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BOLETIM CLÍNICO - número 11 - novembro/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


4. O Complexo materno e paterno no contexto da Bulimia Nervosa - Estudo Clínico - Durval Luiz de Faria / Manoela Nicoletti

INTRODUÇÃO

Este estudo clínico tem como origem um atendimento realizado no Aprimoramento Clínico-Institucional em Abordagem Junguiana. Trata-se de um caso de bulimia em paciente adulta, uma jovem de 20 anos e que se encontra ainda em processo psicoterápico. Para Jung (1986), o jovem, que ainda se encontra na primeira metade da vida, tem, como grande desafio, a libertação das suas amarras das imagens parentais e o seu investimento no âmbito cultural, onde terá que haver com questões tais como: o desenvolvimento de seu papel profissional, a conquista de sua autonomia e seu lugar no mundo e o desenvolvimento de sua identidade de gênero.

O trabalho que aqui será apresentado mostra as implicações de uma jovem no embate com seus complexos parentais, sendo a bulimia nervosa uma expressão deste embate, cuja finalidade está sendo à procura de sua individualidade mais profunda. Para apresentarmos o caso, teceremos brevemente algumas considerações teóricas sobre o que é a bulimia e sobre a questão dos complexos materno e paterno, dentro da abordagem junguiana. Em seguida apresentaremos aspectos do caso clínico e o desenvolvimento do processo terapêutico, para, finalmente, adentrarmos na conclusão.

BULIMIA NERVOSA

Etimologicamente a palavra bulimia origina-se do grego bous (boi) e limos (fome), referindo-se, portanto, a uma fome tão grande quanto a de um boi. Entretanto, se atualmente este comportamento alimentar é visto como um desvio da "normalidade", referências aos festins romanos revelam-nos que era hábito, naquele período histórico, a ingestão excessiva de alimentos, a ponto de ser criado o vomitorium, local onde as pessoas poderiam se livrar deste exagero alimentar (Herscovici;Bay, 1997). Em termos descritivos, a bulimia é considerada psiquiatricamente como um transtorno alimentar.

Trata-se de episódios de ingestões alimentares copiosas e descontroladas, em geral secretas e rápidas. São episódios de verdadeiros empanturramentos, "orgias" alimentares, nas quais os pacientes só cessam a ingestão por mal físico, interrupção externa (chegada súbita de outra pessoal) ou por esgotarem-se os alimentos.

Existem 2 tipos de Bulimia Nervosa:

· Tipo purgativo: durante o episódio da bulimia,, o indivíduo envolve-se regularmente na auto-indução de vômito ou uso indevido de diuréticos, laxantes ou enemas.

· Tipo sem purgação: durante o episódio da bulimia, o indivíduo usa outros comportamentos compensatórios inadequados, tais como jejuns ou exercícios excessivos, mas não se envolve regularmente na auto-indução de vômitos ou no uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas.

UMA PERSPECTIVA JUNGUIANA

Para pensar a psicodinâmica do quadro de bulimia nervosa, consideramos os dinamismos inconscientes, os complexos materno e paterno, tais como colocados por Jung (1986) e junguianos (Kast, 1997) como desencadeadores de uma situação psíquica em que o ego vê-se compelido à prática bulímica, numa conduta compulsiva, onde podemos notar a presença de um ou mais arquétipos. Para Jung, onde aparece o elemento compulsivo, algo maior do que o ego e a consciência estão presente, de modo que o eu é arrastado para aquilo que não quer.

OS COMPLEXOS

Para Jung, não se pode lidar diretamente com os processos inconsciente por serem estes dotados de uma natureza inatingível. Tudo o que conhecemos, a respeito do inconsciente, passa pelas vias do próprio consciente. Apesar dos elementos inconscientes não serem diretamente observáveis, podem ser classificados quanto aos seus conteúdos que são capazes de chegar à consciência (Jung, 1996).

