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BOLETIM CLÍNICO - número 11 - novembro/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


6. Prazer, intimidade e solidão: Algumas questões da condição amorosa masculina - Noely Montes Moraes

Resumo

A reflexão que se segue é parte de um trabalho teórico sobre a masculinidade no mundo contemporâneo, focando a questão amorosa*.

Seu ponto de partida foi a principal queixa apresentada pelas mulheres que entrevistei para um outro trabalho de pesquisa** e que dizia respeito ao pouco compromisso e envolvimento demonstrados por muitos homens em seus relacionamentos amorosos.

Uma possibilidade de entendimento desta questão, aceitando-a como válida na percepção feminina, é a de que a fuga de compromissos, responsabilidades, limites e cobranças ocorre porque são vistos, pelos homens em questão, como impedimentos para o gozo da liberdade pessoal e do atendimento irrestrito aos próprios desejos.

Por outro lado, o estar só, contraponto do estar envolvido, é muito pouco valorizado na nossa cultura, impedindo que esta possibilidade de existência seja vivida em sua forma criativa, e fazendo com que a solidão seja tão ou mais temida, por alguns homens (e algumas mulheres) do que perder-se num envolvimento amoroso.

Este artigo aborda a questão da busca de prazer e suas implicações para a condição masculina, em particular, e para o nosso momento cultural, bem como o binômio intimidade/solidão implicado na reflexão sobre relacionamentos amorosos.

Palavras-chaves: Masculinidade, relacionamento amoroso, busca de prazer, solidão.

Abstract

The following thoughts are part of a theoretical work about manhood in today's world, focusing on the love matter.

Its starting point was the general complaint of the interviewed women for another research work, about the lack of commitment showed by
lots of men in relationships.

One possibility to understand that question, taking it as valid under
the female perception, is that the refuse to compromise, to have limits,
obligations and demands happens because these are seen, by the men
involved, as troubles to enjoy completely their personal freedom and the
unrestricted response to their own wishes.

On the other hand, the "being lonely", instead of being involved, is
depreciated on our culture, thus stopping this possibility of existence
to be lived in all its creative form, making loneliness to be as much or
even more feared, for a few men (and women) than to lose themselves in a
love affair.

In this article, I try to approach this matter of search for pleasure
and its implications of the male condition, in particular, and for our
cultural moment, as well as the problem intimacy/loneliness implied on
the thoughts about love affairs.

Keywords: Masculinity, love relationship, search for pleasure, loneliness

1a PARTE : SOB O DOMÍNIO DO PRAZER

"O Inferno são os outros" J.P.Sartre

A resistência masculina a uma entrega amorosa absoluta revela, por um lado, o medo de se perder no Feminino e, por outro, a fuga de compromissos, responsabilidades, limites e cobranças vistos como impedimentos para o gozo da liberdade pessoal e do atendimento irrestrito aos próprios desejos.

Esta atitude, aliás, expressa uma postura tipicamente contemporânea, com traços narcísicos e pueris que merece ser melhor retratada.

1. A Dinâmica Puer

No contexto psicológico, algumas análises da "neurose típica"de nossos tempos apontam o narcisismo como a patologia dominante. O narcisismo, fase integrante do desenvolvimento infantil, adquire conotação patológica quando se prolonga para muito além da infância, chegando à idade adulta.

Na abordagem junguiana, o tema é contemplado através da figura do Puer Aeternum. A dinâmica Puer se manifesta através de certo tipo de jovem ou adulto que tem um complexo materno fora do comum. Nas palavras de Von Franz: "(…) este tipo de problema, do homem que não se separou da mãe, tornou-se comum em nossos dias."( Von Franz, 1992, pag.12)

Autora do livro - Puer Aeternum- A Luta do Adulto contra o Paraíso da Infância- Von Franz acrescenta:"a única situação que esse tipo de homem teme é a de se ligar a qualquer coisa. Há um medo terrível de se prender no tempo e no espaço totalmente e de ser o ser humano específico que ele é. Toda definição é para ele um inferno." (op.cit. pag.10)

A dinâmica Puer contém evidentemente seu paradoxo: é típico do Puer ter instinto gregário muito desenvolvido, como uma ovelha que segue um rebanho. E que este tipo precisa desesperadamente do outro. Esse é o aparente paradoxo narcisista, típico de nossa sociedade: individualismo com comportamento dócil das massas.

