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Algumas curiosidades...
Há uma curiosa história sobre as camisas do time do Corinthians. No início elas eram de cor creme, com punhos e gola pretos.
Após muitas lavagens a camisa foi perdendo a cor e a diretoria do clube, que não tinha dinheiro para comprar um novo jogo de camisas, decidiu adotar o branco como cor oficial do uniforme do time e continuar com o antigo jogo de camisas.
O uniforme ideal foi definido em 1917, sendo o número um constituído de camisa branca e calção preto e o dois, de camisa preta, com listras verticais brancas e calção preto.
Nascia então o grandioso alvinegro que conquistou, por sua simplicidade, milhares de torcedores e simpatizantes e o faz até hoje com pompa e diversidade que combina o preto e branco.
O símbolo do Corinthians é reconhecido mundialmente, mas a resolução gráfica dada à forma final só surgiu em 1933, cunhada pelo artista plástico e ex-jogador do time, Francisco Rebolo Gonzales. Ao círculo contendo a bandeira de São Paulo, o pintor acrescentou, em vermelho, os remos e a âncora, representativos dos outros esportes praticados no clube.
Nasceu com a simplicidade das iniciais CP, indicativas de Corinthians Paulista. Passou a ser um brasão com as iniciais SCP, em 1917, quando se completaram os elementos SCCP, Sport Club Corinthians Paulista.
O mascote é uma imagem de coisa, pessoa ou animal, que se considera capaz de proporcionar sorte, felicidade, bem-estar.
Entre outros símbolos, o mascote do time é a figura inspirada no romance de Alexandre Dumas, Os Três Mosqueteiros, de 1844. O lema, “Um por todos, todos por um” adotado pelo Corinthians, carrega a significação que agrega todos os operários e pertencentes das classes inferiores, irmanados por um só time!
A escolha desse mascote se deu em 1913, quando houve a separação do futebol oficial de São Paulo em duas entidades. Na Liga Paulista de Futebol, ficaram apenas três times: Americano, Germânia e Internacional. Quando o Corinthians venceu as eliminatórias e foi aceito na liga, passou a ser considerado o quarto mosqueteiro, D’Artgnan.
Hoje, ele é o único sobrevivente dos Três Mosqueteiros, posto que alguns daqueles clubes não mais praticam o futebol.
Outro ícone importante: São Jorge enfrentando o dragão. Trata-se de um cavaleiro medieval que, de forma destemida, arrisca sua vida, inspirado pelo amor ao próximo e pela fé em Deus, empunhando sua espada para destruir o dragão, que amedronta os fracos e oprimidos, representados pela frágil Santa Terezinha. São Jorge é o Santo Guerreiro e também o Santo Padroeiro do Corinthians por força da identificação sócio-histórica que existe entre o clube e o santo.
O herói
Os heróis são personagens que simbolizam a união de forças terrestres e celestes. Não são imortais como os deuses, mas são repletos de bravura e astúcia.
“Característica do herói é ser dotado de força física incomum, de destreza extraordinária e de uma coragem a toda prova”.(Dicionário de Símbolos, 1988, p. 489).
Todo herói inicia seu percurso quando ainda não sabe ser dotado de tais poderes, é o protagonista que descobre ou realiza alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiência. É capaz de doar sua vida por algo maior do que ele mesmo.
Em seu percurso, o herói deve realizar uma proeza. Segundo Joseph Campbell, em O Poder do Mito, essa proeza pode ser de dois tipos: uma é a proeza física, quando o herói pratica algum ato de coragem; outra é de natureza espiritual, quando o herói aprende a lidar com o nível superior da vida humana e retorna com uma mensagem elevada.
Há também que realizar uma façanha. Trata-se, pois da busca pela recuperação de alguma perda muito significativa.
O herói então, parte para uma série de aventuras que ultrapassam o usual em busca dessa coisa usurpada e/ou da experiência nova. O ciclo se fecha com o seu retorno, após sua partida em direção às aventuras.
O motivo básico do ciclo universal do herói é evoluir da imaturidade psicológica para a coragem da auto-responsabilidade e confiança, o que requer morte e ressurreição, como qualquer outro ser humano.