Estes conteúdos podem ser divididos em duas classes: a primeira tem origem pessoal; são aquisições individuais e produtos de processos instintivos que configuram a personalidade em sua totalidade. Podemos encontrar ainda, conteúdos esquecidos ou reprimidos e dados criativos que compõem a camada do inconsciente pessoal.

Já a segunda classe (inconsciente coletivo), contém tipos de conteúdo cuja origem é totalmente desconhecida e que não pode ser atribuída a aquisições individuais. Estes conteúdos têm como característica peculiar o seu caráter mitológico, como se não pertencesse a um padrão específico do indivíduo, mas à humanidade como um todo, sendo, assim, de natureza coletiva. Jung dá o nome de arquétipos a estes padrões ou potencialidades que precedem o nascimento da consciência.

O arquétipo é, portanto, coletivo e inconsciente. Vem na sua forma pura do inconsciente coletivo, mas para chegar à consciência precisa ser moldado e apresenta-se, enfim, através dos complexos. Cada complexo é constituído de um elemento nuclear ou portador de significado e de afetos, que é o arquétipo. Ao redor deste núcleo giram as experiências pessoais referentes àquele arquétipo, como, por exemplo, as experiências com pai e mãe. Quando ativado, pode fazer oposição às intenções do ego, é capaz de romper a sua unidade, e comportar-se como se fosse um corpo estranho na esfera consciente.

O complexo possui um pólo negativo e outro positivo que serão confrontados no processo de individuação. Entende-se por individuação, o processo contínuo através do qual o indivíduo vai integrando, gradualmente, conteúdos inconscientes à consciência. A consciência vai sofrendo ampliações e favorecendo o crescimento do indivíduo enquanto tal.

O núcleo do complexo é arquetípico. O trabalho analítico visa elaborar os conteúdos inconscientes que estejam impedindo o processo de individuação, para que a pessoa possa aproveitar as amplas possibilidades que o arquétipo lhe oferece, sem ficar preso a uma das polaridades.

O ARQUÉTIPO DA GRANDE MÃE

Quando a Psicologia Analítica se refere ao arquétipo da "Grande Mãe", não se refere a uma imagem concreta, espaço temporal, mas uma estrutura interior em operação na psique humana.

O arquétipo da Grande Mãe relaciona a mulher com suas funções maternais, tanto biológica, quanto espiritualmente. A relação que uma mulher tem com o seu próprio corpo, dependerá, em muitos aspectos das experiências vividas sob mobilização deste aspecto.

Segundo Neumann existem dois tipos de caracteres do feminino, que se interpenetram, coexistem ou hostilizam-se e são essenciais à natureza dele: o caráter elementar e o caráter de transformação do feminino.

O caráter elementar do feminino tem uma tendência a conservar para si aquilo que deu origem. Estará em evidência quando o ego e a consciência ainda forem infantis e o inconsciente dominante. A característica mais marcante é a de conter. De forma positiva se manifesta como provedor de alimento, de proteção e calor; de forma negativa como repressão e privação. É a base para o lado conservador, estável e imutável do feminino.

O caráter de transformação do feminino, por sua vez, expressa uma outra constelação psíquica fundamental. Enfatiza o aspecto dinâmico, e ao contrário do caráter elementar e sua tendência conservadora, coloca em movimento algo já existente e leva a transformação. Primeiramente, o caráter de transformação encontra-se submetido ao elementar para depois, aos poucos, ir adquirindo independência e formas próprias. A medida que a personalidade se diferencia, o caráter de transformação torna-se independente. Este caráter atua no sentido de promover movimento e inquietação.

Assim, é de fundamental importância entendermos que a identidade feminina, o ser mulher, depende de uma relação adequada entre o ego e a Mãe (a mãe interna), caso contrário esta constituição estará comprometida.

É importante, portanto, deixar claro que a bulimia nervosa deve ser entendida a um nível que ultrapassa ao relacionamento consciente da menina com sua mãe pessoal, para concentrar-se na vivência interna que a filha tem da figura maternal. Em outras palavras, existem elementos sombrios na figura materna que devem ser elaborados para que o complexo materno seja elaborado (Robell, 1997).

