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BOLETIM CLÍNICO - NÚMERO 15 - JUNHO/2003

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


8. RECORTES DO TRABALHO NAS OFICINAS TERAPÊUTICAS PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM GRAVES TRANSTORNOS EMOCIONAIS - Camila Pedral Sampaio (1), Carolina Montellano(2), Paulo A. Lopes (2) e Maity Moraes (3)

O projeto Oficinas Terapêuticas, destinado ao tratamento de crianças autistas e psicóticas, teve início em 1996, na Clínica “Ana Maria Poppovic”, como atividade de estágio para os alunos do 5º ano da Faculdade de Psicologia da PUC-SP. Desde então, foi alcançando uma crescente complexidade, a partir da formação de parcerias com outras instituições, entre elas a Psiquiatria Infantil da Santa Casa e o Núcleo de Referência da Psicose, do Instituto Sedes Sapientiae, num convênio de cooperação técnica que permitiu ampliar as ações terapêuticas desenvolvidas no âmbito da Clínica para os processos de inclusão escolar dos pacientes. Além disso, constituiu-se também como local de estágio do Aprimoramento da Clínica.

No presente momento, as ações desenvolvidas no Projeto concentram-se em dois grandes braços, ambos considerados como perspectivas diferentes de estratégias terapêuticas para essas crianças e adolescentes. De um lado, temos o trabalho desenvolvido na Clínica, que se sustenta num tripé:

1) Oficinas terapêuticas (três oficinas oferecidas a crianças – música, rádio e teatro; e duas oficinas oferecidas a adolescentes – comunicação e expressão), que são trabalhos terapêuticos grupais com as crianças e os adolescentes atendidos, especificados pela utilização de um suporte material diferente em cada uma delas. Consideramos que estes diferentes suportes materiais representam uma oferta a estas crianças de diferentes possibilidades de enlace com dimensões da nossa vida cultural, o que, no caso específico dessa população, temos avaliado como um elemento fundamental para o desenvolvimento de ‘enganches’ para a possibilidade de inserção existencial numa rede de convívio com outros e de significação de suas expressões singulares;

2) Grupo de pais: ocorre simultaneamente ao trabalho das oficinas e tem sido um local onde os pais podem partilhar suas experiências e descobrir-se como pessoas que são algo mais do que pais de crianças com problemas. É fundamentalmente um local de troca de experiências e de perspectivas de ação, bem como de reconhecimento dos próprios sentimentos e dos direitos relativos à cidadania de seus filhos, direitos em relação aos quais os pais, de início, encontram-se freqüentemente pouco reivindicativos; 3) Trabalho terapêutico com as crianças e suas famílias: as famílias são atendidas em módulos bastante diferentes, segundo suas possibilidades e necessidades: há trabalhos que ocorrem na dupla mãe-filho, há trabalhos que ocorrem individualmente, há trabalhos que ocorrem com o núcleo familiar. A perspectiva é o tratamento terapêutico, no sentido de relativizar e transformar as posições ocupadas e fixadas pelos membros da família, potencializando novas possibilidades de relação entre eles e da família com o seu ambiente social. Em todo esse trabalho, mantemos como perspectiva teórica de base a Psicanálise. O que, sabemos, não significa uma orientação em uníssono. De fato, é nas reuniões clínicas semanais que essas orientações são postas em circulação e debatidas, muitas vezes resultando em seminários teórico-clínicos, visando sempre a criação – por vezes invenção – de uma inteligibilidade possível para as questões que estas crianças e suas famílias nos formulam.

O outro braço do Projeto é o trabalho de inclusão escolar destas crianças e adolescentes na Rede Municipal de Ensino regular. Aqui, como parte do projeto terapêutico, projeta-se a inclusão escolar de cada paciente, segundo as necessidades e possibilidades de cada caso. Desenvolvidas em parceria com o Núcleo de Psicoses do Sedes, as estratégias aqui envolvem ações extremamente diversificadas e várias modalidades de trabalho: capacitação de professores, acompanhamento e orientação das escolas – em parceria com os NAEs das diferentes regiões metropolitanas –, Acompanhamento Terapêutico das crianças nas escolas, o que por vezes se desdobra em Acompanhamento Terapêutico em espaços da sua comunidade. Como ação inicial, visando a entrada na escola das crianças, desenvolve-se, numa escola municipal, uma Oficina Psicopedagógica que, além dos nossos pacientes, beneficia também a população da escola e que consiste em propiciar para as crianças um palco de experiências relativas ao campo escolar e em promover na escola uma reflexão sobre o pensamento inclusivo. Todo esse trabalho se fundamenta na idéia da criação e sustentação de redes crescentemente inclusivas pelas quais as crianças e suas famílias possam movimentar-se, ampliando suas possibilidades de circulação e trocas sociais.