No entanto, o herói abandona determinada condição e encontra a fonte da vida, que o conduz a uma condição mais rica e madura.
Diferente dos humanos comuns, ele será submetido a testes, provações e sofrimentos concebidos para testar se o pretendente pode realmente ser um herói, e verificar se está apto a carregar essa condição para o resto de sua vida. Será que ele pode vencer essas dificuldades? Será que é digno de realizar essa tarefa?
As provações são muito significativas, pois não há recompensa sem renúncia. Deve-se pagar um preço pelas suas realizações e o herói abre mão de alguma condição em favor de superar as provações a que está destinado. Quando abre mão de si mesmo em função de outro ou de algo, ele passa por uma transformação de consciência que se dá por intermédio das provações ou por revelações iluminadas.
“Quando deixamos de pensar prioritariamente em nós mesmos e em nossa autopreservação, passamos por uma transformação de consciência verdadeiramente heróica”.(O Poder do Mito, 2001, p.134)
Em todas as histórias de heróis, há um momento de redenção, em que há um ato supremo de realização, vencer o mal, salvar uma princesa ou uma nação, por exemplo; senão, não haveria proeza heróica.
O objetivo moral do heroísmo é, por natureza altruísta: salvar um povo, uma pessoa, ou defender uma idéia. O herói se sacrifica em nome de alguma outra significação que revestirá de sentido a sua existência.
Para J. Campbell há dois tipos de heróis, aqueles que escolhem realizar uma empreitada, ou seja, preparam-se para realizar certa proeza e os que são lançados a viver aventuras, por exemplo; alistar-se no exército, quando isto não é uma opção.
Toda sociedade tem uma necessidade de heróis, porque precisa reunir sob uma mesma intenção as tendências individualistas, para poder seguir algum rumo civilizador. Eles são importantes como representantes da vida, de iluminação para abrir um novo caminho à coletividade.
Muitos doam suas vidas, morrem por algo que buscam e, da vida sacrificada, nasce uma nova experiência que pode não ser a do herói, mas que desvenda uma nova perspectiva de ser, de vir a ser. Exemplo disso é Cristo, que foi crucificado para salvar a união de seu povo.
O feito típico do herói, sua jornada, é a partida, realização e retorno. No entanto, seu engenho parece evoluir à medida que evolui a cultura.
Os heróis vão-se adaptando às demandas de cada época, mas sempre percorrem um mesmo caminho de partida em busca de algo, realização de uma façanha e o retorno com uma mensagem que há de causar mudanças, seja nas pessoas, nele próprio ou num modo de pensar.
Muitas vezes nos percebemos nessa busca de mitos que nos revelem sabedorias e conhecimentos que sejam necessários aos momentos de nossas vidas, ao momento de um país, uma nação, ou mesmo mundial. Estamos sempre buscando heróis e mitos que representem nossas potencialidades, nossas lutas incessantes com as transformações psicológicas e os acontecimentos de nossa época.
É interessante observar o percurso do herói, normalmente de origem humilde, que descobre ou realiza feitos inimagináveis pela sua simplicidade.
Ele passa por muito sofrimento, testemunha e observa a dor dos outros, daí seu sentimento de compaixão.
Todos somos um tanto heróicos por estarmos nesta vida e é por isso que procuramos aqueles com os quais possamos nos identificar, tanto pela trajetória percorrida, quanto pelos feitos e descobertas realizadas, muitas vezes imitamos atos e feitos heróicos para transformar nossas vidas e iniciar caminhos que reclamavam por mudanças.
Basta estar vivo para se tornar um herói e viver a aventura da vida. Em seu livro O herói de mil faces, Joseph Campbell fala mais especificamente da aventura do herói que resume-se a sua partida, iniciação e retorno. Afirma que a aventura tem início com um chamado que pode ser evidenciado por um erro, ou seja, algo acontece na vida do indivíduo que desencadeia sua aventura revelando um mundo desconhecido, ou o herói pode simplesmente estar caminhando à toa e ser atraído por algum fenômeno capaz de mudar sua vida.