ARQUÉTIPO DO PAI

Jung, desde o início, caracterizou o arquétipo masculino como ligado ao desenvolvimento da consciência, tanto em homens quanto em mulheres, enquanto que o arquétipo feminino foi associado ao inconsciente.

O pai, como terceiro elemento, é fundamental na estruturação do ego (Boechat, 1997). Com o início do domínio da musculatura esquelética do ânus, instala-se o arquétipo do Pai, em nível corporal. O domínio da evacuação e micção já caracteriza a manifestação do princípio da lei, do permitido e proibido, já no primeiro ano de vida.

O Pai, segundo a Psicologia Analítica, teria a função de separar a criança da mãe. A criança, inicialmente, forma um todo com a mãe, tanto física quanto psiquicamente. No parto a criança se separa fisicamente, mas ainda está psiquicamente ligada, sendo esta fase carregada de símbolos como: acolher, nutrir, cuidar.

A fase seguinte é a do patriarcado, a masculina, solar, que é caracterizada pela relação da criança com o mundo e a lei. A introdução do pai na relação mãe e filha têm como função quebrar a simbiose e a onipotência infantil. É a figura paterna que introduz o princípio de realidade ou adiamento do desejo e separa a criança do mundo da Mãe (Neumann, 1996).

O Arquétipo do Pai instaura a cultura, as relações de poder, respeito às hierarquias, pela ordem, disciplina, autoridade. A medida que vai integrando este conhecimento, a criança aprende a colocar limites para si mesmo e para o outro. Em termos positivos representa a ordem, estabilidade, segurança, responsabilidade e autoridade. Em termos negativos, exibe impulsividade, depressão, sofrimento, impotência e desumanização. Em se tratando de distúrbios alimentares, estes dois lados do arquétipo não estão integrados no pai, o que leva a menina a uma submissão ao inconsciente do mesmo (Woodman,1980).

APRESENTAÇÃO DO CASO

· Caracterização da paciente

· Nome (fictício): Laura
· Idade: 20 anos
· Sexo: feminino
· Estado civil: solteira
· Grau de instrução: 3º grau incompleto
· Constituição familiar: Pai, mãe e duas irmãs
· Atividade profissional: universitária

QUEIXA

A principal queixa da paciente era a freqüência grande dos episódios de bulimia. Relata que sempre foi gordinha e que apesar de já ter feito muitos tratamentos não conseguia emagrecer. De modo geral, atribuía todos os seus fracassos e desilusões ao fato de estar acima do peso. Contava que não se aceitava como era fisicamente, e que tudo dava errado em sua vida, porque era gorda.

DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO TERAPÊUTICO

Nas primeiras sessões, a paciente expôs que sua preocupação com o peso começou aos 15 anos, apesar de saber que tinha sido uma criança "gordinha". Esta foi uma época em que estava começando a se interessar pelo sexo oposto, e, após uma desilusão amorosa passou a atribuir o fato de estar acima do peso todos os seus insucessos.

Conta que passou a rejeitar o próprio corpo tinha dificuldades para se adequar às roupas que gostaria de usar, sentia-se infeliz todas as vezes que precisava sair de casa e que algumas vezes deixava de ir a reuniões sociais para não precisar se expor. Já havia tentado inúmeros regimes, ginásticas, etc., mas com pouco ou nenhum resultado.

Aos 17 anos teve o primeiro episódio de vômito e a paciente relatou que experimentou uma sensação de prazer ao fazê-lo. A partir de então, passou a provocar o vômito uma vez por semana. Depois de 1 ano, aproximadamente, resolveu contar para a mãe que, para sua surpresa, disse que já havia desconfiado de seu comportamento e a aconselhou procurar ajuda de um profissional na área de Psicologia.

Na época em que Laura veio procurar ajuda, não estava morando na casa com a família. Havia se mudado para a casa dos avós que era mais perto da faculdade onde estudava e também porque acreditava que na casa da avó a vida seria mais fácil, pois sua casa era "uma bagunça" (sic).

