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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos



11. Alterações na Sexualidade de um Casal com a Chegada do Primeiro Filho

A professora Magdalena Ramos nos convidou para apresentar este caso, especialmente porque este casal ilustra algo que ela tem constatado que é a alteração, com a chegada do filho, na vida sexual do casal.

Este casal foi atendido na Clínica da PUC - Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic". Veio encaminhado do Sedes Sapientiae, onde marido e mulher fizeram psicoterapia breve de casal. Na Clínica da PUC foram atendidos primeiro no Lelu - um serviço da Clínica da PUC que atende pessoas enlutadas. A psicoterapeuta do Sedes percebeu que a perda da primeira filha do casal, Maria, aos oito meses de gravidez não tinha sido totalmente elaborada e os encaminhou para o Lelu para trabalharem aspectos relacionados a esta perda. Do Lelu foram encaminhados para a psicoterapia de casal.

Utilizaremos nomes fictícios para que seja respeitado o sigilo. A mulher será chamada de Bia, o marido de Luís e o filho do casal de Paulo. À filha que perderam chamaremos de Maria e o ex-marido de Bia de Antonio.

Bia tem 44 anos e é casada com Luís, 54 anos e eles têm um filho de 7 anos. Vivem juntos há aproximadamente 15 anos. Aproximadamente três anos antes do nascimento de Paulo, Bia esteve grávida de Maria (no ano de 1994).

Falemos um pouco da visão de cada um dos cônjuges a respeito de suas respectivas famílias de origem:

Bia é a filha mais velha e tem dois irmãos e diz: "eu sempre fiquei encarregada deles, eu era a mãe dos meus irmãos" (sic). Bia se caracterizou como tendo sido uma criança gorda, que sofreu muita discriminação na escola e que teve dificuldades na adolescência para arrumar namorado. Seu pai era "alcoólatra, mas muito carismático e querido por todos" (sic). Ele morreu em um acidente de carro. Após a morte do pai sua mãe se mudou para outro país e ela ficou morando com os irmãos no Brasil. Nesta época seus irmãos começaram, de acordo com ela, a usar drogas de um jeito muito intenso. Ela disse que teve que "segurar a barra do irmão" (sic) e por isso teve que amadurecer cedo. O fato de a família ter tido muitos casos relacionados ao uso de drogas parece assombrar Bia.

Ela acrescentou que a mãe foi bastante ausente das situações familiares, que tinha enxaquecas e por isso não participava do convívio familiar. Em algumas sessões falou que tem medo de "repetir" o que acontecia em sua família de origem. Nos conta que também tem enxaquecas que, ao que tudo indica, a afastam de sua família, assim como ocorria com sua mãe.

Disse que sua mãe "nunca foi mãe" (sic) e que sua referência fora sua avó. Bia também contou que seus pais costumavam pedir sua opinião e que ela costumava "resolver" os conflitos da casa desde muito cedo.

Quanto à família de origem de Luís, este nos diz que era o filho mais novo de cinco homens, e que por este motivo "não tinha muita voz" (sic) na família. Contou que seu pai era autoritário e um tanto estourado. Diz que em várias situações sua mãe cuidou para que o pai não se descontrolasse. De acordo com ele sua mãe tinha um papel organizador na família, no entanto, falou muito pouco sobre ela. Diz que acha que nunca amou o pai de verdade e para ele o pai nunca permitiu que ele o amasse. Somente depois que o pai adoeceu é que Luís ficou mais próximo dele, e então o pai contava histórias que todos pareciam já saber, e acha que por ser o filho menor talvez nunca tenha sabido.

O tema da exclusão aparece o tempo todo nas falas de Luís sobre sua família de origem. Ele conta em uma sessão que procurava sempre um jeito de aparecer, ou fazendo birra, ou contando piadas, para que assim o olhassem à mesa. Queixa:

O casal chega com a queixa que desde o nascimento de Paulo, eles não mantém mais relações sexuais e têm dificuldades de se comunicarem e de se aproximarem. Bia chegou a dizer: "falamos duas línguas diferentes e o nosso único ponto em comum é o Paulo" (sic). Luís concordou com a fala de Bia.

