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6. ALGUMAS FORMAS DE ATENDIMENTO PSICOTERÁPICO NA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL (1) - Ida Elizabeth Cardinalli (2), Cristina Bertini Pires (3), Juliana Luna Abrantes (4) e Silva Roberto Mariano de Almeida (4)
Apresentaremos três atendimentos realizados na Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic" da PUC-SP por estagiários do Núcleo 11 - Abordagem Fenomenológica-Existencial em Atendimento Clínico da Faculdade de Psicologia da PUC-SP. Estes atendimentos foram escolhidos não por apresentarem uma problemática comum entre eles ou por oferecerem novos elementos para o esclarecimento de alguma patologia específica. Ao contrário, acreditamos até que as situações e as questões que serão apresentadas são comuns e freqüentes na maioria dos atendimentos psicoterápicos. Assim, selecionamos alguns trechos dos atendimentos por considerarmos que permitirão exemplificar a atuação e a atitude do terapeuta, de acordo com a abordagem fenomenológica-existencial.
A psicoterapia fenomenológica-existencial propõe que a compreensão do paciente ocorra na relação específica e concreta: terapeuta-paciente, isto é, que esteja referida à situação do atendimento, ao encontro terapeuta-paciente e à compreensão daquilo que aparece no existir do paciente; priorizando, assim, o entendimento do paciente a partir dele mesmo e a partir da maneira como ele vive.
A proposição fenomenológica-existencial supõe que a atitude e a atuação terapêutica sejam norteadas pela compreensão do paciente na situação e na relação específica e concreta de cada atendimento. Ao mesmo tempo, esta compreensão do paciente é orientada pelo esclarecimento do existir humano como Dasein e ser-no-mundo, explicitados pelo filósofo Martin Heidegger no livro Ser e Tempo.
Segundo Boss (1979, p. 283), a compreensão do existir humano iluminada pela reflexão ontológica heideggeriana permite o esclarecimento do viver do paciente segundo seu modo de ser-no-mundo junto com os outros, num mundo compartihado; possibilitando, assim, que a compreensão do terapeuta seja guiada pelos significados e sentido do modo de existir de cada paciente.
Nesta perspectiva questiona-se a adequação do entendimento do paciente e do contexto terapêutico baseado em teorias explicativas metapsicológicas, isto é, teorias que supõem que o existir específico de cada ser humano pode ser esclarecido e explicado por teorias gerais e prévias.
A atitude do terapeuta, que busca a compreensão do paciente a partir do seu próprio existir, pode ser ilustrada pela fala de um paciente: "Você procura me compreender a partir do meu ponto de vista, a partir de mim mesmo; e nesta sua tentativa, eu percebo o que está claro e o que está confuso no que eu vivo" .
Pretendendo esclarecer e exemplificar algumas maneiras possíveis de a psicoterapia fenomenológica-existencial realizar-se, serão apresentados os seguintes relatos:
1- Uma psicoterapia com adolescente
A discussão do atendimento de um adolescente com dezesseis anos permitirá exemplificar de modo concreto e bastante intenso a condição do adolescente através da comparação da solicitação dos pais e das motivações do paciente no atendimento psicológico, que podem ser traduzidas nas questões: para quem e com o que é o trabalho e para onde a terapia deve seguir no decorrer do atendimento.
Consideramos que o adolescente é essencialmente diferente de um adulto e de uma criança, e que esta especificidade deve ser considerada. Não é mais uma criança que tem nos outros, habitualmente nos pais, a responsabilidade sobre o seu viver; mas também não é um adulto que, em certa medida, consegue se responsabilizar por si mesmo. Ao mesmo tempo, o adolescente é aquele que vivencialmente começa a perceber que é o próprio arquiteto do projeto de sua vida, o que muitas vezes não lhe é fácil constatar.
Assim, muitas vezes, quando um adolescente chega à clínica, o motivo e a motivação na procura do atendimento psicológico podem não ser claros para o adolescente, nem para a família.
A fenomenologia existencial busca esclarecer o sentido pessoal desta procura. Assim, o mais importante é o modo como o paciente se refere à sua própria vida. O trabalho do terapeuta será o de compreender como o paciente se responsabiliza por si mesmo, que sentido dá às suas vivências, que projetos estabelece, como se relaciona com os outros e consigo mesmo.
Um exemplo destas questões apresenta-se por meio de um paciente que chegou à clínica por indicação dos pais, preocupada com as possíveis dificuldades do jovem em lidar com a perda de alguém importante da família.
Com o início dos encontros, entretanto, ficou claro que os assuntos relevantes para ele não correspondiam às queixas da família ou da escola, uma vez que até parecia lidar de forma saudável com a problemática mencionada.
Deste modo, o terapeuta considerou que a preocupação dos pais não seria a questão que nortearia o processo terapêutico e procurou favorecer ao paciente condição de apresentar suas próprias questões. Assim, pôde falar bastante sobre os seus relacionamentos amorosos, comentando freqüentemente sobre os seus sentimentos e como se relacionava com diversas garotas.
