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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos



FÊNIX - UMA HISTÓRIA DE APRENDIZAGEM

Assim chegou Fênix, uma sorridente mulher de 38 anos, aparência simples, negra, bonita e estudante universitária de Pedagogia.

Sua preocupação inicial estava relacionada a um medo: de não conseguir dar aula após o término de seu curso. Preocupava-se com a possibilidade de "dar branco" na hora em que tivesse uma classe na sua frente.

Sua história de vida se inicia no interior de São Paulo. Mãe e pai lavradores, analfabetos (ambos falecidos), de poucos recursos financeiros e de hábitos simples. Sua família era composta, além dos pais, de oito irmãos, seis homens e duas mulheres. A mãe era acolhedora e o pai extremamente rigoroso.

Logo de início Fênix mostrou-se satisfeita com as sessões dizendo que aquele espaço era seu, um momento seu, um momento no qual alguém a escutava.

Fênix é a 6ª filha, todos anteriores a ela são do sexo masculino, sua chegada na família é querida e se constitui como um momento feliz para todos.

O pai era muito rígido, controlador, não permitia que Fênix e os irmãos brincassem na rua, pelo fato de não conhecer os vizinhos. Os filhos não tinham direito a voz, as verdades construídas eram as suas verdades, os filhos eram simplesmente ouvintes, obrigados a aceitarem as verdades do pai, sem direito a questionamentos. Quando um dos irmãos fazia "algo de errado" todos ficavam de castigo.

A mãe acolhedora teve seu primeiro filho aos 12 anos. Era uma mãe-menina que submetia-se ao marido, e dizia a Fênix para se tornar professora.

A alfabetização de Fênix se deu em uma escola rural pobre em recursos físicos e humanos, em que não havia materiais necessários para estudar e os professores não eram suficientemente capacitados para ensinarem.

Em seu universo, o conhecimento não era algo muito valorizado. Devia aprender coisas como lavar, passar e cozinhar, enfim, cuidar de uma casa. A escola era vista somente como um espaço para aprender a ler e a escrever. Ao começar a aprender a ler, sua escola não disponibilizava livros, então Fênix tinha como única referência de leitura a Bíblia, a qual era obrigada a ler para seu pai, que justificava essa atitude como uma forma de acompanhar a alfabetização da filha, entretanto Fênix não gostava de ler a Bíblia. Para se livrar de tal tarefa, passa a "pular" o que estava escrito, habituando-se a perder o contato com partes do texto. A Bíblia constituiu-se como única fonte de cultura, já que nenhum outro livro, ou mesmo a televisão eram permitidos em sua casa.

Aos 8 anos de idade já era obrigada a realizar serviços domésticos importantes, como, por exemplo, fazer o almoço para a família, e só podia fazer lição depois que o almoço estivesse pronto. Também passava roupa, o que acarretava a sobra de pouco tempo para as lições. Ao finalizar a 4ª série, com 11 anos de idade, deixou a escola.

Aos 18 anos veio para São Paulo e aos 19, estimulada por algumas pessoas de seu convívio, retornou aos estudos, freqüentando o curso supletivo do ensino fundamental e, posteriormente, o curso supletivo do ensino médio. Ficou grávida aos 26 anos e só voltou aos estudos com 36 anos, ao entrar na Faculdade de Pedagogia.

Sua expressão oral é falha, quanto à organização lógica do pensamento, à concordância verbal, concordância nominal e à pronúncia de grupos consonantais. Mostra-se insatisfeita com sua produção na faculdade, pois não compreende os textos lidos, tem dificuldades para compreender as consignas que lhe são transmitidas e não consegue redigir sínteses ou relatórios. Mesmo em temas que demonstra algum conhecimento revela desenvolvimento empobrecido das idéias.

Na etapa diagnóstica começamos a trabalhar com atividades que nos dessem referências sobre sua relação com o conhecimento, suas dificuldades na apropriação do conhecimento, sua relação com aqueles que ensinavam e o modo como utilizava seus mecanismos de assimilação e acomodação.

No decorrer do processo de atendimento fomos compreendendo, por meio de suas produções e de seus relatos, que, na época do ensino fundamental (1ª a 4ª séries), provavelmente, só foi privilegiado a memorização, o repetir. O vínculo estabelecido entre as informações fornecidas e o seu aprendizado se deu de forma verbalística, ou seja, o professor falava e os alunos tinham que reproduzir o dito, como se através da repetição fosse possível construir conhecimento.

Na escola e mesmo em casa, os ensinantes se colocavam em uma postura que impossibilitava Fênix de ser autora de seus pensamentos.

Seu vocabulário é empobrecido e apresenta vários erros de concordância, fatos talvez relacionados à sua pouca leitura e também à pobreza cognitiva de seus ensinantes-familiares. Não se trata de uma super valorização de uma linguagem culta contra uma linguagem regional e sim de uma constatação da sua dificuldade de ordem lógica, gramatical, fonética e simbólica.