No texto de Gley P. Costa, "O caminho sem volta" o autor afirma que o momento em que um homem e uma mulher tornam-se pai e mãe é de bastante ambivalência, pois como os únicos sentimentos socialmente aceitos são os de alegria e satisfação, o casal tem de lidar com vivências bastante contraditórias. Marido e mulher que até então viviam numa relação a dois, revivem a difícil situação triangular da infância. O homem tende a sentir-se muito excluído, pois sua mulher irá estabelecer inicialmente uma relação de exclusividade com o bebê e tende a buscar novamente seu lugar junto a mulher. Simultaneamente, como pai, experimenta uma sensação de potência pelo fato de o filho evidenciar sua capacidade de procriar.

Embora a queixa inicial tenha sido a ausência de relação sexual e a dificuldade de comunicação, procuramos seguir o referencial psicanalítico e dessa forma não focalizar nosso trabalho na eliminação dos sintomas. Procuramos compreender a dinâmica do casal e evidenciar situações que vem se repetindo, tornando o papel de cada um na relação cristalizado. Entendemos que no trabalho com uma família não devemos enfatizar na leitura interpretativa a psique individual e sim privilegiar os aspectos provenientes do vínculo entre as pessoas. "A família passa a ser vista, por si só, como uma unidade psíquica que não é apenas a soma de diversos aparelhos psíquicos individuais, mas uma psique originária feita da fusão e não da adição..." (Vilhena, 1991, pág.14). Ocorre daí uma nova psique, do grupo familiar, para a qual devemos voltar nossa escuta e nossa atenção. Em se tratando de um vínculo não se pode pensar em um culpado e outro inocente numa relação.

"Se o sintoma é uma criação coletiva e se aquela forma de funcionamento é uma produção coletiva, não se deve trabalhar para eliminar o sintoma ou tentar a compreensão específica do sintoma de uma pessoa, mas tentar abordar a forma de funcionamento familiar" 1. (Meyer, 2002, pág.37).

Revendo o material, notamos que já na primeira sessão (e que não tinha ficado claro na época), aparece um elemento significativo da dinâmica estabelecida entre os dois. Bia aparece freqüentemente tocando na questão sexual, cobrando aproximação de Luís que responde, quase se justificando, que assim como Bia teve seu tempo até se envolver com a questão profissional, que ele teria o tempo dele em relação ao aspecto sexual. Bia, com a perda de Maria se afastou de suas atividades profissionais durante bastante tempo e Luís a estimulava constantemente a retomar sua vida profissional; ela diz que se aproxima dele sexualmente, mas que ele foge e se queixa que ele não se aproxima dela.

Isto nos levou a pensar que Luís parece assumir todo o peso da relação ao se encontrar nesta dinâmica em posição de devedor diante de Bia. Com isso ela se coloca em posição de comando exigindo e cobrando Luís, e assim, como que se exime de responsabilidades na relação.

Essa cobrança de Bia é interpretada por nós como um movimento contra-fóbico que pode servir para ela evitar entrar em contato com seus medos, que apareceram em algumas sessões relacionados à sexualidade e à intimidade. Bia disse que embora procurasse Luís sexualmente estava se achando gorda e feia e que o contato sexual era difícil. Para ela a questão da sua feminilidade é muito delicada. Aparecem em sua fala dificuldades naquilo que a diferencia enquanto mulher, o que fez pensarmos que talvez tenha sido crítico para ela o "tornar-se mãe" já que gerar e ter um filho seja talvez o maior diferencial da feminilidade. Isto se confirma quando ela fala de dificuldades em seu amadurecimento sexual e em lidar com sua menstruação. "Você não sabe como é horrível ser a grandona da turma, estar menstruada e os meninos olharem para você e você se sentindo feia". (sic)

Bia mesmo se sentindo pouco desejável, ao cobrar uma atitude de Luís nos faz pensar o quanto contraditório é este seu movimento: ela diz sentir-se feia e pouco desejável, mas ao mesmo tempo quer que Luís se aproxime sexualmente dela. Luís por sua vez, quando alega que está em uma busca pessoal, que está se descobrindo, e que isso o impede de olhar para a situação, acaba se justificando, e de certa forma cumprindo seu papel nesta dinâmica, papel ditado por acordos inconscientes entre eles. Desta forma, ambos não conseguem olhar para a relação como sede destas dificuldades. Parecem procurar um no outro a justificativa do distanciamento entre eles.