Ficou evidente que o momento de vida do paciente tinha a sexualidade como preocupação central, ficando em segundo plano outros aspectos de sua vida, como, por exemplo, suas responsabilidades escolares.
O processo terapêutico foi importante para o paciente no sentido de lhe proporcionar um momento para perceber e refletir sobre sua vida e como estava lidando com ela. A terapia, portanto, realizou seu papel: de favorecer o esclarecimento do existir do próprio paciente.
Evidentemente, em outros momentos, surgiram solicitações por parte da família do paciente, já que para esta, a terapia representava um lugar de ajustamento. Mas é importante salientar que estas foram sempre tratadas com o paciente, levando em consideração sua autonomia e procurando mostrar que o mais importante era favorecer o esclarecimento sobre como o jovem vive e lida com seu viver.
É neste sentido que a postura do psicoterapeuta fenomenológico-existencial prioriza a compreensão do paciente segundo o modo como este vive. Esta atitude permite que o paciente se sinta aceito em sua individualidade e possibilita também que ele se comprometa de forma mais integral consigo mesmo, ganhando então autonomia sobre o seu viver.
2- A relação terapêutica e a maneira de ser de um paciente
O relato do atendimento do paciente, denominado A., tanto em relação a alguns aspectos relevantes de sua história de vida, quanto da maneira como este se relaciona com a terapeuta, pretendem exemplificar o entendimento da relação terapêutica na psicoterapia fenomenológica-existencial.
Destacamos, entre outras inúmeras questões importantes, a relação terapêutica, uma vez que este atendimento mostra claramente que o modo como o paciente se relaciona com o terapeuta corresponde à maneira como ele se relaciona com os outros e consigo mesmo.
Assim, diante de inúmeros pontos tocados por nós durante mais de um ano de encontros, escolhemos os que consideramos mais significativos para que o leitor possa, através de um breve relato, perceber como o paciente realiza seu viver e como significa suas experiências de vida.
A. é um rapaz de 26 anos, alto, forte e que se veste de forma esportiva. Apesar da aparência de garoto crescido, A. é sério e formal em suas relações. Compareceu semanalmente aos nossos encontros, sempre pontual e muito interessado em suas questões.
O rapaz perdeu sua mãe quando tinha 12 anos, tendo vivido na casa de tios por 1 ano e 3 meses após sua morte. A família era composta pelo pai e duas irmãs mais jovens, que também foram viver com outras famílias e parentes (desagregação familiar).
A. revelou que após a morte da mãe seu pai trocou de companheira várias vezes, indo morar com elas ou trazendo-as para morar com eles. Sua relação com o pai e suas companheiras foi sempre muito conturbada, pois seu pai era bruto e muito rígido, e o surrava com certa constância.
Aos 18 anos, A. saiu de casa e foi morar sozinho, iniciando um romance com a atual namorada no ano seguinte. Conta que esta garota gostava muito dele e sempre o ajudava, chegando a recebê-lo como morador na casa de seus pais.
Suas principais queixas estavam relacionadas ao seu desejo de terminar esse namoro de sete anos e ao fato de sentir-se imaturo diante das dificuldades da vida. A. pede ajuda para crescer!
Nossa primeira percepção e dificuldade diante do paciente foram vê-lo transformar as palavras do terapeuta em regras a serem seguidas. A. parecia ouvi-lo com muita atenção, buscando um único e certo caminho a seguir.
A. parecia querer agradar sempre, elogiando o terapeuta e o agradando por atendê-lo. Procurava mostrar que entendeu e seguiu as "regras" que buscou em suas palavras, sempre procurando ser o "bom rapaz".
Por seu modo de agir conosco, percebemos que talvez ele não conseguisse terminar com a atual namorada por sentir-se muito agradecido pelo ambiente acolhedor que ela e sua família sempre lhe proporcionaram.
A. sentia-se muito agradecido pelo acolhimento que a terapia lhe proporcionava, assim como o acolhimento que a namorada e sua família sempre deram a ele. A. não se sentia merecedor desta atenção e, portanto, sentia-se em dívida com todos que o acolheram. Era-lhe muito difícil receber, buscando retribuir rapidamente qualquer ato de amor e atenção.
O rapaz buscava corresponder sempre ao outro para poder ser querido. A. tentava ser o bom menino; tentava corresponder aos desejos do outro; tentava ser o que imaginava que o outro gostaria que fosse; precisava ser confirmado pelo outro para poder ser. A. busca a perfeição, idealizando-se e também idealizando o outro. Buscava regras, queria seguir o caminho certo, resumindo sua existência em apenas uma única possibilidade de ser.
Através deste aprisionamento, A. perdeu contato consigo mesmo, com sua realidade e também com a realidade do outro. Desta forma, esvaziava-se.