O TRABALHO COM O COMPLEXO MATERNO

Ao descrever a mãe, a paciente afirmava que ela era sua grande amiga, pessoa em que mais confiava e para quem fazia confidências. Dizia que estava sempre lutando pela atenção da mãe e que precisava constantemente de sua opinião. Gostava que a mãe participasse da sua vida. Ajudava-a em tudo, quando era solicitada, mas tinha dificuldade em pedir favores à mãe, em receber dela a atenção e o afeto, pois achava que ela tinha trabalho suficiente e não gostava de incomodá-la. Diz que a única coisa que sentia falta quando estava na casa da avó era a mãe. Havia uma relação de cumplicidade entre mãe e filha.

Num primeiro momento da psicoterapia, a relação com a mãe era simbiótica, caracterizada pela dependência e afetos extremados. Era como se mãe e filha fizessem parte da mesma estrutura e a filha quisesse estar sempre vivendo à sombra desta mãe. Por parte da paciente havia uma dedicação e uma constante busca de amor e atenção que nunca pareciam ser suficientes.

No entanto, apesar da mãe ser vista conscientemente como boa e atenciosa, internamente ela era vivenciada como negativa. Existia na paciente um sentimento de não ser amada e conseqüentemente, uma luta incessante para conquistar este amor. Ao lado disto, existia o medo de crescer, conquistar autonomia. Era como se, para crescer, Laura necessitasse refazer o feminino primordial, uma relação mãe-filha saudável.

No entanto, como refazer este relacionamento se Laura se colocava como protetora da mãe e incapaz de receber o seu afeto? Laura exigia amor de sua mãe, mas não se colocava disponível para ser amada, mas sim, ser serva.

Ao mesmo tempo em que sentia necessidade de estar sempre fazendo para o outro, de agradar, nunca se sentia satisfeita por julgar que sempre dava mais do que recebia. Havia uma dificuldade grande em aceitar aquilo que o outro tinha para oferecer e uma dificuldade maior ainda de assumir que, muitas vezes, é preciso pedir para poder receber.

O próprio ato de vomitar após ter ingerido grandes quantidades de alimento estava, de certa forma, relacionado a esta dificuldade de dar e receber. Quando o complexo materno era ativado, havia uma grande necessidade de "preenchimento", de reter, ser nutrida ou ter para si, representada na compulsão pela comida. No entanto, a paciente concretizava algo que deveria ser vivido no âmbito simbólico da afetividade. Por isto, sentia culpa e vomitava. Não era o alimento aquilo que era almejado, mas o amor da mãe.

Ao longo do processo, através da relação terapêutica, a terapeuta pôde fazer o papel da mãe positiva, suprindo assim uma falta interna da mãe boa, que havia sido constelada em sua psique. Através da vivência transferencial, Laura aprendeu a pedir e a receber e recuperar, deste modo os aspectos bons da relação com sua própria mãe. A parti daí pôde tornar-se mais independente, responsável pela suas atitudes, capaz de pedir e receber o carinho.

COMPLEXO PATERNO

A figura do pai era relatada como bastante autoritária, distante, ausente e poderosa. O pai, médico, passava pouco tempo em casa e a relação nunca tinha sido próxima. Dizia que desde pequena tinha muito medo do pai, que ele falava de modo grosseiro e que as agressões verbais eram constantes. Laura não soube dizer se o pai era alcoólico, mas afirmava que ele bebia bastante.

Durante os 2 primeiros meses de terapia, o pai teve pouco espaço no discurso da paciente. A relação com o pai começou a ganhar força quando as questões com a mãe estavam sendo trabalhadas mais a fundo.

Laura falava o quanto a incomodava o fato do pai beber e ficar ouvindo música alta. Contava que o pai ficava gritando e pedindo que a mãe fizesse favores para ele que isso a irritava, pois achava que sua mãe era explorada por isto.

Na seqüência, contava uma história de traição do pai. Certo dia pegou no telefone e ouviu um "conversa obscena" (sic) do pai com uma mulher. Conseguiu o telefone no identificador e ligou. Era um celular e a caixa postal estava em nome da mulher e do pai. Este episódio detonou muita confusão e muito ódio do pai, mas não comentou nada e guardou este segredo durante um ano.