Antes desse relacionamento com Luís, Bia foi casada com Antonio. O casamento deles terminou quando Bia soube que ele era homossexual. Um dos aspectos discutidos em supervisão foi o quanto curiosas são as escolhas de parceiro desta mulher. Antonio era homossexual e Luís não deixa muito claro seu desejo. Ao longo das sessões, inclusive, Luís fala de uma ausência de sexualidade, e em uma delas chegou a dizer: "meu desejo morreu".(sic)

Nesta dinâmica, Luís, como um coadjuvante pouco marca sua participação. Foram raras as vezes em que ele falou de coisas que sente. Em alguns momentos seu discurso pareceu vazio, para nós terapeutas. Por exemplo, quando perguntamos da família de origem de Luís ele falou muito pouco, alegou que sua tia tinha morrido uns dias antes e era muito difícil falar sobre isto, e prosseguiu contando da época em que fazia faculdade, evitando assim responder à nossa pergunta. Por estes motivos foi difícil criar uma imagem da família de Luís. Outro aspecto que chama a atenção é que Luís parece sempre ocultar algo que sente e se apresenta misterioso. Em alguns momentos ele anuncia coisas, mas não desenvolve seus pensamentos até o fim.

Aparentemente, é muito difícil para Luís aceitar que sua presença possa fazer, e faça diferença em suas relações. Em uma passagem do atendimento ele lembra da primeira vez que ligou para Bia para convidá-la para viajar. Ele disse: "a convidei certo de que ela não iria aceitar, mas ela aceitou". Este exemplo reforça nossa impressão de que Luís se sente pouco interessante.

Após um panorama de como os dois funcionam vamos ilustrar como a questão da maternidade/paternidade gerou uma crise entre eles:

Quando nasce o filho do casal, Paulo, passa a ser difícil estarem a três. Eles falam como se o Paulo fosse ora só dele, ora só dela. O filho parece evidenciar que eles não eram propriamente um casal, eram mais uma ilusão de casal, em que um parecia inventar o outro. Luís fantasiava que o amor de Bia era incondicional, até que percebeu que ela poderia ter um interesse maior pelo filho do que por ele. Bia idealizou um marido muito protetor, mas talvez ela tenha dificuldades em se deixar proteger, habituada que estava em uma posição de "mãe-do-mundo". Talvez, até então tivessem uma relação minimamente gratificante, mas quando tiveram que dar suporte ao filho, não puderam fazê-lo enquanto casal.

De acordo com Magdalena Ramos, "O filho pode ocupar diferentes lugares na família, em função de como seja vivido por seus pais. Para alguns casais, o filho é um presente especial que o marido oferece à mulher, para que ela possa se ocupar. O filho pode ser usado como uma forma de dar sentido à vida do casal cujos laços estão debilitados. Algumas mulheres querem um filho visando reconquistar o marido, em geral quando sentem que não estão recebendo a atenção desejada ou quando se vêem ameaçadas pela separação". (Ramos, 1990, pág.17). Talvez neste casal, abalado pela perda de Maria, o filho tenha recebido a incumbência de salvar a relação, porém, paradoxalmente a presença de Paulo também é o "motivo" pelo qual eles se afastaram. Paulo é citado como desencadeante do fato deles não terem mais relações sexuais. O filho, nesta família, junta e separa os pais. O tipo de relação que eles conseguiam ter "a dois" parece que não pode ser mantida na presença do filho. Bia provavelmente funcionava como mãe de Luís antes do nascimento de Paulo. Com o filho o equilíbrio desta relação parece prejudicado, já que Luís, ao invés de se colocar como o pai deste bebê sentiu como se esse filho tivesse roubado o modelo de relação que até então tinha com Bia. A impressão que tivemos é que a partir do nascimento de Paulo se estabelece uma disputa pelo filho, assim eles estão sempre divididos. Neste sentido este casal não usufrui da relação como relação que sustenta a criança, como se não conseguissem unir-se enquanto pai e mãe e enquanto casal.