A tendência gregária poderia ser um antídoto contra o perigo da falsa individualidade que o homem desenvolve dentro do complexo materno. Implica em renunciar à ilusão inflada de ser alguém muito especial, cujo talento e excepcionalidade não são reconhecidos pelo mundo, e se aceitar como mais um no anonimato. Realmente, esta renúncia é um remédio para o complexo materno, mas dependendo da dose, pode ser um veneno para a individualidade.( op.cit.pag. 49-53 )

O grande dilema que esta dinâmica, tão típica de nossos dias, coloca é que matar a criança birrenta, que exige satisfação imediata de seus desejos, detesta frustração, é auto-indulgente, se considerando merecedora de todos os prazeres e de nenhum ônus, obriga a enterrar junto a espontaneidade, a fé nos próprios sonhos e a ousadia e audácia tão necessárias à criação e á transformação renovadora da vida. O efeito desta morte será certamente desilusão, ceticismo e amargura. Deixada viva e livre, por outro lado, a criança interna sofrerá o tempo todo pela confrontação frustrante da realidade.

Von Franz resume bem esta idéia: "pode-se ficar livre dos demônios e também dos anjos dizendo que o problema é a infantilidade que faz parte do complexo materno e, através de uma análise reducionista, resumir tudo a sentimentos infantis que devem ser sacrificados (…). Valerá a pena trabalhar apenas para ganhar dinheiro o resto da vida e ter pequenos prazeres burgueses?" (op.cit. pag.23)

A pessoa adaptada sofre exatamente da perda de contato com suas demandas mais instintivas que, além de perigosas, constituem também a fonte de renovação, da criativadade e da crítica necessária à resistência às tentativas ideológicas de anulação do indivíduo.

A fuga masculina do envolvimento, queixa feminina, poderia ser manifestação de uma dinâmica infantilizada, avessa a compromissos. Por outro lado, talvez os homens tenham razão em temer envolver-se demais com as mulheres: Eros escraviza e provoca um retorno ao mundo das mães. Resistir a este canto da sereia é uma das provas mais difíceis à afirmação da masculinidade.

Ao mesmo tempo, o grupo dos machos cobra de seus membros proezas de conquista sexual. Haja dissociação para enfrentar este dilema masculino!

Ampliando a questão, o conflito poderia ser recolocado através da pergunta: como equacionar o binômio intimidade X solidão dentro de um processo de ampliação da consciência humana? O que cada lado traria de criativo ou de defensivo?

Enfatizar a individualidade ou o social é também um dilema enfrentado pelas ciências humanas, em especial, a Psicologia. Olhar a pessoa através do que ela tenha de singular e dos apelos atemporais de seus instintos ou olhá-la a partir da adaptação à cultura de seu tempo e ao grupo social é uma escolha de enfoque que determina assumir uma linha ou outra dentro do campo psicológico.

Na verdade, as manifestações coletivas e individuais se correspondem e constituem diferentes manifestações de um mesmo padrão constelado. (E mais, como a psique está sempre e necessariamente implicada em qualquer tentativa de produção de conhecimento, o que é apreendido, como modo de funcionamento de qualquer fenômeno físico ou social, reflete o modo de funcionamento da própria psique). Nesse sentido, o paradoxo do individualista seguidor do rebanho presente na ideologia contemporânea se manifesta no dilema Puer de defender sua individualidade e liberdade enquanto se lança numa compulsiva busca do Outro.

A liberdade almejada acaba por exigir um preço que é o sentimento de profunda solidão. Mas também brinda a pessoa com o vislumbre das infinitas possibilidades de ser e com uma indestrutível unidade amorosa consigo mesmo. Nas palavras ditas por Herman Hesse através de Demian: "Em um mundo de peregrinos, quando os caminhos de cruzam, o mundo parece um lar durante algum tempo."

Talvez a fuga de envolvimento seja a necessidade masculina deslocada da solidão necessária e implícita da jornada heróica.

Ao lado do anseio por liberdade e individualidade, a busca incondicional de prazer também marca o homem contemporâneo. Haveria limites para esta busca?

2. A BUSCA DO PRAZER É COMPATÍVEL COM A ÉTICA?

"É necessário que em nossa agenda de direitos humanos passe a constar mais explicitamente o direito ao prazer" Lionel Tiger

"Não temos escolha. Temos que sentir prazer." Com estas frases, Lionel Tiger, cientista social e antropólogo, encerra seu livro A Busca do Prazer.