Este acontecimento datava exatamente da época em que os primeiros sintomas da bulimia começaram a se manifestar e pode ser considerado como fator precipitador do sintoma. Neste período o pai sempre reclamava que ela estava distante, mas ela se calava, dizendo para a terapeuta que sentia raiva e nojo do pai. Não costumava conversar com ele e tudo que ele falava a irritava. Várias vezes desejou que ele morresse.

Depois de 1 ano, em uma briga, a mãe insistiu que ela contasse o que estava havendo e ela contou. A mãe pareceu-lhe conformada, como se já soubesse. Laura concluiu que a mãe ou amava muito o marido ou tinha se acomodado a situação, pois não trabalha e não teria condição de se sustentar caso terminasse o casamento. Sentia pena da mãe e ódio do pai.

Uma semana depois, o pai, depois de beber, expôs a situação para toda a família e disse que estava triste, pois sua filha mais querida havia descoberto e estava com raiva dele. A paciente disse ao pai que depois de descobrir a traição deixou de vê-lo como um herói e que para ela, ele era apenas um homem que errava.

O pai, que se apresentava como uma figura distante do convívio familiar, parecia exercer um grande fascínio na paciente por ser idealizado e pouco conhecido. A figura deste pai não detinha um poder de autoridade e poder, e assim, parece que não cumpriu a função educativa e interditora para a filha.

Laura sentia muito ódio do pai principalmente porque havia desrespeitado sua mãe. A paciente viveu a traição como se ela fosse a esposa, em decorrência de sua unificação com a psique da mãe. Por outro lado, ao saber da traição, a figura idealizada, o herói construído na imagem do pai havia desmoronado. Ele não era mais o pai perfeito, ideal e intocável. Ele era apenas um homem e ela sentia muita raiva. Passou então, a projetar o mal e toda a sua agressividade neste pai.

Ainda em relação ao complexo paterno apareceu a questão da "perfeição". A própria paciente utilizava o termo "a filha perfeita". Contava ser a única que ajudava e não pedia nada aos pais, pois achava que eles já davam muito. Dizia que tentava fazer tudo certinho, mas talvez por esta razão era bem mais cobrada do que as irmãs.

A própria dinâmica relacional com o pai projetava-se como um palco perfeito para que houvesse projeções e grandes expectativas em relação à filha. E a filha, por sua vez, vivia para agradar e atender a todas as suas expectativas, pois havia uma idealização e identificação com esta figura paterna.

Este foi um ponto que mereceu bastante atenção, pois a questão da "perfeição" e da "cobrança" estavam muito presentes no discurso da paciente. Ela própria incorporou o "modelo de perfeição" e passou a se cobrar. Ela passou a achar que era mesmo perfeita e que por isso precisava corresponder às expectativas do outro sempre, ajudar sempre, para nunca decepcionar. Suas atitudes passaram a ser sempre controladas e suas ações programadas. Se algo não saísse como planejado, sentia-se frustrada.

Podemos supor também que a relação da paciente com seu pai interno deu-se de forma bastante rígida, o que lhe conferiu características como controle, hiper-exigência, obstinação, compulsão. Laura torna-se um "pai terrível" para si mesma.

Ao se confrontar com estas questões na terapia, Laura pôde colocar que diante de tudo isso se sentia bastante sozinha, pois se negava a pedir ajuda ao outro para "não incomodar". Percebeu que talvez estivesse sendo rígida demais consigo mesma e que muitas vezes a cobrança vinha de seu lado.

Era necessário que a paciente entrasse em contato direto com os sentimentos que nutria em relação ao pai. Precisava sentir a raiva e enfrentar a situação sem fugir. Logo, apareceram questionamentos e Laura sentiu a necessidade de dividir com a mãe a sua angústia. A mãe, por sua vez, pôde coloca para a filha como via o relacionamento com seu marido e a paciente sentiu-se mais tranqüila ao saber da posição da mãe, que era diferente de suas fantasias. A mãe aceitava o marido independentemente de seus defeitos.