Para Freud, os erros são resultados de desejos e conflitos reprimidos, não são meros acasos. O “chamado da aventura” é o mesmo que dizer que o herói foi convocado pelo destino para afastar-se da sua vida em sociedade, para uma região desconhecida. Nessa aventura, ele pode agir por vontade própria ou ser levado para algum lugar desconhecido.
Em sua partida, após ultrapassar o limiar de sua aventura, o herói penetra num mundo de forças desconhecidas, quase sempre recebendo ajuda de auxiliares para cumprir suas tarefas e desafios, até realizar a suprema provação, seguida da recompensa regeneradora.
Seu primeiro encontro durante a jornada é com o auxiliar, uma figura protetora, amuletos que o protejam das dificuldades a serem contornadas ou superadas.
Todos aqueles que assumirem os riscos e tiverem competência e coragem vencerão o perigo.
A iniciação do herói acontece quando ele tem que passar por provas e então chega ao segundo estágio de sua jornada que Campbell chamou de “purificação do eu” onde há a dissolução, transcendência e transmutação das imagens antigas para as atuais, mais amadurecidas.
O final da jornada do herói é a bem-aventurança e isso só é alcançável depois de passar pelas provas a que for submetido.
“A partida original para a terra das provas representou, tão-somente, o início da trilha, longa e verdadeiramente perigosa, das conquistas da iniciação e dos momentos de iluminação”.(O herói de mil faces, 1949, p.110)
Só então, quando tem fim a busca do aventureiro, ele retorna ao lugar de onde partiu com o seu troféu transmutador da vida e pode salvar o mundo onde sua bênção pode servir para a renovação da nação, do país, do sistema solar.
Portanto, para que a jornada do herói tenha sido completa e repleta de significações, é necessário que se cumpra o ciclo de partida, iniciação e retorno.
O herói é um motivo arquetípico baseado na superação de obstáculos e conquista de determinados objetivos. Herói vem do grego e significa, ‘aquele que nasceu para servir’.
Como arquétipo, o herói é uma estrutura potencial do inconsciente coletivo, construída no momento em que um indivíduo consegue vencer suas próprias limitações e alcançar uma dimensão passível de romper paradigmas.
Os heróis são mensageiros da novidade, da mudança. São representantes das forças psíquicas que desafiam a estagnação e acessam núcleos vitais de individuação em nossos inconscientes.
Por terem começos muito difíceis, pregam a integração do ser humano em todos os seus aspectos e com todos os seus limites.
Muito provavelmente o que nos comove é a conjugação da sua força com a sua vulnerabilidade. É aquele esforço de conciliar e integrar os opostos que traz à tona as emoções mais profundas que temos.
O herói é importante para nosso imaginário, porque nos identificamos facilmente com ele, pois reflete nosso arquétipo de não hesitar, não termos dúvidas durante uma ação. O herói toma decisões sem ambigüidade, sem dúvidas e consegue realizar o que existe de melhor.
É importante perguntar, o que leva um indivíduo a ser influenciado por um grupo? Por pessoas a quem está ligado por algo, mesmo que essas pessoas, em outros aspectos, sejam a ele estranhas?
No texto ‘Psicologia de Grupo’, Sigmund Freud explica o comportamento de um indivíduo como membro de algum grupo, seja ele uma religião, uma nação, profissão, ou um grupo de pessoas que se organizaram em prol de um objetivo definido, pela existência do instinto social.
A psicologia de grupo interessa-se por estudar os impulsos instintuais condutores indivíduo que se encontra sob certa condição a pensar, sentir e agir de maneira completamente diferente da que seria esperada para ele.
Le Bon, citado por Freud, reconhece como peculiaridade mais notável a que se encontra num grupo psicológico não importando as diferenças de modos de vida, ocupações ou inteligência dos indivíduos, uma vez transformados em grupos. Nessa situação, surge uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, agir e pensar de maneira diferente daquela que existiria, caso estivesse isolado em sua individualidade.
Para haver a união dos indivíduos num grupo, deve haver alguma coisa que sirva de elo entre eles.