Ao procurar nesta obra fundamentos para lidar com a questão do prazer, deparei-me com algumas colocações interessantes para meu tema e outras questionáveis.

A hipótese central do livro é a de que o comportamento de buscar o prazer e evitar a dor foi um componente decisivo para a sobrevivência e evolução da espécie humana.

Este mecanismo de sobrevivência estava perfeitamente ajustado às condições precárias, ameaçadoras e hostis do ambiente primitivo. Quando as condições de escassez se transformaram em abundância e fartura, a busca do prazer mostrou seu lado mórbido: incapaz de refrear-se autonomamente, levou os indivíduos aos abusos, excessos e vícios (obesidade, drogas, sexo desordenado).

A implicação dessa tese é a de que os mecanismos de controle do prazer devam ser culturais. Bem, isto é o que Freud já colocava na sua descrição do aparelho psíquico com suas instâncias (ego,id e superego) em permanente guerra. Os mitos de criação também se ocupam dessa passagem de uma natureza biológica para uma natureza cultural.

O autor parece menosprezar esta passagem, que representou um salto qualitativo para a espécie humana, a partir da instalação da consciência, que operou uma ruptura e uma intromissão na ordem natural.

Isto fica claro quando o autor defende o prazer feminino em ter filhos, como determinante biológico, condenando as formas de controle de natalidade, acusando-as de distorcer ou impedir o fruir de um prazer básico feminino (op.cit.pag. 226).

Tiger, a meu ver, caiu no perigo do reducionismo biológico que sempre ronda os estudos que buscam as raízes de nosso comportamento atual no passado da espécie.

Embora não possa, portanto, partilhar das premissas e da linha de argumentação do autor, vou me permitir utilizar algumas informações contidas no livro, submetendo-as a interpretação própria.

Na tentativa de responder à questão-título deste capítulo, encontrei na obra de Tiger a constatação de que o prazer é sempre submetido a restrições (pag.27). Bem nota o autor que as descrições do Céu são bem mais modestas em termos de alardear prazeres supremos do que as descrições dos atrozes e intermináveis sofrimentos de Jó.

É bem verdade que nosso autor nos dá uma pista quando discute o prazer por ele denominado de social, que seria o prazer obtido com a presença e proximidade física entre os indivíduos.Não é difícil imaginar que, para o homem das cavernas, era muito mais confortador estar no meio de um grupo de iguais do que sozinho, exposto aos perigos de um mundo hostil. Mas Tiger assinala, com dados estatísticos, a tendência oposta apresentada atualmente em que um número cada vez maior de adultos vivem sozinhos e buscam esta condição.

Parece que à medida que as condições de sobrevivência vão se tornando mais fáceis, prazeres antes ligados a ela vão perdendo força e surge um tipo de prazer advindo justamente da possibilidade dada ao homem contemporâneo de inventar para si as condições existenciais, cada vez menos sujeitas aos imperativos da lei natural. Aliás, isto é o que garante a eficiência da publicidade!

A liberdade passa a ser um valor inestimável que permite a obtenção desse tipo de "prazer de escolher".

Não sei se me empolguei demais com esta idéia, mas me ocorreu que a primeira tentação humana, segundo o relato bíblico, foi justamente comer o fruto da árvore do conhecimento do Bem e do Mal, que pode ser entendido como obter condição de escolha.

Claro que o preço da aquisição de consciência e liberdade foi alto e continua sendo. Os existencialistas falam disto muito bem quando dizem que somos condenados a ser livres e que a angústia humana básica é justamente a morte, limite extremo à nossa liberdade.Não há dúvida que a imensa maioria das pessoas renuncia a esta liberdade e siga o rebanho.

Voltando à questão proposta no título, se é possível compatibilizar prazer e ética, as considerações expostas até aqui levam a refletir que, embora o prazer seja um imperativo da natureza na sua origem, claro está que a evolução da consciência, acompanhada pela evolução tecnológica, abriram um leque amplo de fontes de prazer, algumas delas conflitantes, o que impõe a necessidade de escolhas, que remete à questão da Ética.

Aplicando esta reflexão ao tema central deste trabalho - a condição masculina contemporânea - volto a aproveitar de um exemplo citado por Tiger ao analisar as relações reprodutivas da espécie humana: na medida que a atividade sexual encerrava a possibilidade da gravidez, o recato feminino e a responsabilidade masculina frente à prole acabavam por garantir um certo controle ao prazer de ordem sexual.