De modo geral, como se vê, o projeto pauta-se pela diversificação das ações e estratégias terapêuticas desenvolvidas junto às crianças e seus familiares, pluralidade que é também expressa na diversidade de agentes terapêuticos, com inteligibilidades diferentes sobre o fenômeno da psicose, que atuam no projeto. Temos considerado que essa diversidade e a interlocução constante entre nós em reuniões clínicas e supervisões representa, de fato, uma potência neste projeto. Potência no sentido de formulação de interrogações, de encaminhamento de ações específicas junto às crianças e aos adolescentes e de aprofundamento no estudo e na compreensão sobre as psicoses e o autismo infantis. Enfim, encontrarmo-nos atravessados por formulações e questões oriundas de lugares teóricos e experienciais muito diversos permite que reconheçamos neste trabalho um campo fértil de formação de terapeutas e de discussão de estratégias terapêuticas. Potencialmente, isto configura um fecundo terreno para o desenvolvimento da pesquisa com o método psicanalítico.

Digo potencialmente porque o projeto, em sua configuração atual, não está definido como um projeto de pesquisa, mas está fundado no atendimento aos nossos pacientes. Elaborado como um procedimento de tratamento clínico, este projeto configura-se, em si mesmo, atualmente, como um campo de pesquisa no qual têm sido formuladas algumas hipóteses para o tratamento de crianças com graves distúrbios emocionais. Ao longo do tempo podemos verificar a validade dessas hipóteses. O que nos falta, apesar de alguns ensaios tímidos, é a condição de juntar nossos dados, refletir sobre eles de forma mais organizada e, finalmente, divulgá-los. Esta é uma oportunidade e o incentivo para esta reflexão.

Baseados numa metodologia psicanalítica fomos, pouco a pouco, desenvolvendo um método próprio: oficinas, grupos de pais, trabalho terapêutico com as famílias, projeto de escolarização para as crianças, reuniões de toda a equipe, congregando profissionais de diferentes graus de qualificação. Em todas essas frentes, somos fundamentalmente interrogados pela experiência, tendo em vista precisar o horizonte de nossos objetivos e os instrumentos conceituais de que dispõe nosso entendimento. Interessa-nos aqui exemplificar esse processo contínuo de reflexão, que é efeito da fertilização de nossa prática por perguntas que o trabalho nos coloca, com fragmentos das produções escritas que resultaram do interesse, por parte dos terapeutas, no aprofundamento das questões despertadas pelo cotidiano do trabalho em alguns desses campos, particularmente no tocante ao processo de escolarização e no trabalho clínico em oficinas.

A experiência de trabalho com estas crianças nas Oficinas nos toca com uma infinidade de perguntas. Para começar a falar deste trabalho, portanto, torna-se forçoso escolher um recorte que permita diferenciar algumas questões iniciais. O recorte aqui escolhido diz respeito à importância de uma reflexão acerca do equilíbrio entre acolhimento e promoção de autonomia em nossas ações terapêuticas cotidianas com essas crianças.

Estamos falando de crianças e, portanto, de pessoas que, estando no início da construção de seus modos de existir, agir e sentir o mundo, requerem, no trato com elas, cuidado, amor, parâmetros, limites e acolhimento, tanto no que se refere à sobrevivência e integridade física quanto no que respeita ao processo de construção de sua subjetividade. No entanto, no horizonte de nossa prática temos como meta à construção e ampliação de suas possibilidades de autonomia. E isto, entendemos, se efetiva, a princípio, no minúsculo, nas pequenas conquistas no microcosmo cotidiano, para as quais o trabalho nas Oficinas e o olhar terapêutico que vamos construindo permite que voltemos nossa atenção. Nossa prática é, assim, atravessada pela dupla tarefa de acolher e ao mesmo tempo apostar nas possibilidades de invenção que têm as crianças.

Se esta dupla tarefa pode ser reconhecida no trabalho com qualquer criança, no caso de crianças autistas e/ou psicóticas ela se faz sentir muitas vezes como um dilema gritante que interroga nosso: - que fazer. Ora, sabemos que, na dinâmica psicótica, muitas vezes, a criança e a família experimentam um grau de indiferenciação em que não se consegue distinguir onde começa um e onde termina o outro. Nesse emaranhado, o Eu e o Tu se confundem e um se transforma e se configura como extensão do outro. O trabalho terapêutico consiste, em relação a este aspecto, em cuidadosamente proporcionar uma diferenciação, um desatar desse emaranhado, possibilitando um modo de existência mais autêntico e singular. Ao mesmo tempo, estas crianças se colocam freqüentemente em riscos objetivos e em situações impossíveis em que a falta de cuidado poderia se transformar em negligência. Assim, pensamos que a relação entre cuidado e promoção de autonomia apresenta-se como questionamento fundamental para a construção de uma postura no encontro com essas crianças. Essa questão poderia ser ilustrada por dezenas de situações que vivemos no cotidiano de nosso trabalho. Provisoriamente, a conclusão a que podemos chegar é a de que é necessário estar atento a esse balanço, a essa delicada composição, para que possamos nos deixar tocar, para que tenhamos um olhar generoso, buscando um encontro com essas crianças numa dimensão de alteridade.

