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BOLETIM CLÍNICO - número 11 - novembro/2001

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


8. Caso Clínico de um exepcional: Autonomia e Capacidade - Ricardo Santoro

Apresentarei o caso clínico de um excepcional atendido por mim durante o ano de 2001 na APAE/SP, unidade Dona Paulina de Souza, através do Projeto Inclusão.

O projeto é uma prestação de serviços que se situa na interface da psicologia clínica e social.

Os serviços prestados são:

1) Psicoterapia de orientação psicanalítica realizada na instituição especializada. 2) Grupos de reflexão com as equipes de suporte e técnicas da instituição. 3) Encontros com os pais ou responsáveis pelo paciente em atendimento psicoterapêutico.

Procurei o Projeto Inclusão por julgar que aprenderia muito com ele, já que na época estava no quarto ano de psicologia da PUC-SP, além de me interessar pela proposta e pelo público alvo. Já havia estagiado em uma instituição que lidava com crianças autistas e psicóticas. Entretanto a proposta era completamente diferente, já que se tratava de um trabalho de A.T. (Acompanhante Terapêutico) e de A.V.D. (Atividades da Vida Diária). No Projeto Inclusão eu faria o meu primeiro atendimento individual psicoterapêutico.

No projeto, a indicação de qual criança deveria ir à psicoterapia fica sob a responsabilidade da APAE. Foi designado a mim o paciente R.

R. tem 12 anos, mora com a mãe, auxiliar de enfermagem, o pai, zelador e o irmão mais velho, de 19 anos. R., segundo a APAE, tem síndrome de Down leve. A queixa da instituição é de que R. não se relacionava com os outros alunos, não se deixava tocar e não falava. Antes de atendê-lo, fiz uma entrevista com a mãe, que se queixou também de que R. não tinha "amiguinhos", porém ela disse que entendia tudo o que R. dizia. Houve, então, uma contradição entre a queixa da mãe e a da instituição em relação à fala, mas eu esperei atender R. para perceber o porquê dessa controvérsia.

Logo no primeiro atendimento pude notar uma certa passividade de R. Ele esperava que eu fizesse tudo para ele; costumava apontar quando queria qualquer coisa. Essa atitude foi observada também fora da sala, em relação a profissionais da instituição. Tudo lhe era dado sem que ele precisasse fazer o mínimo esforço. As pessoas adivinhavam o que ele queria. Acreditei que isso fosse decorrência da sua educação, pois a mãe, na entrevista inicial, demonstrou sinais de superproteção.

Penso que, com uma criança dita "normal" isso também ocorreria. Foi por acreditar nisso e acreditar que a deficiência de R. não era a causa de sua passividade, que passei a trabalhar sua autonomia, fazendo-o sentir que tinha capacidade. Sempre valorizava qualquer coisa que ele fizesse sozinho e, se não conseguisse, esperava que o pedido de ajuda partisse dele. A escolha tinha que vir dele. Um exemplo disso é que, quando R. tentava abrir a tampa da caixa lúdica, eu sempre o deixava tentar sozinho, mas quando ele estava tendo dificuldade, solicitava auxílio dizendo "juda".

Como já disse anteriormente, só foi possível trabalhar sua autonomia graças à minha crença nela, o que proporcionou a R. poder acreditar em si.

Ouvi vários comentários de colegas meus sobre a dificuldade de trabalhar com excepcionais já que, segundo eles, essas crianças têm poucos ganhos.

Entretanto, a respeito disso, penso sempre: poucos ganhos para quem? Para nós, pessoas "normais".

Percebi, durante o atendimento, o quanto é significativo para um excepcional, qualquer ganho que tenha. Cada conquista, por menor que possa parecer é para eles, como foi para R., um grande passo na direção de ser reconhecido como uma pessoa capaz, com suas limitações, como qualquer outra.