Le Bon diz que as capacidades individuais desaparecem num grupo e que assim, sua distintividade desvanece, emergindo o inconsciente racial. Ou seja, há a homogeneização do heterogêneo.
Ainda segundo Le Bon, existem três fatores que explicam o comportamento do indivíduo no grupo:
O primeiro é o de que, em grupo, o indivíduo sente-se poderoso, invencível,
desaparecendo o sentimento de responsabilidade que controla os indivíduos.
O segundo fator seria o contágio, fenômeno que se estabelece facilmente.
“Num grupo, todo sentimento e todo ato são contagiosos, e contagiosos em tal grau que o indivíduo prontamente sacrifica seu interesse pessoal ao interesse coletivo”.(S. Freud, Obras completas, v. XVIII Ed. eletrônica)
O t
erceiro fator, o mais importante, determina nos indivíduos de um grupo características que não existiriam em circunstâncias insulares.
Segundo Freud, as condições nas quais o indivíduo é colocado em grupo permitem que ele liberte os seus impulsos instintuais inconscientes e as características que surgem, são manifestações desse inconsciente.
Um indivíduo que perdeu sua personalidade consciente perdeu sua vontade e discernimento e obedece a todas as sugestões do grupo, tendo atitudes contraditórias com seu caráter e seus hábitos. Uma vez agregado ao grupo, age como se estivesse hipnotizado.
As principais características de um indivíduo que faz parte de um grupo são: perda da personalidade consciente, predomínio da personalidade inconsciente, mudança de sentimentos e idéias pelo contágio, tendência a transformar idéias sugeridas em atos.
Em grupo, um indivíduo culto, quando numa multidão, pode ser um bárbaro, já que age por instinto.
Um grupo age quase que exclusivamente por seu inconsciente, é impulsivo, mutável e irritável. O grupo não consegue suportar a demora entre o que deseja e a realização desse desejo. Parece que em grupo, nada é impossível.
Todas as inibições do indivíduo desaparecem, quando está reunido em grupo por um ideal aspirado por todos os devotos.
Assim posto, para a formação de um grupo, é preciso que os indivíduos tenham algum fator em comum uns com os outros, um interesse comum, uma emoção comum. Entretanto, o resultado mais notável da formação do grupo é a exaltação da emoção produzida em cada integrante do grupo.
Pode-se dizer, portanto, que um grupo é excessivamente emocional, impulsivo, instintivo, sugestionável. É importante estar atento a esses fenômenos que ocorrem quando há a formação de um grupo e a identificação de seus indivíduos com o líder, e com o lugar comum que os uniu, fazendo com que seu comportamento em grupo seja diferente do comportamento como indivíduo.
A Psicologia Analítica fala deste fenômeno através do conceito de inconsciente coletivo, ou seja, há dentre todos aqueles indivíduos do grupo um arquétipo comum que os agrega diante de algo; no caso, o Corinthians.
Portanto, seria plausível dizer que o arquétipo do herói esta presente no inconsciente coletivo dos torcedores do Corínthians.
Mas, depois disso tudo, de onde surge a hipótese de que o Corínthians possa ser uma expressão do mito do herói?
Como vimos anteriormente, o herói deve percorrer um caminho em sua vida que o caracterize como tal.
Normalmente tem origem humilde e vê-se inserido numa aventura passando por lugares obscuros e desconhecidos.
Em sua jornada, encontra diversos obstáculos e façanhas que terá que realizar para conquistar seu posto heróico, vencer proezas, passar por testes e provações que comprovem sua capacidade e consagrem seu reconhecimento.
Enfim, a jornada do herói resume-se a sua partida, realização e seu retorno, com algo ou alguma descoberta ou realização que mude a vida das pessoas, da cidade, país, nação e assim por diante.
O objeto desta análise é o fenômeno psicossocial Sport Club Corinthians Paulista.
Como vimos, sua história teve um início muito difícil. O clube foi fundado por cinco amigos da classe operária de São Paulo com o apoio de outros operários interessados no futebol, esporte que ganhava corpo e reconhecimento em 1910 aproximadamente. Todos eles eram moradores do bairro do Bom Retiro, relativamente distante da elite paulistana.
