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BOLETIM CLÍNICO - número 11 - novembro/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


5. Considerações acerca de memória compartilhada e de momento presente - Emílio Celso de Oliveira

Adereços, Endereços*
Ary dos Santos

Para-me um tempo por dentro
Passa-me um tempo por fora

O tempo que foi constante
no meu contratempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.
Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora.

Na reflexão que faz a respeito da memória no texto Memória, Esquecimento, Silêncio, Michael Pollak tanto indica ao historiador ou pesquisador memorialista uma metodologia de trabalho para interpretação da memória individual enquanto elemento de ação do sujeito na construção da memória compartilhada**, quanto discute o caráter problemático da imbricação entre memória individual e compartilhada. Além disso, ele assinala que a emergência dessas memórias depende muito da conjuntura favorável ou desfavorável do momento presente.

Nesses dois pontos pretendo situar minhas considerações: como seria uma abordagem metodológica que permitisse uma investigação mais acurada dos processos e atores que intervém no trabalho de constituição e formalização das memórias? E como o momento presente contribui para dar um colorido ao passado?

Comecemos pela primeira questão. Ela pode ser entendida pensando na metodologia indiciária pollakiana e então é oportuno falar em construção da memória através da perspectiva construtivista, segundo a qual:

"não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se tornam coisas, como e por quem eles são solidificados e dotado de duração e estabilidade. Aplicada à memória coletiva, essa abordagem irá se interessar portanto pelos processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias." (Pollak: 1989, 4)

Ora, a opção por essa perspectiva de análise implica tacitamente empregar um conjunto de decisões metodológicas (Pollak: 1989, 4-5) alicerçado:

a) no recurso à história oral, como instrumento para dar voz às memórias individuais;

b) no estabelecimento de empatia com os grupos dominados, periféricos ou minoritários, de forma a aflorar as memórias subterrâneas ou marginalizadas;

c) na escolha do objeto de estudo memorialístico de preferência quando existe conflito e competição entre memórias concorrentes, ou seja, situação de memória em disputa.

No entanto, compreender o surgimento das memórias subterrâneas requer estudar os componentes de constituição da memória compartilhada, cujas funções são manter a coesão e coerência interna e delimitar e proteger as fronteiras daquilo que foi afetiva e consistentemente construído e dividido pela experiência de um grupo social. As formas de configuração dessa memória compartilhada podem ser entendidas através dos componentes que alimentam o trabalho de enquadramento descritos por Pollak.

Um primeiro componente, consiste na reinterpretação, reelaboração, ressignificação do material fornecido pela história, que adquire especial significado dependendo do colorido da experiência do momento presente.

Um segundo, refere-se à forma como as organizações sociais valem-se do material fornecido pela história e reinterpretam seu passado, elaborando a imagem pela qual desejam ser lembradas.

Um terceiro, a se considerar, é o papel reservado aos lugares de memória, pontos de referência de um trabalho do enquadramento que faz parte de um processo sofisticado de seleção para perpetuação dos ícones, índices, símbolos, rastros culturais ou históricos dos grupos sociais significados.

Um último componente é a propaganda oficial, uma ferramenta indispensável a qualquer trabalho de enquadramento da memória. Na sociedade do século XXI, essa propaganda define os contornos da força da mídia com seu poder de educar e deseducar, de informar e desinformar, de opinar e desopinar, de formar e de deformar, enfim de projetar aquilo que deve ser lembrado, esquecido, silenciado ou destruído no momento presente às gerações futuras.

