanecesse a visão demoníaca para doença mental, que vinha da Idade Média.

Fiquei sabendo pelo artigo "A preparação de atores do filme 'Bicho de Sete Cabeças(1)" , que Sérgio Penna fez um trabalho de preparação dos atores para que eles pudessem assumir a loucura dos personagens, é importante dizer que ele e o ator do filme conseguiram assumir plenamente o comportamento psicótico dos personagens e a transformação do Neto (Rodrigo Santoro) de pessoa praticamente normal para um ser inseguro, vacilante, se desligando passo a passo da sua consciência e de sua vontade.

No filme se retratam os familiares que "cheios de boas intenções" ficam cúmplices do hospício e de suas cruéis torturas, só tirando o Neto do hospício quando já era tarde. A violência sádica dos enfermeiros, que usam todos os recursos do hospício para subjugar os pacientes, desde a antiga camisa de força, o quarto "forte" e o eletrochoque, terrível arma que apaga a memória imediata e que se aplicado com freqüência pode levar uma pessoa a deixar de ser gente, a perder a vontade e a consciência de si, a ser um "zumbi".

No dizer do prof. Doutor Emílio Mira y López os tratamentos de choque usados na década de 50: Cardiasol, como insulínico e eletrochoque, poderiam ser comparados a uma técnica de pegar os pacientes e ameaça jogá-los num precipício, se os pacientes melhoravam com o tratamento de choque seria pela consciência de que entre continuar a recebê-los e se adaptar ao hospital psiquiátrico, seria melhor optar pela segunda alternativa, não só por uma questão de medo, mas também para preservar a vida.

O título do filme "O Bicho de Sete Cabeças" me sugere a visão mítica da Hidra de Lerna. "(...) Lerna é o nome de um pântano e de uma cidade na região da Argólida no Peloponeso. Neste pântano vivia um hidra que era um animal com corpo de serpente e cinco, seis, sete ou cem cabeças (segundo as variantes do mito). Além disto a Hidra de Lerna possuía um hálito pestilento que destruía a colheita, os rebanhos e também os homens.

Neste trabalho Héracles deveria liquidar com a Hidra. Para tanto Héracles teve que pedir ajuda ao seu sobrinho Lolau, pois quando Héracles cortava uma das cabeças da Hidra nasciam duas no lugar. Então, Lolau colocou fogo em uma floresta vizinha e com os tições formados nos troncos das árvores ia cauterizando as cabeças que Héracles decepava de Hidra. Porém a cabeça central da Hidra era imortal e Héracles então colocou um enorme rochedo sobre a mesma.

Simbolicamente a Hidra de Lerna nos mostra a vaidade, os vícios que renascem em dose dupla assim como suas cabeças. O pântano no caso, são as águas estagnadas, imagem de um inconsciente não criativo, parado.

O sangue da Hidra, que era venenoso, podia contaminar a água do pântano, assim como os vícios que corrompem aqueles que com ele têm contato.(...)" (2)

A Hidra de sete cabeças pôde ser dominada por Héracles só de forma parcial, a cabeça central era imortal e por isso, tentando eliminá-la, Héracles a soterrou embaixo de um rochedo, essa cabeça imortal da Hidra foi assumida como metáfora da "psora fundamental" que não tem cura no ser humano. Um dos aspectos desta doença incurável é a loucura, loucura essa que se apodera do próprio Héracles e que continua assolando a humanidade até hoje. Como todos nós somos loucos em potencial, precisamos esconder os loucos, colocá-los em manicômios, longe de nós como se a loucura fosse contagiosa, ou será que ela é?

Notas:

(1) Revista de Psicologia – CRP-SP, ano 1, número 1 maio/agosto 2001, pg 58.

(2) BOCCALANDRO, Efraim Rojas. “A nova e a velha Mitologia”. Vetor editora psicopedagógica, São Paulo, 2000.