Após serem inspirados pela apresentação do Corinthians Team da Inglaterra, esses amigos reuniram-se e resolveram dar vida ao sonho de criar um clube que apresentasse um futebol tão belo e que o time fosse tão grande e significativo para os amantes do esporte, quanto aquele que haviam visto no time estrangeiro.
Tem início aí a jornada do Corinthians, instaurado como o herói que nos cabe nesta dissertação.
O futebol oficial em São Paulo era, antigamente, um esporte reservado para a elite. As classes mais baixas praticavam somente o futebol informal, ou seja, o jogo de várzea, sem o reconhecimento das associações esportivas da época.
Entretanto, mesmo com essa separação social, o futebol foi se difundindo na sociedade paulista e tornou-se muito popular como denominador comum ao interesse de todas as camadas sociais.
Na aventura do nosso herói, cumpriu-se o ritual de iniciação ou seu primeiro desafio, ao provar para a Liga Paulista de Futebol e para ‘os melhores’ de nossa sociedade que, além da sua capacidade esportiva, constituía um time, cujos jogadores comportavam-se de maneira adequada aos padrões de educação estabelecidos pela sociedade.
O time teve que enfrentar, em 1913, após uma tentativa frustrada de ser aceito na Liga no ano anterior, um torneio eliminatório com mais outros três times aspirantes à vaga oferecida para o futebol oficial. É preciso considerar o esforço, pois o time que vencesse, seria dono da vaga e passaria a ser membro da Liga Paulista de Futebol, o que representaria sua conquista de legítima respeitabilidade.
Essa foi a primeira proeza realizada por nosso herói. O Corinthians venceu todos os jogos e comprovou para a elite de São Paulo que sua educação era satisfatória para disputar campeonatos com as equipes das camadas privilegiadas.
Esse movimento inicial foi responsável por uma série de façanhas realizadas em jornada histórica que perdura até os dias atuais e mantém sua aura entronada graças ao reconhecimento.
Todo herói vive muitas experiências de sofrimento ou pode também sentir e representar o sofrimento dos outros. Neste caso, podemos dizer que o Corinthians representa, no momento de sua fundação, a luta da classe operária por uma maior igualdade social.
Quando é aceito pela Liga Paulista de Futebol para participar de campeonatos em meio à elite, é como se fosse um representante da classe pobre e operária no poder, revertendo a pirâmide estabelecida pelas camadas dirigentes.
Podemos dizer que essa ‘infiltração’ do Corinthians atendeu ao ‘chamado da aventura do herói’, que passou a representar, dentro de campo, as lutas travadas por essa massa carente de alguém que a representasse diante de tanta desigualdade e dificuldade de aproximação. A isso equivaleria reconhecer que o destino o convocou para o papel de herói.
Vale a pena revermos as provações e testes pelos quais precisou passar para firmar-se no futebol oficial de São Paulo.
Em 1915 o time foi aceito pela APEA como seu integrante, mas não pôde participar do campeonato. A entidade permitiu que os jogadores pudessem ser emprestados a outros clubes para que não ficassem parados; além disso, havia prometido ao Corinthians a realização de jogos contra todos os times do campeonato.
O fato é que esses jogos nunca aconteceram, freqüentemente adiados ou desmarcados, pela exclusão social. Fica clara, portanto, a discriminação dos times da APEA em relação ao Corinthians, sensível para perceber que estaria fadado a disputar apenas uma segunda divisão, como último recurso à sua emancipação.
Os clubes que estavam com seus jogadores emprestados não queriam que o time voltasse a jogar, pois teriam que devolvê-los, ou seja, o interesse era realmente usufruir dos bons jogadores e acabar com a LPF, sua concorrente.
Por não jogar no campeonato, o clube entrou numa crise econômica, já que não recebia o dinheiro da renda dos jogos. No ano seguinte retornou para a LPF, onde podia participar do campeonato e mostrar seu futebol.