Exatamente a questão da relação com a alteridade e do desenvolvimento das possibilidades vinculares dessas crianças (e de suas famílias) nos remete a outro campo do nosso trabalho, a saber, o da inclusão escolar das crianças atendidas, onde outro conjunto de questões nos surgem como interrogantes da prática. Aqui, uma perspectiva orientadora fundamental é a da necessidade de estabelecer e fortalecer vínculos, durante o processo de inclusão, entre a escola, a família e os equipamentos de saúde da região.

Partimos de uma primeira interrogação. Em que situações podemos dizer que se requer que uma criança seja incluída? Quando ela está excluída do campo social, por não participar de atividades concernentes à sua idade e situação. Mas não se trata apenas de inserir uma criança, tida, por exemplo, como autista, numa escola comum. Nossa idéia é que a criança esteja minimamente familiarizada com um ambiente escolar para que possamos trabalhar junto a ela na escola. Desta forma propomos, nas oficinas, a exploração de materiais encontrados na escola e, mais especificamente na Oficina Psicopedagógica, propomos para as crianças a vivência numa escola real e concreta da rede pública de ensino, interagindo com crianças regularmente matriculadas e com os professores e funcionários lá presentes.

Em todo esse processo, não se trata de aprender uma nova técnica de manejo com crianças. Trata-se de desenvolver uma atitude, um novo olhar que convide a criança portadora de necessidades especiais e também a criança normal para uma relação de desenvolvimento. Uma postura que busque parcerias integre informação e facilite a criatividade. Assim, o processo de inclusão escolar destas crianças tem 3 principais frentes de trabalho: um com a escola, sua equipe técnica e funcional; outra com a família e outra com a criança e professor, no cotidiano da sala de aula.

O relacionamento entre esses diferentes segmentos da realidade exige de nós, insistentemente, novas formulações sobre a questão de porque pensar a inclusão de crianças e adolescentes tidos como ‘loucos’ em salas de aula comuns. Ora, a escola é o lugar da criança e do adolescente em nossa sociedade. É lá que parte da vida acontece e que podemos nos descobrir pertencendo a um grupo, a uma instituição, a algo maior. Por mais romântico que isto pareça, tem conseqüências concretas para a criança e para todos que a rodeiam.

Enquanto a escola especial ou mesmo a sala especial estigmatiza a criança e nela imprime um registro oficial de aluno especial, a sala comum abre espaço para o surpreendente, para a superação de expectativas e, acima de tudo, para um grande aprendizado no convívio com as diferenças. A tolerância pode ser desenvolvida e levada para fora da sala de aula, para os espaços da escola, para a família e para a comunidade. Não se trata de desenvolver uma capacidade de suportar uma situação que nos é desagradável, perto de pessoas diferentes com as quais ainda não sabemos lidar. Tolerância aqui é entendida como um potencial para lidar com a novidade, com o inesperado, com novos desafios e, porque não, com a estranheza. Indo além, esta atitude é fundamental também para que o professor, o coordenador, o faxineiro e o bedel possam melhor trabalhar também com as crianças ditas ‘normais.’ Aliás, isto é colocado pelos próprios professores com os quais temos trabalhado, o que nos ensina que, além de questões, temos encontrado também neste trabalho respostas, depoimentos extremamente importantes, que nos ajudam a redimensionar os problemas que de início podíamos reconhecer.

Com efeito, a fertilidade das interrogações e formulações que têm se colocado para nós, a cada passo, configura um terreno extremamente fecundo para o desenvolvimento de pesquisas mais formalizadas, o que vemos se delinear e expressar em produções escritas dos estagiários, aprimorandos e colaboradores com quem temos trabalhado. O que apresentamos nesta jornada foi uma pequena amostra das reflexões que têm sido feitas nos diferentes campos do trabalho: sobre os empreendimentos e descobertas no campo da inclusão escolar (Paulo A. Lopes), sobre o trabalho do grupo de pais (Maity Moraes) e sobre o trabalho das crianças nas Oficinas (Tuca Porto).

Notas
(1) Professora Assistente Doutora, Supervisora do Aprimoramento nas Oficinas
(2) Psicólogos Auxiliares voluntários do Projeto Oficinas
(3) Aprimoranda nas Oficinas em 2002.