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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos



9. A Psicanálise na Exclusão O Atendimento Psicanalítico de Deficientes Mentais é Possível? Apresentação de Caso Clínico

O meu interesse em estudar as questões relativas à deficiência mental e às possibilidades de atuação que envolvem esta população, partiu da realização do meu trabalho de conclusão de curso, intitulado: "As Influências das Primeiras Relações Mãe e Filho no Desenvolvimento de uma Criança com Síndrome de Down". Isto porque, ao longo da elaboração deste trabalho, fui questionada por diversas vezes sobre a viabilidade e a possibilidade do atendimento psicanalítico de pessoas portadoras da Síndrome de Down, por razões que variavam desde a capacidade de entendimento dessas pessoas (para a compreensão do que era dito e interpretado), até mesmo questionamentos quanto à natureza do psiquismo dessas pessoas (isto é, se as mesmas possuem um psiquismo e como podemos comprovar esta existência).

Diante dessas questões, percebi que mesmo com a evolução dos trabalhos nesta área, que nos levou hoje à "Era da Inclusão", ainda há muito preconceito e desconhecimento envolvendo a deficiência mental.

Dessa forma, na tentativa de esclarecer algumas destas questões, apresentarei um caso clínico atendido no Projeto Inclusão, coordenado pela Professora Dra. Maria Cecília Corrêa de Faria e supervisionado pela Psicóloga Rosana Basto do Espírito Santo. Antes da apresentação do caso, vale apontar que o Projeto Inclusão é um projeto de atendimento clínico de orientação psicanalítica, voltado para o diagnóstico psicológico e atendimento psicoterapêutico de pessoas deficientes mentais e também consultas terapêuticas e psicoterapias breves de seus familiares e/ou cuidadores. O projeto se organiza a partir do eixo central de que "é clinicamente observável que as pessoas afetadas pela deficiência mental são portadoras de um aparato psíquico que em nada se diferencia, na sua constituição, do que fora proposto por Freud e Klein" (Faria, 2003).

APRESENTAÇÃO DO CASO

Mariana é uma menina de 11 anos, com Síndrome de Down de grau moderado. A mãe (C., 50 anos) desempenha a função de mantenedora da família, pois o pai (J., de 49 anos), por ser alcoolista, perdeu seu emprego. A principal responsável pela educação de Mariana (paciente de 11 anos) sempre foi sua irmã mais velha (S., de 20 anos), filha do primeiro casamento da mãe. O pai tem uma outra filha da mesma idade de Mariana, fruto de uma relação extraconjugal, e com a qual tem contato freqüente, e faz muito gosto que seus filhos também tenham contato com a sua "segunda família". Além disso, Mariana tem um outro irmão, por parte de pai e mãe, R., de 12 anos, com quem tem brigas freqüentes. Os pais só souberam da deficiência da filha após o parto, e temem pela vida da mesma. O pai, por ter tido um primo com Síndrome de Down, que já faleceu, acredita que "as pessoas que têm esse problema morrem aos 7, 17 ou aos 21 anos" (sic), e que "dos 7 ela já passou" (sic). Diante deste contexto, o pai justifica a falta de envolvimento com sua filha, já que, de acordo com o seu discurso, tem medo de se envolver muito com a mesma e perdê-la. Já a mãe, considera-se uma pessoa especial por ter gerado uma filha especial e acredita que a única solução para sua filha seria que ela parasse de trabalhar e se dedicasse 24 horas por dia à mesma, sendo que isto deveria ocorrer fora do contexto familiar; isto é, as duas - mãe e filha - deveriam se afastar dos outros membros da família. Atualmente, a mãe de Mariana está aposentada e passou a se responsabilizar pela educação de sua filha.

A criança foi encaminhada para terapia por orientação da psicóloga da Instituição onde estuda, por apresentar, no início do ano de 2002, humor inconstante, oscilando entre dias felizes e dias extremamente tristes, em que passava boa parte do dia chorando. Aparentemente, para os profissionais da Instituição, esta mudança de humor ocorria em decorrência do difícil relacionamento familiar. Segundo o relato dos pais, Mariana necessitava de orientação quanto a limites e regras, já que muitas vezes não lhes obedece.