Nessa direção, passemos então para a discussão da segunda questão. Estamos indubitavelmente diante da noção de momento presente, esse espaço indeterminado e incerto do tempo entre o passado e o futuro, um problema epistemológico a ser considerado tanto pelo historiador quanto pelo pesquisador memorialista. Le Goff nos dá a dimensão disso, assinalando que:

"Santo Agostinho exprimiu, com profundidade, o sistema de três visões temporais ao dizer que só vivemos no presente, mas este presente tem várias dimensões, "o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes, o presente das coisas futuras." (Le Goff: 1996, p. 205)

Arendt sugere que a compreensão do significado do momento presente pode ser desvelada na medida em que o homem se reconciliar com o que lhe é mais caro, a atividade de pensamento:

"Apenas na medida em que pensa, isto é, em que é atemporal (...), o homem na plena realidade de seu ser concreto vive nessa lacuna temporal entre o passado e o futuro. Suspeito que essa lacuna temporal não seja um fenômeno moderno, e talvez nem mesmo um dado histórico, e sim coeva da existência do homem sobre a terra. (...) Este pequeno espaço intemporal no âmago mesmo do tempo, ao contrário do mundo e da cultura em que nascemos, não pode ser herdado e recebido do passado, mas apenas indicado; cada nova geração, e na verdade cada novo ser humano, inserindo-se entre um passado infinito e um futuro infinito, deve descobri-lo e, laboriosamente, pavimentá-lo de novo." (1972, 39-40)

Posto isso, o caráter problemático da imbricação memória individual e compartilhada pode ser traduzido na questão de como identificar as conjunturas favoráveis ou desfavoráveis à manifestação das memórias marginalizadas. No processo de clivagem desencadeado pelo afloramento dessas memórias, percebe-se antes de tudo as forças instáveis do momento presente trazendo de volta as questões, as tensões, as feridas abertas, as contradições não resolvidas no passado, pois:

"conforme as circunstâncias, ocorre a emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto. Sobretudo a lembrança de guerras ou de grandes convulsões internas remete sempre ao presente, deformando e reinterpretando o passado. Assim também, há uma permanente interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e o transmitido." (Pollak: 1989, 8-9)

É no continuum indefinido e bruxuleante entre as forças componentes passado e futuro que se imiscui o momento presente, em que a construção do humano concretiza-se como resultante dessas componentes, em que adquire dimensão especial a constituição da memória vivida, seja ela individual - para a qual concorrem aspectos psicológicos na apreensão das experiências pessoais - seja compartilhada - para a qual convergem aspectos específicos dos movimentos sociais relativos a um trabalho de enquadramento.

Assim, como objeto da história, passado e momento presente se interpenetram inextricavelmente. A esse respeito, Le Goff apresenta um ponto de vista singular:

"A aceleração da história tornou insustentável a definição oficial da História Contemporânea. É necessário fazer nascer uma verdadeira história contemporânea, uma história do presente que pressupõe que não haja apenas história do passado, que acabe "uma história que assenta um corte nítido do presente e do passado" e que se recusa a "demissão perante o conhecimento do presente no preciso momento em que este muda de natureza e se enriquece com os elementos de que a ciência se mune para conhecer o passado" [Nora] (Le Goff: 1996, p. 225).

Em termos de memória, o momento presente, elo de ligação para a interação entre o vivido e aprendido, constitui-se em lugar privilegiado em que se potencializa e se realiza o sujeito da experiência:

"O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a o-posição (nossa maneira de opormos), nem a im-posição (nossa maneira de impormos), nem a pro-posição (nossa maneira de propormos), mas a ex-posição, nossa maneira de ex-pormos, como tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ex-põe. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre." (Larrosa: 2001, 7)

É no momento presente que podemos identificar não só a resistência diante de algumas experiências que assaltam a sociedade, como também a assimilação de tragédias, num esforço individual ou coletivo de compreensão e de busca de significado para a experiência.

Um exemplo de resistência de uma sociedade no momento presente pode ser identificado pela reação de grupos organizados (ou nem tanto) à situação econômica da Argentina, através de "panelaço", vigílias ou saques aos supermercados, que culminou na demissão do ministro da economia Domingo Cavallo e, posteriormente, na renúncia do presidente Fernando de La Rua em pleno estado de sítio, experiência compartilhada que ficará na memória de cada cidadão argentino, sem dúvida contribuindo talvez para fortalecimento da democracia argentina e reconstrução da economia em outras bases.