A pílula e o DIU colocaram nas mãos da mulher a possibilidade do controle da gravidez e a emancipação econômica feminina permitiu á mulher condições de garantir sua própria sobrevivência e de sua prole.

Tiger vê, nessas mudanças, uma possível explicação para o comportamento masculino menos compromissado na esfera amorosa, principal queixa das mulheres contemporâneas: "uma vez que as mulheres passaram a dispor de novas formas de controle da reprodução, os homens começaram a considerar-se livres de total responsabilidade. As conseqüências dessa mudança são enormes. Variam da constante queda dos índices de natalidade à crescente instabilidade dos casamentos, passando por um dramático aumento do número de mães solteiras e talvez uma correspondente emergência de homens que se tornaram "alienados dos meios de reprodução", homens que "fogem dos compromissos".(op.cit.pag.59)

Na verdade, as mudanças aparentes no comportamento amoroso humano parecem revelar transformações muito mais profundas no padrão de consciência coletiva.

Enquanto o Patriarcado predominou, os fenômenos eram vistos através da maneira masculina, excludente e diferenciadora. As diferenças sexuais eram apontadas e relacionadas ao aspecto biológico. Assim, o comportamento de buscar variedade de parceiras e a preferência pelas mais jovens eram atribuídos ao homem e explicados pela necessidade de espalhar gens e garantir uma boa reprodutora para a prole.

É interessante notar que este padrão nos dias de hoje já não é exclusividade masculina. Chama atenção o número crescente de mulheres maduras relacionando-se com parceiros jovens.

A explicação para estas formas de escolha já não pode ser buscada na Biologia, que forneceu durante um bom tempo fundamentos moralistas de comportamento sexual. Atrelar o prazer às necessidades de sobrevivência isentava-o de culpa, ao mesmo tempo que condenava todas as formas não ligadas á sobrevivência ao fogo do inferno.

No lugar da explicação biológica, a econômica rapidamente é lembrada: a mulher madura de hoje é geralmente bem sucedida financeiramente e porisso atrai os homens jovens. O poder seria o determinante. Freud e Adler continuam brigando…

Todas essas determinações têm seu papel mas sempre relativizado pela atuação integrada de inúmeros outros fatores.

Uma visão mais inclusiva e integradora, feminina portanto, permite uma apreensão mais abrangente, instável e provisória dos fenômenos. Nessa perspectiva, a escolha amorosa se apresenta menos previsível em seus motivos, mais irracional e caótica, menos sujeita a leis e normas.

O prazer reinvindica espaço próprio e busca satisfação desde a escala mais baixa até as oitavas superiores do êxtase estético e religioso. Realmente, não temos escolha, temos que sentir prazer e temos que escolher que prazer queremos: uma questão ética e política.

Neste trabalho, foi eleita a questão dos relacionamentos amorosos como foco de observação e reflexão. Mais particularmente, o comportamento amoroso masculino. Usando o eixo de análise prazer/ética para se fazer uma leitura da condição amorosa masculina, a primeira coisa que se evidencia é que o homem contemporâneo vem buscando uma situação prazerosa em seus relacionamentos.

O fato de que as vivências amorosas estão menos regulamentadas por imposições e limites biológicos e econômicos traz como implicação à superação do papel masculino de provedor e reprodutor.

Embora inicialmente desorientadora, esta constatação traz em si a semente de liberdade para que o homem escolha:

1- se quer ou não relacionar-se amorosamente;
2- se quer relacionamentos homo ou hétero sexuais;
3- se quer constituir família ou não;
4- como quer dar forma à relação: quantidade de encontros, duração, maior ou menor intimidade, fidelidade sexual ou não, etc.

Tudo isto, é claro, em termos teóricos porque a liberdade sucumbe diante de uma forte atração sexual ou, mais ainda, no caso de uma paixão, senão o que seria da poesia e da arte?

Para que um relacionamento amoroso seja propiciador de um máximo de prazer e um mínimo de frustração, ele necessita ser mantido sob limites e submetido a um certo controle dos sentimentos mobilizados. Mas neste caso, o grau de satisfação emocional é menor.