Um dos primeiros grandes feitos do nosso herói foi a conquista do Campeonato do Centenário da Independência contra o Paulistano. Com esse título garantiu sua grandiosidade por cem anos.
Em 1954, após muitos títulos paulistas e fama crescente, assim como sua torcida, o Corinthians realiza mais uma proeza. Tornou-se Campeão do Quarto Centenário num jogo emocionante contra o arqui-rival Palmeiras. O jogo acabou empatado em 1 a 1, mas para o timão, esse resultado era mais do que suficiente.
Depois desse título o time entra numa fase de grande sofrimento, não vence nenhum campeonato apesar de ter bons jogadores. Nada do que é feito resolve a crise que se abate sobre o herói e um longo período de 23 anos de sofrimento e busca tem início no Parque São Jorge.
Nosso herói passou por dificuldades tremendas, mudou presidentes, contratou novos jogadores, entre eles Roberto Rivelino, grande ídolo corintiano e Mané Garrincha, um mestre na arte do futebol. Mesmo com essas estrelas, não foi possível o acesso aos títulos.
Duas realizações aconteceram que aumentaram as esperanças dos torcedores, uma ocorreu em 1968, quando abateu o time do Santos por 2 a 0, após passar treze anos sem conseguir vencê-lo.
Outro foi a invasão corintiana ao Maracanã, Rio de Janeiro, em 1976, quando mais de setenta mil torcedores tomaram conta da cidade maravilhosa, para apoiar o Corinthians na semifinal do Campeonato Brasileiro contra o Fluminense.
O time conseguiu a vitória e a torcida se preparou para soltar o grito de campeão; mas o título ficou com o Internacional de Porto Alegre.
Somente em 1977, a torcida pôde soltar o grito contido havia vinte e três longos e difíceis anos quando, numa final memorável contra Ponte Preta de Campinas, o jogador Basílio tornou-se o herói símbolo da realização do sonho corintiano, ao marcar o gol da redenção do Corinthians no Morumbi lotado, encerrando tantos anos de encubação e sofrimento. A maioria dos torcedores relata este jogo como uma das maiores emoções experimentadas com o time.
Em 1982, a Democracia Corintiana, movimento reinvindicador de maior liberdade de expressão contra o autoritarismo vigente na época e que, pela
expressividade, reverberou e se refletiu nos seus torcedores e na sociedade.
Mais dois feitos inéditos de grande importância na construção vital do herói: o primeiro foi o Campeonato Brasileiro em 1990.
O segundo foi o Campeonato Mundial Interclubes da FIFA em 2000.
O time foi superando, ao longo de sua história, diversos obstáculos; entretanto, como todo herói, teve ao longo de seu percurso a ajuda de alguns auxiliares para vencer barreiras e realizar sua missão.
No caso do Corinthians, podemos citar alguns jogadores símbolos como auxiliares da heroicidade; entre outros, Neco, Luizinho, Basílio, Wladimir, Casagrande, Sócrates, Biro Biro, Neto, Ronaldo, Marcelinho Carioca e Dida.
Além dos jogadores, o maior e mais importante suporte auxiliar do time, que o acompanha desde 1910, é o seu torcedor. O corintiano ama seu timão, vive por ele, é com certeza o 12° jogador em campo. O que mais impressiona é a lealdade e fidelidade do torcedor corintiano ao clube seja qual for a sua situação no campeonato e esse elemento o diferencia dos torcedores de outros times.
No período em que ficou sem títulos a torcida, ao invés de desistir do time e abandoná-lo, cresceu em número, dedicação e devoção.
Esse fenômeno da torcida corintiana nos remete a Freud e às teorias sobre psicologia de grupo.
Vimos que um indivíduo, quando se encontra inserido em algum grupo perde sua subjetividade, sua personalidade individual e ‘absorve’ personalidade coletiva.
Podemos observar este fato nas torcidas organizadas. “Para haver a união dos indivíduos em um grupo é preciso algo que os ligue”. Neste caso, o que os liga é o Corinthians.
Ele mobiliza emoções e sentimentos dos torcedores que passam a pensar e agir de maneira diferente da que agiriam se estivessem separados do grupo.