Em diversas situações posteriores, a paciente teve diversas oportunidades de vivenciar sua raiva em relação ao pai. Chorou ao dizer que havia uma possibilidade de aproximação, mas não sabia se queria, pelo menos não com aquele pai. Ao chorar, colocava seus sentimentos de raiva quanto à ausência, a agressividade e traição do pai. Exprime a imagem idealizada de um pai que poderia ser mais presente, que soubesse da vida dela e se importasse. Não acreditava que o pai pudesse ser assim e preferia manter distância.

A partir deste momento, podemos dizer que começou a haver uma transformação na vida da paciente. A vivência da raiva, a desidealização da figura paterna, a diferenciação dos sentimentos em relação à mãe foram integrados, possibilitando ações e mudanças.

Em primeiro lugar, sentia vontade de saber mais sobre o pai. Posteriormente, pede ajuda para conseguir um estágio e ele se mostra interessado e disponível. É capaz de num momento de crise pedir colo e colocar seus sentimentos para a mãe, sentindo bem ao receber o seu carinho e atenção.

Os aspectos bons do pai puderam ser resgatados ao enfrentar as dificuldades e medos em relação ao pai ausente e negativo. Tais aspectos puderam ser integrados, houve uma flexibilização do ego e uma transformação na busca da própria individualidade. Laura voltou a morar em casa e, passado este período de embate com as imagens parentais, passou a olhar mais para si mesma e para os seus relacionamentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há seis meses a paciente não apresenta os sintomas da bulimia e há um movimento em busca de um contato com o seu feminino. O símbolo e o pedido de ajuda que estavam aprisionados no sintoma parecem ter sido compreendidos e integrados. O sintoma da bulimia mostrou-se relacionado à dinâmicas mais profundas que puderam emergir e serem trabalhadas.

Em relação ao corpo, Laura tornou-se mais consciente e responsável, passando a olhá-lo como parte de si mesma. Ainda há um grande desejo de mudança na forma corporal, o que pode indicar a busca pela identidade que está apenas começando.

Através do processo terapêutico pudemos perceber que, na paciente Laura, a bulimia constitui-se num sintoma que está expressando a dificuldade da mulher jovem adulta em encontrar-se com seu feminino transformador e criativo, pois ainda está presa às imagens parentais dos complexos estruturadores do início da vida.

Vimos, através do caso, como a paciente somatizava alguns conflitos que advieram da estruturação matriarcal e patriarcal da personalidade, somatização esta que se apresenta como um símbolo a ser elaborado. A bulimia parece representar a fome de um amor não satisfeito no relacionamento com os pais - um desejo de afeto que é concretizado através da ingestão exagerada de alimentos. No entanto, este exagero tem que ser colocado novamente para fora, pois o que se necessita realmente é do amor, através do encontro com o outro.

Este encontro exige uma mudança, como vimos no caso de Laura - saber receber, saber a justa medida entre dar e receber, aceitar as imperfeições e os sentimentos sombrios que permeiam o relacionamento entre pais e filhos - a desilusão, a raiva, a tristeza e a desidealização. Somente desta forma os adolescentes ou jovens adultos poderão constituir sua autonomia, não apenas econômica, mas também psíquica.

O estudo deste caso clínico sugere também uma pesquisa clínica mais abrangente com este tema, através de investigações qualitativas que trabalhem com profundidade a questão da bulimia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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WOODMAN, M.; (1980) A coruja era filha do padeiro - Obesidade, Anorexia Nervosa e o feminino Reprimido; São Paulo, Editora Cultrix.


Durval Luiz de Faria é Prof. Dr. Da Faculdade de Psicologia, supervisor do Núcleo 12 e Aprimoramento e psicoterapeuta junguiano.

Manoela Nicoletti é Psicóloga e psicoterapeuta junguiana. Fez Aprimoramento na abordagem junguiana no ano de 2001.