Fênix tem dificuldades em decodificar textos, não compreende de forma total o que os textos querem dizer, tem dificuldades em sintetizar o lido, interpretando de forma equivocada as mensagens contidas, não chegando a usar os dados que os textos disponibilizam. Não consegue assimilar o conhecimento por meio de seus esquemas mentais, não existe interação entre o que ela lê e o seu conhecimento prévio.

Fênix teve seu desenvolvimento cognitivo bloqueado. Até sua entrada na faculdade seu vínculo com o conhecimento era frágil; nas séries iniciais houve pouco investimento da família para que ela explorasse todas as suas capacidades e, provavelmente, foi alfabetizada de forma mecânica, como se a alfabetização fosse simplesmente a aquisição de uma técnica, não lhe sendo permitido criar hipóteses sobre o que lia e escrevia. Há também uma mistura entre o aprender a ler e ler algo (a Bíblia) que, em princípio, não pode ser contestado, o que, certamente, contribuiu para Fênix não se permitir fazer inferências a partir dos textos que lia, diminuindo sua capacidade crítica e criativa.

O pai autoritário (de representante da lei, transforma-se na própria lei), com poucos recursos (era analfabeto) e de crença religiosa rigorosa, certamente foi um aprendente ouvinte, rico em esquemas práticos e pobre em esquemas simbólicos. Acordar, trabalhar, ir à igreja, eram as únicas atividades realizadas por eles, diz-nos Fênix. Neste caso, pensamos, os projetos de vida dessas pessoas eram inevitavelmente empobrecidos, havendo pouco lugar para a valorização da cultura, da leitura, do conhecimento em geral.

Ao fazer o supletivo do ensino fundamental e do ensino médio, Fênix fez pouco investimento na sua formação. O importante era obter o diploma e não propriamente se desenvolver intelectual, afetiva ou mesmo do ponto de vista dos conteúdos e habilidade escolares.

Assim constitui-se Fênix com uma modalidade aprendente-ouvinte. Não se fazendo ativa em seu aprendizado, não questionando, não hipotetizando.

Vários mandatos também se instauraram: obrigatoriamente olhar a quem lhe dirige a palavra, considerar como verdade absoluta o que lhe é falado, não questionar; mandatos estes que influenciaram inclusive em suas fantasias, o que a faz muitas vezes considerar o aprender como algo mágico, que lhe é dado e não construído. Estes mandatos são como ordens transmitidas, que imprimem inconscientemente no sujeito imposições, regras que fazem parte do seu modo de ser.

Até determinado momento de sua vida as experiências cotidianas eram realizadas de tal forma que pouco lhe era acrescentado. Ao ser inserida em um ambiente de cultura mais avançada (lugar em que a condição do homem é questionada) a própria complexidade das atividades estimula Fênix a novas idéias e novas formas de pensamento.

Formas de pensamento tão diferentes que fazem com que aquela Fênix, que foi criada para a submissão, lance-se para novos horizontes. Entra na Faculdade, depara-se com suas dificuldades cognitivas, culturais, mas não se acomoda a isso, partindo para uma mudança, pois se vê como um sujeito capaz de fazer escolhas. O vazio, a falta, inauguram uma nova fase de sua vida que a faz ir em busca do seu objeto de desejo: o conhecimento

Entretanto, por um longo tempo, foi somente ouvinte, não se autorizando a falar, a colocar seus pontos de vista, apresentando dificuldades em articular o produto de seu pensamento em um discurso mais elaborado. Falta-lhe conteúdo, vários assuntos lhe são desconhecidos, sentindo-se em desvantagem e percebendo-se como uma "falante" com problemas.

Ao passar por um processo seletivo e ser aprovada, Fênix considera-se habilitada a realizar um curso universitário, entretanto é exatamente nele que se depara com suas dificuldades.

Como a Universidade responde a isso? Simplesmente não responde, Fênix é somente mais um número de matrícula e um "boleto bancário".

A situação de Fênix confirma o nível de deterioração das Faculdades de Pedagogia (e outras também) que proliferam em nosso país. Há um aumento no número de faculdades e vagas oferecidas, porém essa expansão em quantidade muitas vezes não se reflete em qualidade. Os cursos de Pedagogia, que são responsáveis pela formação de professores para alunos da educação infantil e do ensino fundamental até a 4ª série, formam uma legião de professores sem as mínimas condições para exercerem de forma satisfatória sua profissão.

Fênix obterá o diploma, adquirindo assim o direito legal de ser professora, porém sua capacitação e preparação, para que "pedagogicamente" seja uma professora, não estão sendo contempladas.

Ao iniciar as sessões de Psicopedagogia começa a falar cada vez mais, deixando de ser só ouvinte. Percebe que o espaço é seu, a relação entre ela e a estagiária é acolhedora, dando a Fênix a oportunidade de se manifestar, inaugurando um espaço em que ela é sujeito de seu pensamento. A sessão constitui-se em um momento de aprendizagem uma vez que, pelo simples fato de falar, mesmo que em muitos momentos o discurso esteja carregado de erros, está se constituindo como sujeito aprendente-ensinante, pois está se construindo como sujeito autor de seu pensamento.