Na assimilação de inesperadas tragédias podemos perceber a importância do momento presente na configuração da memória. Os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 levaram cada cidadão americano a buscar um novo significado do luto, numa condição em que na maioria dos casos inexistia o corpo de seu ente querido. Em situações normais, o homem procura se reconfortar na força psicológica do ritual dos funerais, para encontrar a cura de traumas e a energia necessária à retomada das atividades cotidianas. Soares (2001, 14) denomina esse processo como closure:

"Essa é uma daquelas palavras difíceis de traduzir. Tem algo em comum com "fechar". Porém, "closure" também se aplica a pedaços de um processo psicológico, além do processo inteiro. Não é, ainda, um conceito científico e, certamente, os seus símbolos têm muito de cultural. (...) "Closure" se refere à parte de um processo que se inicia com um trauma um acidente, uma doença grave, um estupro, a morte de alguém querido. "Closure" encerra uma parte desse processo e permite o início da cura, da superação do trauma e, com tempo, do reinício da vida. "Closure" não evita a dor, mas permite a cicatrização. Ela se atinge com o auxílio de atos simbólicos, de profunda significação psicológica; por meio da aceitação da realidade, ela permite olhar no rosto a tristeza, a certeza do fim. Em muitos países, "closure" se realiza por meio do enterro e de outros rituais."

Trata-se portanto de uma das mais viscerais experiências humanas que tem implicações diretas na constituição da memória individual ou compartilhada, em especial nas sociedades impregnadas pela cultura ocidental: a apreensão simbólica do luto, a (in)compreensão de sua significação e o esforço metabólico e psicológico de retomada da vida.

Assim, se, de um lado, podemos aprender muito com a assimilação das tragédias, de outro, é animador perceber que as pessoas ou os grupos, procuram oferecer no exercício da liberdade resistência às injustiças geradas pelos conflitos sociais.

Aqui convergimos para a escola, em especial a escola pública, insensível ainda diante do aforismo de René Char: Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento (Arendt: 1972, 28). Muito se fala na dificuldade dos atores envolvidos na escola pública - corpo docente e discente e equipes técnicas - em dar conta de princípios básicos de convivência, cumprir regras estabelecidas em grupo. Fala-se ainda no significado da escola pública, com sua carga de responsabilidade enquanto espaço de inclusão escolar.

Tais falas apontam apenas para sintomas das dificuldades do trabalho docente nesse início de século, tempo tão árido como a visão surrealista de Dali. Na minha ótica, as causas básicas parecem ser a dificuldade no estabelecimento de laços afetivos e a miopia dos educadores em perceber a herança que têm em mãos, ou seja, o conhecimento e a cultura.

Na entrega essencial e necessária para constituição de uma memória que possa ser compartilhada, de nada podem valer afetividade, conhecimento e cultura se não houver a disponibilidade para transformá-los em saber de experiência:

"um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso também o saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria." (Larrosa: 2001, 10)

Viver o saber da experiência significa se aproximar, se envolver, enfim, interagir com a cultura, de forma a retomar, para reescrever, o testamento, em novas bases, e, sobretudo, parafraseando o poeta, perceber o ritmo do tempo que fica por dentro, mesmo que seja fugidio o tempo por fora.

BIBLIOGRAFIA:

ARENDT, Hanna. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972. LAROSSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Conferência proferida no Primeiro Seminário Internacional de Educação de Campinas, em 15 de julho de 2001. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1990. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos, Rio, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. SOARES, Gláucio Ary Dillon. O enterro da dor e o reinício da vida. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 out. 2001, Caderno Mais, p. 14-15. SOUZA, Maria Cecília Cortez Christiano de. Escola e Memória. Bragança Paulista: Ed. IFAN-CDPH, 2000.

**Utilizo neste texto a expressão memória compartilhada, como sugere a profª. Maria Cecília Cortez Christiano de Souza, reelaboração mais adequada de memória coletiva, na acepção de Maurice Halbwachs, ou memória enquadrada, de Henry Rousso.

Texto apresentado no curso Memória e Memórias de Formação de Leituras, ministrado pela profa Dra. Maria Cecília Cortez Christiano de Souza, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2o semestre de 2001.