Parece ser nesse ponto que o desencontro amoroso contemporâneo se revela com maior clareza. Não se pode, nem se quer, apoiar a vivência amorosa em regras e ditames morais, religiosos ou sociais. AMOR LIVRE foi o grito da década de sessenta que ecoa até hoje. Mas as fantasias, expectativas, desejos e necessidades de cada parceiro, que buscam acolhimento na relação amorosa, se mostram invariavelmente divergentes. Mais grave: dentro do próprio indivíduo, as diferentes demandas se chocam e o conflito é inevitável: "ficar ou não com Tereza", se perguntava o angustiado protagonista de Milan Kundera na obra A Insustentável Leveza do Ser. Mergulhar na paixão, perder a cabeça, beber até a última gota do cálice, entregar-se à amada ou… manter-se disponível para todas as mulheres, obter satisfação imediata e variada, sem alterar rotinas, agendas, planos.

Que prazer quer o homem de hoje? E a que preço?

2a. PARTE: SOB O DOMÍNIO DE SI

1. O ENCONTRO AMOROSO CONSIGO MESMO

"No fundo, a crise do diálogo é a falta de monólogo" Alberto Oliva

A análise da situação masculina contemporânea, particularmente do aspecto amoroso, não estaria completa sem a consideração da contraparte complementar ao estabelecimento de vínculos: a capacidade de estar só.

Para auxiliar nessa reflexão, utilizei a obra "Solidão" de Anthony Storr.

Logo no início do livro, o autor levanta um interessante questionamento sobre a ênfase atual nos relacionamentos íntimos interpessoais como base da saúde e da felicidade, mostrando que se trata de um fenômeno recente:"… nossa atual preocupação e angústia pelos relacionamentos humanos substituíram a antiga ansiedade a respeito da condição imprevisível e precária do mundo natural". (1996, pag.17) O autor aponta, ainda, o declíneo da religiosidade e a ênfase da Psicanálise na satisfação sexual como paradigma da felicidade como outros fatores contribuintes para o fenômeno.

Freud considerou a capacidade de amar e trabalhar como condições de saúde psicológica. Storr assinala que há uma grande ênfase na primeira e menos consideração para com a segunda.

O autor tem razão em sua crítica pois a preocupação exclusiva com os percalços da vida amorosa limita o horizonte de possibilidades de obtenção de prazer.

Não é difícil perceber como a solidão assumiu significado negativo na nossa cultura. Embora os relacionamentos sejam oportunidades valiosas de crescimento pessoal, a incapacidade de estar só é preocupante. Para se relacionar e se comunicar verdadeiramente com o Outro, é preciso antes ouvir a voz interior. Ela só é ouvida no silêncio.

Quem evita ficar em sua própria companhia, obviamente não morre de amores por si mesmo ou tem um terrível medo de si. Como, então, ele vai se apresentar ao Outro? Com uma máscara? Se não há encontro amoroso no interior do próprio indivíduo, como esperar encontrá-lo lá fora?

Também não é possível estabelecer intimidade com um parceiro ou parceira porque ele ou ela poderiam encontrar aquelas partes tão temidas e evitadas e tornar a pessoa exposta e vulnerável. Portanto, procura-se o Outro para evitar o encontro consigo e evita-se o encontro verdadeiro como Outro, encontrando, por fim, a solidão. E o círculo recomeça.

Quando se ouve alguém justificar a busca de um parceiro pelo medo de ficar só na velhice, isto merece um olhar crítico: em primeiro lugar, se o que é temido é não ter quem cuide, o parceiro procurado deveria ser, no mínimo, dez anos mais novo. Caso contrário, o problema do cuidado dobra. Parece que este medo básico de desamparo e a conseqüente necessidade da presença tranqüilizadora de um cuidador, revela a permanência de resquícios de ansiedade infantil. Em segundo lugar, é questionável pretender ter o controle das condições existenciais a tão longo prazo.

Este medo de desamparo apresenta-se mais acentuado nos homens do que nas mulheres. Talvez a expectativa de vida, maior para o gênero feminino, as prepare melhor para a eventual ausência de um parceiro.

De qualquer maneira, deveria haver, ao longo da vida, um decréscimo da dependência de outras pessoas: do bebê, total dependente, à auto-suficiência do adulto.