Com o objetivo de fundamentar o estudo a ser desenvolvido, passo a apontar as principais questões que apareceram ao longo de mais de dois anos de atendimento, que demonstram como a questão da deficiência aparece ao longo das sessões, já que faz parte da vida de Mariana, mas que outras questões também são trazidas, extremamente relevantes à idade e à condição de Mariana.

Nas primeiras sessões, o tema da sexualidade esteve muito presente. Mariana trazia questões que mostravam que tinha interesse em ser moça (ter muitos namorados, usar sutiã), ao mesmo tempo em que questionava e indagava sobre sua possibilidade de casar e ter filhos. Neste sentido, o fato de sua terapeuta ser mulher, fazia com que Mariana sempre me usasse de contraponto para suas questões. Exemplo: para ela eu tinha que ter namorado, pois meninas "normais" têm namorado.

Ao longo da análise essas questões diminuíram e outro tema mereceu destaque: a relação mãe e filha. Durante algumas sessões, Mariana me convidava a ocupar o lugar de sua mãe e a ter comportamentos que gostaria que a mãe tivesse com ela. Pedia que eu a colocasse para dormir, para eu contar história e que eu fizesse carinho de boa noite. Quando eu dizia que ela gostaria que sua mãe tivesse o mesmo comportamento com ela, Mariana retrucava com frases: "ela trabalha", para justificar a ausência e a falta de cuidados da mãe.

Depois de aproximadamente 9 meses de análise, Mariana não conseguia mais entrar para a sessão. A princípio, não conseguia entender o seu comportamento, mas depois pude entender que estava sendo muito difícil para ela ter aquele espaço, ser tratada de igual para igual, sem precisar fazer uso de sua deficiência para ter atenção, e ter que se deparar com a realidade externa, que usa sua deficiência como ponto de partida da relação.

Durante o ano de 2003, continuamos a nos encontrar. Ao longo deste ano, muitas outras questões foram trabalhadas, mas a principal dizia respeito ao sentimento de culpa que Mariana tem em relação aos problemas familiares. Durante várias sessões ela trouxe a angústia de ter um pai alcoolista e se sentir responsabilizada por isso. Em uma das sessões, quando a questionei a este respeito, dizendo que não era porque ela tinha Síndrome de Down que seu pai bebia, a mesma respondeu que eu não tinha como saber, já que eu não era como ela.

Com estas breves passagens, gostaria de mostrar como o deficiente mental sabe de sua condição de diferente, e aceita trabalhar estas questões. O que pude perceber ao longo de todo trabalho com Mariana, é que a mesma tem sua condição de especial destacada em todos os momentos de sua vida (ao jogar um jogo, falar com as pessoas, etc.), o que lhe causa grande angústia e sofrimento, mas que, mesmo assim, ela tenta diariamente quebrar barreiras.

Para finalizar, gostaria de apresentar rapidamente uma situação que aconteceu nos corredores da Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic", em um dos dias de atendimento de Mariana. Ela chega para o atendimento e quando a chamo, ela entra pelo corredor da Clínica. Neste instante, passa por nós um rapaz (psicólogo da Instituição) e Mariana o cumprimenta. Ele não responde e Mariana volta a dizer "oi". Como também não obteve resposta, Mariana se aproxima do rapaz e diz: "Você é surdo? Estava te dizendo oi, você não percebeu?". O rapaz, neste momento totalmente sem graça, já que desde a primeira vez ele havia ouvido Mariana, desculpa-se e inventa uma justificativa para sua falta de resposta. Quando entramos na sala, ela diz: "Ele acha que eu sou louca, eu sei que ele me ouviu!".

Diante dessas questões, permanece a pergunta: O atendimento psicanalítico de deficientes mentais é possível? Agora, cabe a cada um refletir e responder!

BIBLIOGRAFIA

FARIA, Maria Cecília Corrêa de. A Leste do Éden. Projeto Inclusão: Clínica Psicanalítica e Deficiência Mental.Tese de Doutorado em Psicologia Clínica, PUC/SP, 2003.