O medo de "dar branco" que foi a queixa inicial de Fênix, funcionou na verdade como um impulsionador, possibilitando-lhe sair da passividade, permitindo-lhe inclusive ficar um pouco "mais consciente" de suas dificuldades.

Sua vida foi delimitada por uma gaiola invisível, terá que derrubar cada uma das paredes para alçar seu vôo e assim efetivamente renascer.

Fênix ainda se constitui como um sujeito da aprendizagem que está entrando no estágio cognitivo operatório, com limitada capacidade de abstração. Ainda não consegue extrair propriedades dos objetos além das perceptivas, o que lhe dificulta a realização de classificações mais abstratas, de generalizações, de operações lógicas. Fênix ainda tem condições de superar esses obstáculos e chegar a um estágio de desenvolvimento cognitivo mais elaborado, contudo está no último ano de seu curso de Pedagogia e no final do ano a universidade lhe concederá o diploma, que lhe é de direito, colocando no mercado um profissional que ainda não está em condições de exercer de forma plena sua profissão. Seu estágio de desenvolvimento cognitivo ainda não lhe permite agir de forma totalmente autônoma, impedindo assim articulações mais móveis, dificultando-lhe a construção de hipóteses próprias, de trabalhar a partir dessas hipóteses e de extrair conclusões mais abstrata a partir de suas observações e de seus pensamentos.

Assim constitui-se a realidade de Fênix -estudante brasileira- acolhida pela universidade que se pretende formadora de professores, mas que os diploma sem formá-los. Culpa de Fênix? Com certeza não. Agora, resta a Fênix tentar de forma mais árdua, difícil, constituir-se como sujeito autor para, não se sabe quando, ter "condições reais" de ser uma docente favorecedora da emergência do conhecimento/saber do outro.

O trabalho psicopedagógico com Fênix continua, mas, o caso de Fênix é um, entre muitos. Precisamos pensar e construir formas de atendimento mais abrangentes e radicais para lidar com a formação do professor, de modo mais eficaz.

O PROFESSOR À LUZ DA PSICOPEDAGOGIA

Ao pensarmos a formação do professor a partir de uma perspectiva psicopedagógica precisamos nos remeter aos posicionamentos ensinante-aprendente desse sujeito.

Evidentemente que a "profissão professor" exige aspectos como sua qualificação, para que possa ter domínio do conteúdo específico de sua disciplina; sua formação pedagógica, para que sua compreensão sobre educação supere o senso comum; e sua formação ético-científica, permitindo-lhe que se situe e que tenha clareza do contexto social, econômico e político em que se dá essa educação.

Esses aspectos, se levados com seriedade pelas Faculdades e Universidades nos cursos de Pedagogia e Licenciatura, certamente melhorariam os níveis de nossos professores. Contudo precisamos ficar atentos ao fato que o professor é um sujeito cognitivo e simbólico.

O professor possui uma história iniciada antes mesmo de seu nascimento, passou por processos de aprendizagem com seus pais e professores que lhe conferiram inscrições e identificações, os quais por sua vez também tiveram pais e professores. Ele estabeleceu uma relação com o conhecimento, enfim, esse professor possui uma história que certamente afetará sua maneira de relacionar-se com seus alunos e com o próprio conhecimento/saber que irá "transmitir" a seus alunos.

Todos esses vínculos foram temperados com afeto ou desafeto. Assim, esse sujeito que é professor, no ato pedagógico, traz suas identificações, conflitos e defesas para o vínculo que estabelece com seus alunos e com o conhecimento que transmite. O professor reeditará com seus alunos seu posicionamento ensinante-aprendente.

A Psicopedagogia nos faz ver a necessidade de tirar o professor de um lugar que o considera simplesmente como um transmissor de informações, posição esta muitas vezes acatada pelos professores. Também nos leva a refletir acerca da operacionalização do ensino, que não é simplesmente uma operacionalização de currículos a serem cumpridos; e faz-no ver que as lacunas próprias da formação do professor precisam ser preenchidas, não através de manuais, e sim, através de cursos de formação continuada, fundamentados numa visão de homem como sujeito, pensante e desejante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DIMOV, Marisa. Do aprender a ensinar ao ensinar a aprender: contribuições da Psicopedagogia à construção do professor". Monografia, PUC-SP-COGEAE, 2003.

FERNÁNDEZ, Alicia. O saber em jogo: a psicopedagogia propiciando autorias de pensamentos. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.

GIL SANTOS, Olga R. de A . De que se queixa o Professor? Por um diálogo entre o Orientador Educacional e o Professor à luz da Psicopedagogia. Monografia, PUC-SP-COGEAE, 2003

RUZANTE, Doris de C. P. L. Saber ou não saber? Eis a questão...Monografia, PUC-SP-COGEAE, 2003.