Storr reforça esta idéia: "no início da vida, a sobrevivência depende dos relacionamentos com o objeto. O bebê humano não pode tomar conta de si próprio e depende dos cuidados de terceiros durante longos anos da infância. No final da vida, prevalece a condição oposta. Embora a doença ou alguma lesão possa tornar o idoso fisicamente dependente, a dependência emocional tende a declinar.(…) Essa mudança na intensidade do envolvimento é em parte determinada pelo declíneo na insistência do impulso sexual que, até a meia-idade, ou mais tarde, faz com que a maioria dos homens e das mulheres se envolva em relacionamentos íntimos.(…) Existe a tendência, na velhice, de nos afastarmos da empatia e nos voltarmos para a abstração; de nos envolver-nos menos nos dramas da vida e nos preocuparmos mais com os padrões da vida."(op.cit.pag.227-228)

Mesmo ao longo da vida, a alternância entre momentos de convívio interpessoal e de solidão é extremamente salutar. "O homem que não insere em sua vida um pouco de solidão jamais desenvolverá sua capacidade intelectual" (De Quincey, in Storr,pag.109)

Tão importante quanto saber envolver-se é saber desenvolver-se, o que significa buscar e adotar um sistema de pensamento, interesses, enfim, uma filosofia ou ideologia que dê sentido à sua existência como indivíduo único e singular.

Cada pessoa deveria buscar um equilíbrio entre as duas demandas, mas a intensidade do chamado de cada uma delas se mostra diferente para cada um.

Há pessoas, especialmente as mais criativas, que apesar de se ocuparem com relacionamentos, sentem-se muito mais atraídas e atribuem maior importância a seu campo de atividade.

Talvez por serem minoria, não correspondam aos critérios socialmente aceitos de felicidade, geralmente baseados em estar vivendo uma relação amorosa. Acabam sendo cobrados, e se cobrando, de sucesso numa área onde o investimento libidinal pessoal é menor.

Embora não se possa generalizar, há, entre as pessoas consideradas "felizes" do ponto de vista das relações amorosas e conjugais, muitas que são desinteressantes e improdutivas em outras áreas.

A biografia de pessoas altamente criativas como Freud, Jung, Marx, Einstein, Chopin e tantos outros revela temperamentos difíceis no campo dos relacionamentos e, apesar, ou talvez por causa dessas dificuldades, deixaram a humanidade muito melhor.

É critério de saúde mental a capacidade do homem de vincular-se quer com as pessoas de sua intimidade quer com outras não tão próximas. Mas a capacidade de estar só, como marca da maturidade, raramente é citada. Por outro lado, a dependência afetiva sugere imaturidade emocional.

Portanto, tendo a concordar com Storr: "nossa expectativa de que os relacionamentos íntimos satisfatórios devam, idealmente, trazer felicidade e que, se não o fizerem, é porque existe algo errado com esses relacionamentos, parece exagerada."(op.cit.pag.13)

Amigos e parceiros amorosos são grandes fontes de felicidade mas certamente não podem ser as únicas. O ser humano é movido por dois impulsos complementares e fundamentais: o impulso de aproximar-se dos outros e o impulso para a autonomia e a independência.

Reside nesse par de opostos a possibilidade de entendimento do comportamento masculino ambíguo em termos amorosos: aproximação e distanciamento.

O problema está na aceitação de um pólo e rejeição do outro. Como as duas polaridades muitas vezes não podem se manifestar dentro de uma relação amorosa, a única saída é a cisão: ou se está amorosamente envolvido ou se está só.

Colocando em outros termos: Eros é o princípio de ligação, de fusão, de encontro; é de natureza feminina, envolvente, aglutinador. Seu oposto complementar -Logos- é diferenciador, separador; é de natureza masculina, objetivo, distinto. Na mulher, há o predomínio de Eros na consciência, seja por fatores inatos ou culturais e, no homem, Logos prevalece. Como sempre acontece com as polaridades, uma delas, a excluída, permanece ou recai no inconsciente, projetando-se no Outro. A queixa feminina em relação ao pouco envolvimento dos homens pode revelar o não reconhecimento em si da função separadora de Logos, que reconduz o investimento libidinal colocado no objeto amoroso de volta ao Ego. Como conseqüência, esta função é percebida como vinda do exterior: do parceiro amoroso, mais especificamente.

E, assim, a resistência "masculina" ao desejo "feminino" de fusão é traduzida como desinteresse ou falta de intensidade no afeto colocado na relação.

A manifestação do desejo de ficar sozinho por um membro de uma parceria amorosa é geralmente recebida pelo outro como rejeição ou diminuição do interesse. Tendo que ser reprimido, esse desejo acaba por impor a separação literal do par.

