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12. A Queda Necessária - Jussara Valença de Moura(1)
RESUMO:
Para esta monografia faço um pequeno percurso pela teoria da sedução, como Freud a caracterizou, articulando-a com a teoria da sedução generalizada, proposta por Laplanche. Depois evoco as figuras parentais, se não determinantes, fundamentais na constituição do sujeito, facilitando ou não a entrada deste no mundo do simbólico e, portanto, no mundo da cultura. A seguir, como nosso psiquismo se assenta na linguagem, ilustrado no filme Paisagem na Neblina pelas cartas que a menina redige ao pai. Assim, uma pequena aproximação da psicanálise com um mito grego proposto no filme de Angelopoulos.
O FILME:
Duas crianças, uma menina de treze anos e um menino de seis, aproximadamente, fogem de casa com o intuito de encontrar o pai, sem saberem que a mãe o "inventou".
Estão sempre vagando num trem como clandestinos. É ali que a menina Voula escreve cartas ao pai, hesitando entre os acontecimentos e o desejo de encontrá-lo.
A história inicia e termina com a alusão ao Gênesis, a primeira narrativa da criação. A proposta de quem conta é minimizar o medo do outro irmão. E eles se alternam, conforme o medo vai migrando de um para o outro.
APRESENTAÇÃO:
Para este trabalho faço um recorte da minha monografia, apresentada como trabalho final do curso de especialização em Psicologia Clínica no COGEAE - PUC-SP, em 1.999. A opção por uma versão reduzida do trabalho justifica-se em razão do espaço oferecido neste Boletim Clínico ser menor do que o texto integral original. Assim, creio ser possível a redução do texto sem perder as vertentes teóricas da monografia.
A RESENHA:
"... sei que há léguas a nos separar.
tanto mar, tanto mar. / mas sei
também quanto é preciso pá,
navegar, navegar ..."
Chico Buarque
Creio que a questão relativa à constituição do sujeito, nunca faz-se tão facilmente.
O caminho apontado pela psicanálise percorre tempos sucessivos: o auto-erotismo, o narcisismo e as relações objetais. Mas para estabelecer relações objetais e inserir-se na cultura, há que se separar do primeiro objeto de amor, ou de desejo, a mãe.
Nossa origem familiar, embora não delimite tudo, é crucial para a constituição do psiquismo, e batiza nosso vínculo com a cultura, conectando-o com o simbólico. Este se inaugura quando há a inscrição simbólica através da figura paterna.
Assim, há que se afastar da mãe - do primeiro tempo do Édipo - quando a criança é o falo da mãe, no sentido de que, segundo Lacan, a criança a completa e dá-lhe uma dimensão de plenitude. A criança deve portanto afastar-se da mãe para se constituir junto à cultura, vinculando-se com os objetos que esta lhe propicia.
A produção literária clássica fala da condição humana, deste ser partido. Um cineasta grego - Angelopoulos - alimenta-se da cultura grega, clássica, e em Paisagem na Neblina fala sobre o mito de Orestes, de Ésquilo. No filme há também um protagonista com o nome de Orestes. Faço uma aproximação entre os personagens do mesmo nome, cada qual situado em um tempo, articulando-o com a história das crianças do próprio filme.
No filme há uma ruptura que possibilita a passagem além das fronteiras. As crianças saem de casa, rompendo com a díade materna, rumo a busca do terceiro : o pai. É curioso o interesse que Voula devota às cartas que escreve no trem para o pai. Podemos pensar nelas como uma mediação, algo que se inscreve entre a menina e o pai, entre os acontecimentos e o desejo de encontrá-lo. É a própria linguagem, análoga à mediação homem - mundo.
Assim, a questão referente às figuras parentais emergem no filme através das crianças, protagonistas, que saem da casa materna em busca do pai na Alemanha. Elas vinculam-se ao personagem Orestes, sendo que este nome refere-se à tragédia Orestíada, de Ésquilo. Nesta há questões importantes quanto às figuras parentais : o assassinato do pai, o matricídio, e a lei - um júri laico - que se inaugura para evitar a propagação de um ciclo de assassinatos.
O filme inicia-se com as crianças saindo à noite de uma estação de trem. Como a trilogia : é noite, e a Orestíada se inicia nas trevas, no palácio dos Átridas. E termina em plena Luz, no areópago de Atenas. Luz, facho, clarão, chama. Como no final do filme, em que a neblina vai clareando, clareando, cedendo lugar à uma imagem nítida. É este o teatro de Ésquilo : a luta desesperada entre a agonia e o terror, entre as trevas e a luz. E mais precisamente, o conflito entre o matriarcado e o patriarcado, em que o júri sentencia o empate, e onde Orestes é absolvido pelo voto de Atena.
E assim na errância, própria do herói trágico, as crianças enganosamente buscam saber do seu destino. Rumo à realização de uma fantasia criada por um discurso materno. Simbiose que necessita ser desfeita para que as crianças lancem sua libido no mundo e rastreem o seu desejo percorrendo uma travessia que lhes é própria. Ainda que atrás da neblina tenha, ou não, uma árvore.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
" Esta história nunca acaba..." foi o que Alexander disse à Voula, no início do filme, quando a mãe interrompe a "história da criação" contada pela irmã. Ele sempre a ouvia, antes de dormir, para apaziguar o seu medo.
Mas as crianças continuam a sua história, quando saem de casa à procura de um pai incerto. Percorrem um caminho desconhecido, mas trilhado por elas próprias.
Ao final do filme, quando encontram-se sós, diante de uma árvore, metáfora do pai, é o menino quem, agora sem medo, diz à irmã:
"no princípio eram as trevas... e depois fez-se a luz"
BIBLIOGRAFIA:
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Notas:
(1) Aprimoranda do Projeto Espaço Palavra, na Clínica Psicológica “Ana Maria Poppovic”. – 2.001