Idealizando a si próprio e ao outro, o rapaz seguia fazendo tentativas frustradas de acertar sempre, imaginando que isso pudesse lhe assegurar o amor e a compreensão do mundo.
Sentia-se frustrado e triste com freqüência, pois percebia que quanto mais tentava moldar-se para agradar ao mundo, mais longe de si estava.
Destacamos, assim, que o paciente apresentava na situação psicoterápica as mesmas dificuldades que encontrava em seus outros relacionamentos e, também, que sua maneira de se relacionar com o terapeuta revela o mesmo sentido e significado dos outros relacionamentos. Portanto, na perspectiva fenomenológica-existencial, a relação terapêutica não é pensada como uma relação transferencial. Ela é compreendida como a maneira de ser do paciente, isto é, como ele está podendo realizar seu existir neste momento da sua vida, seja nas suas relações pessoais, seja na psicoterapia.
3 - As dificuldades de relacionamento de M.
O relato do atendimento clínico da paciente, aqui denominada Maria, pretende mostrar algumas dificuldades da paciente na relação consigo mesma e com os outros, assim como algumas dificuldades enfrentadas pelo terapeuta durante o processo terapêutico.
A paciente tem 31 anos de idade, é casada e mãe de um único filho. Ela sofre de obesidade mórbida (apesar disto raramente ser mencionado por Maria na terapia) e de depressão. Assim, está sendo acompanhada também por um psiquiatra.
Nas sessões, a paciente costumava relatar detalhadamente seus conflitos conjugais, nos quais M. se considerava vítima dos excessos do marido. Sempre era o outro que brigava, o outro que era injusto. Seus relatos pareciam um "convite" para um veredicto da terapeuta: Seu marido é culpado! Deste modo, Maria evitava se comprometer com tudo o que vivia e relatava, mostrando um distanciamento em relação a si mesma e ao mundo.
No decorrer dos atendimentos, Maria constantemente se queixava de falta de diálogo com o marido. Percebemos que nas sessões a paciente falava o tempo todo, o que dificultava a intervenção do terapeuta. Quando este conseguia uma "brecha", Maria dava sinais claros de não ter escutado e continuava falando.
No contexto terapêutico, pudemos observar a dificuldade da paciente em ouvir e dar espaço para o outro. Esta maneira de M. levou o terapeuta a ser cada vez mais direto e claro em suas intervenções para ser ouvido e compreendido. E somente deste modo a comunicação e o entendimento fluíram mais facilmente.
Maria sentia uma imensa tristeza. Nas sessões, era muito comum ocorrerem: crises de choro, falas de desespero e dificuldade em lidar com o próprio sofrimento. A paciente também alternava momentos de agressividade e indiferença com momentos de muita fragilidade: quando o terapeuta oferecia acolhimento, Maria reagia com indiferença ou agressividade, e quando intervinha de modo mais direto, a paciente reagia demonstrando hipersensibilidade.
Este modo de reagir em oposição ao movimento ou à solicitação do outro também foi identificado em outras situações. Por exemplo, quando Maria se sentia dependente da psicoterapia, ausentava-se de duas ou três sessões seguidas. Esta atitude de oposição da paciente dificultava a intervenção da terapeuta de forma mais assertiva e adequada.
Percebemos que Maria apresentava muita dificuldade de se relacionar com o outro, o que na psicoterapia manifesta-se como: não ouvir, não considerar o que está sendo apontado ou apresentar uma atitude de oposição às intervenções do terapeuta. Inicialmente, este modo de agir da paciente trouxe dificuldades para o terapeuta, que necessitou esperar algum tempo para poder compreender o significado de suas atitudes contraditórias e também para descobrir uma maneira de agir que fosse efetivamente terapêutica.
No atendimento de Maria podemos destacar algumas dificuldades da paciente e do terapeuta e, assim, salientar que a psicoterapia é, também, um processo de descoberta do terapeuta, através do qual precisa descobrir, no seu modo de agir e de se relacionar, aquele que favoreça o desenvolvimento do próprio paciente.
Para finalizar, queremos relembrar que, na proposta terapêutica fenomenológica-existencial, a atitude e a atuação do terapeuta não podem ser definidas previamente e de modo genérico, uma vez que cada paciente apresenta sua singularidade, que necessita ser considerada.
Notas:
(1) Trabalho apresentado na 2ª Jornada da Clínica "Ana Maria Poppovic" da PUC-SP.
(2) Psicóloga, professora e supervisora da PUC-SP. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
(3) Psicólogos e estagiários do Aprimoramento Institucional da Clínica A.M.P. da PUC-SP.
(4) Cardinalli, I.E. "Daseinsanalyse e Psicoterapia". Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse. São Paulo, no. 9, pp. 11-18, 2000.
Bibliografia:
Boss, Medard. Existential Foundations of Medicine and Psychology. New York, Jason Aronson, 1979.
Cardinalli, I. E. "Daseinsanalyse e Psicoterapia". Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, no.9, pp. 11-18, 2000.