Portanto, além de acreditarmos em sua potencialidade, é importante valorizarmos seus ganhos, sejam eles quais forem. Percebi isso com R., após uma sessão em que ele brincando com a família de bonecos de pano, pegou o bebê e disse: "é o bobo". Notei que ele, o caçula (bebê) da família estava se vendo como "bobo". Esse fato foi muito forte para ele, tanto que nessa sessão ele saiu da sala logo em seguida, mesmo sem ter terminado o tempo.

Na sessão seguinte, disse a ele que havia observado, quando ele pegou o bebê, que ele se achava bobo, que devia haver pessoas que provavelmente deveriam dizer que ele era bobo, mas que eu não achava, pois uma pessoa boba não organizaria a caixa como ele fazia, nem pintaria como ele, nem saberia o nome dos bichos como ele sabia (na caixa lúdica há um saco com vários animais de plástico). Após ouvir o que eu falei, R. abraçou-me fortemente e começou a brincar com os brinquedos da caixa.

R. mostrou-me o quanto é importante o olhar que o terapeuta tem do seu paciente e qual rumo que o processo terapêutico pode tomar conforme esse olhar. R. foi ganhando autonomia conforme eu também fui me "soltando". Era sempre um processo mútuo de transferência.

Encarei o Projeto Inclusão e meus atendimentos como um aprendizado, disposto a aprender com R., mas também a contribuir com ganhos que ele pudesse ter. Saí da posição de superior, de detentor da sabedoria, do "normal" daquele espaço, fui sem preconceitos.

Utilizei muito a afetividade com R., talvez por não dominar tanto as técnicas de psicoterapia. Essa afetividade que depositei intensamente possibilitou que meu trabalho fosse feito através da transferência. Isso foi percebido na volta das férias de julho (a instituição fecha nesse período), quando R. não quis entrar na sala.

Fiquei apreensivo, achei que era uma coisa minha, que era minha culpa. Quando parei para pensar e discuti com minha supervisora, compreendi que era parte do processo, que R. precisava daquele tempo. Além disso, R. estava começando a fazer amizades e se enturmar e provavelmente tinha receio de ir para a psicoterapia e perder seus amigos.

Quando ele voltou à sala, após algumas sessões, pude então tranqüilizá-lo, dizendo-lhe que o compreendia, mas que seus amigos não o deixariam por ele ir para a psicoterapia.

Em relação à fala, percebi porque houve uma contradição entre a queixa da mãe e a da instituição. R. sabe falar, mas tem uma dicção ruim. A mãe se acostumou com isso, assim como eu fui me acostumando ao seu modo de falar. R. atualmente fala mais, porém com a mesma dificuldade do início. Essa é uma característica da Síndrome de Down - a língua tem uma posição mais frontal - e há necessidade de tratamento fonoaudiológico.

Devido à sua dificuldade de fala, foi necessário que eu encontrasse outras formas de entender R. e de me comunicar com ele, como o olhar, o toque. No processo psicoterapêutico é essencial que nós, terapeutas, tentemos entender o paciente através de outros modos que não o habitual - a fala.

Hoje R. mostra mais independência e iniciativa. Sabe escolher o instrumento que quer na aula de música, interage com as outras crianças e com os profissionais da instituição, permite o toque, cumprimenta falando e estendendo a mão aos homens e dando beijos nas mulheres, além de conseguir distinguir seus sentimentos.

Na entrevista devolutiva com a mãe orientei-a para que não desse tudo logo a ele, que o incentivasse a falar, a mostrar claramente o que queria. Foi recomendada uma consulta a um fonoaudiólogo.

A mãe, nessa entrevista, contou que R. disse em casa que não é mais um bebê, que é um rapaz.

Continuo o projeto em 2002, pois acredito que aprenderei muito ainda e que R. continuará tendo ganhos significativos mesmo parecendo pequenos ou poucos.

Ricardo Santoro é estudante do quinto ano de psicologia da PUC-SP.