Como o ficar só não é valorizado, muitas vezes não se sabe o que fazer com a própria companhia; nesse caso, a possibilidade de estar consigo, ampliando o auto-conhecimento e dedicando-se à expansão dos interesses, conhecimentos e prazeres fica comprometida. Mas a justificativa para a existência individual certamente não é a existência dos outros. Saber relacionar-se amorosamente consigo mesmo é, na verdade, a condição para amar realmente o Outro. "Amar ao próximo como a ti mesmo", resumiu maravilhosamente Jesus Cristo.

Só sofre de solidão quem abandonou a si mesmo.

CONCLUSÃO: O ENCONTRO COM O MISTÉRIO

"A vida …é um curto episódio entre dois grandes mistérios. Dar sentido a ele é o grande desafio." Jung

Jung concentrou seus estudos na segunda metade da vida humana. Percebeu que, na juventude, as questões cruciais giravam em torno de se emancipar das influências parentais, construir carreira, adquirir auto-suficiência em todos os níveis. Mas na segunda metade da vida, a questão central era a integração de todos os aspectos que compõem a psique, numa totalidade integrada.

Nessa tarefa, o indivíduo começa a se dar conta de sua indestrutível individualidade e toma consciência que a orientação toda de sua vida teve como meta a realização de Si-Mesmo. Sua atitude muda e um certo desapego do mundo externo se instala, ao mesmo tempo que a busca de um sentido abrangente para sua existência se mostra com toda força.

A pergunta existencial fundamental do homem foi expressa por Jung da seguinte maneira: "Ele (o homem) está ou não relacionado com algo infinito? Eis a pergunta fundamental de sua vida. Se compreendermos e sentirmos que nesta vida já temos vínculos com o infinito, nossos desejos e atitudes transformaram-se."

Na medida que o homem vai atingindo esse seu centro e percebendo o sentido de sua vida, passa a se sentir integrado e pertencente a toda espécie humana, em todos os tempos. Percebe-se parte insubstituível de uma Totalidade.

Nesse estágio, a consciência já se ampliou o suficiente para se dar conta que esta é, afinal, a busca de toda sua vida e que os demais anseios e desejos, que antes se mostravam tão urgentes e exigentes, na verdade, eram substitutos ou manifestações parciais da grande ânsia humana de ligação com o infinito, com o transcendente.

A paixão, com seu estado de êxtase, é uma promessa e uma decepção para o anseio de completude. Muitas vezes, pode até servir de fuga para a autêntica busca existencial.

Analisando neste trabalho a crise masculina, notadamente a resistência a envolvimentos, foi possível perceber que, ao lado de toda conotação regressiva e infantil que esta postura masculina possa conter, ela carrega um fator de equilíbrio para o poder devorador de um Eros predominante.

Se é verdade que está havendo um enfraquecimento do predomínio Patriarcal, isto não pode levar a uma simples troca de domínio. O princípio da diferenciação, do isolamento e da separação contidos no Logos masculino deverá integrar-se com o anseio de Eros por fusão, envolvimento e intimidade.

A queixa feminina de que os homens não se envolvem e a fuga masculina da intimidade revelam que a polaridade intimidade/solidão (Eros/Logos) ainda se apresenta cindida e projetada, criando conflitos de gênero.

Vivenciar ambos os anseios, alternados ou simultâneos, leva o ser humano, independente de seu sexo, a um desenvolvimento integral e harmônico, fechando, assim, o ciclo de uma vida: o bebê deixa seu estado de plenitude simbiótica com a mãe; renuncia ao paraíso da infância; encontra no Outro oportunidade de expandir-se, pela integração das diferenças; busca a si mesmo no silêncio da solidão e, finalmente, retorna à totalidade, consciente de seu papel na trama cósmica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1- Storr,A (1996) Solidão - ed. Paulus, São Paulo
2- Tiger,L. (1993) A Busca do Prazer- ed. Objetiva, Rio de Janeiro
3- Von Franz, M.L. (1992) Puer Aeternus - ed. Paulinas, São Paulo

Noely Montes Moraes é Professora Associada da Faculdade Psicologia PUC/SP, Doutora em Psicologia Clínica, Editora Psicologia Revista, Vice-Chefe Clínica Psicológica “Ana Maria Poppovic” - PUC/SP

*Moraes, Noely M. - Por que os homens se envolvem menos no Amor? Pesquisa-Doutor PUC/SP, 2000

**Moraes, Noely M. - Fica Comigo para o Café-da-Manhã, ed.Olho d’água, 1999, São Paulo