Vimos que o contágio é um fenômeno que acontece nos grupos e que justifica o comportamento de seus integrantes.
No caso do Corinthians há um gigantesco grupo de torcedores que, quando reunidos, vivem e agem em prol de seu time. Esse enorme grupo subdivide-se em outros grupos como: Gaviões da Fiel, Camisa 12, Pavilhão 9, entre outras. São as torcidas organizadas do Corinthians. Independente de qual torcida o indivíduo pertença; no estádio, todos vivem a personalidade coletiva de ser corintiano.
O fenômeno do crescimento da torcida do Corinthians, mesmo na fase do recolhimento sem títulos, é auspicioso para a reflexão acerca das emoções capazes de estar sendo mobilizadoras do grupo. É interessante observar que existe uma identificação do torcedor com a história do clube, uma história de barreiras removidas, de grandes batalhas e conquistas que reproduzem a imagem dos brasileiros e do Brasil.
Muitos torcedores justificam sua paixão pelo time dizendo que ele atrai porque é do povo, porque é o time da massa. Esse dado nos faz concluir que de fato, há uma identificação social dos torcedores na escolha do seu time. Esse fator social abrange questões dos momentos políticos pelos quais o país passou e refletem as contendas individuais, de cada torcedor.
Isso nos lembra a famosa história das camisas do clube que, originalmente, eram de cor creme e, com o uso, foram desbotando. Pela falta de dinheiro a diretoria admitiu o branco como cor oficial. Essa origem humilde permite que os torcedores se identifiquem com o time.
O Corinthians é um time movido pela paixão, pela mística de sua história e identificação social com os torcedores de maneira irrestrita.
As relações existentes entre a história do clube e a saga do herói consagram o Corinthians como expressão desse processo de mitificação. As dificuldades vencidas e passagens de sua história asseguram e documentam sua jornada heróica.
Por causa de todas as relações que existem entre os corintianos e o Corinthians, a fidelidade e a identificação individual de seus torcedores com a história do clube, podemos confirmar que o Corinthians é a representação do mito do herói.
Esse processo mítico tem como base o empreendimento de uma jornada difícil em busca de um objetivo, cujos obstáculos conquistados, são realizações dignas de sua heroicidade.
O Corinthians é um time que reflete em toda sua essência, humildade e luta constantes contra poderes que possam diminuir socialmente o indivíduo. Por meio de sua paixão pelo time, seus torcedores aguerridos são capazes de extravasar emoções e sentimentos significativos das situações cotidianas de repressão comportamental.
Portanto, ir a um jogo do Corinthians, é o mesmo que projetar naquele time todas as angústias, necessidades e desejos aliados a uma identificação com os outros torcedores, cuja atuação em grupo, permite a catarse coletiva de todas as emoções contidas.
É possível gritar, xingar, chorar, sorrir, se emocionar, amar e se alegrar com o Corinthians.
Nas páginas anteriores o leitor pôde fazer esta relação entre o herói e o Corinthians e chegar à conclusão a que chegamos: o Corinthians é o único time de futebol que mobiliza as emoções dos indivíduos de modo a transformá-lo num herói, num redentor, ou num viabilizador de suas realizações pessoais, mesmo que a vida não esteja tão bela quanto o título que foi ou poderá ser conquistado...
Segundo Washington Olivetto, a torcida do Corinthians se sente dona do time,
acredita ter posse sobre ele e diz que isso é fundamental para sua existência.
Temos que concordar: a recíproca é a base do amor constelar.
“Concluo. A questão do amor resume-se a essa possessão recíproca: possuir o que nos possui. Somos indivíduos produzidos por processos que nos precederam; somos possuídos por coisas que nos ultrapassam e que irão além de nós, mas, de certo modo, somos capazes de possuí-las”. (Amor Poesia Sabedoria, 1999, p.31).
Parecem-nos decisivas as manifestações de torcedores que resumem o Corínthians a uma só palavra: paixão.
Notas
(1) Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia – Faculdade de Psicologia da PUC-SP
(2) Psicóloga formada na Faculdade de Psicologia da PUC-SP em 2002
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