De acordo com Willis, uma forma freqüente de apaziguar conflitos no casamento é a inclusão de uma terceira pessoa nessa relação, como forma do casal se proteger da intimidade, evitando estarem a sós. Especialmente quando há uma tensão numa situação dual, uma das medidas mais significativas de defesa é a intervenção de uma terceira pessoa. Em uma das sessões o casal relatou que embora tenham ficado sozinhos em casa, pois o filho estava viajando, não tinham conseguido se aproximar sexualmente. Bia relatou que se aproximou de Luís e ele respondeu que não era porque Paulo não estava que iriam transar. Quando questionamos se eles não criavam oportunidades para estarem sozinhos eles responderam que não. O marido chegou a completar que quando estão sem o filho se sentem "estranhos", e deu um exemplo de um episódio em que estavam no carro e ele foi se dirigir ao filho quando percebeu que ele não estava lá. Entendemos que esse episódio ilustra o quanto, mesmo na ausência física desse filho, eles não conseguem estar a sós e, portanto, a dificuldade enorme que há na intimidade.

Uma situação triangular, dificilmente cumpre seu intento, numa relação anterior (marido e mulher) onde um nutria o outro exclusivamente. O desejo deste casal, de que o filho pudesse salvar a relação foi frustrado no momento em que tiveram que dar suporte a este terceiro, com demandas próprias. Surgem uma série de questões, por um lado a preocupação excessiva de Bia com o estado de saúde do bebê, por outro o ciúmes de Luís desta relação um tanto extremada da esposa com o filho.

Bia já tinha realizado dois abortos provocados, da época que vivia com o ex-marido. Durante algumas sessões Bia trouxe uma grande carga de culpa por estes abortos. Em uma das sessões Bia narrou um sonho onde encontrava duas meninas em uma excursão que percebeu que eram as "filhas" dela (as crianças que abortou) e que perguntou para as duas se elas queriam ficar com ela e que elas responderam que sim. Além disso, já no casamento com Luís, ocorreu a perda de Maria. O problema foi detectado aos oito meses de gravidez, no último ultrassom e o médico vinculou esta aos abortos anteriores de Bia. Ao que tudo indica houve um período de luto bastante difícil para ambos e Bia revelou que se sentiu muito culpada pela perda deste bebê. Ao longo das sessões Luís falou sobre as fantasias relacionadas ao motivo da perda e de sua suspeita também que os abortos anteriores de Bia tivessem relação com o fato.

Com o nascimento de Paulo, os fantasmas de Bia com relação ao medo de perder um filho parecem ressurgir. Isso ficou claro, por exemplo, quando ela nos contou de como ela sofreu quando Paulo teve que voltar para o hospital logo após nascer, pois estava com icterícia. Bia também durante as sessões relatou o quanto os cuidados com esse filho foram sempre excessivos e que tinha muito medo que Paulo morresse, mesmo depois que este já estava maior. Ela contou que costumava deixar Paulo na escola e dar a volta no quarteirão para confirmar se estava tudo bem com o filho.

Podemos imaginar o quanto a questão da sexualidade ficou ameaçadora para este casal, uma vez que a experiência deles em gerar ficou bastante associada à dificuldades e à morte. Neste sentido podemos pensar até que ponto o casal não esterilizou esta relação, o que talvez explique o fato de não conseguirem mais se aproximar sexualmente.

Transar não traria a ameaça de um novo filho?!

Esterilizando a relação - deixando absolutamente de ter relações sexuais - parece a forma encontrada de evitar intensificar conflitos que se configuraram ao se tornarem pai e mãe. Sem transar, eles têm a impressão que a ameaça e os perigos entre eles se extinguiram.

No entanto se Bia e Luís exercessem papel de marido e mulher, a chegada do filho não seria por si só capaz de produzir conflitos desta ordem, tão intensos. Ele era meio filho na relação com Bia, portanto se sentiu muito ameaçado, pois o Paulo, ao chegar, "roubou" seu lugar. Isto é especialmente importante para um homem que sempre teve problemas com a exclusão e a rejeição. Luís se sente traído por Bia, pois até o nascimento do filho era ela quem o procurava. Ele acabou se entregando para ela, e ela o trocou por outro. Freud no texto A Dissolução do Complexo de Édipo, afirma que "o menino encara a mãe como sua propriedade, mas um dia descobre que ela transferiu seu amor e sua solicitude para um recém-chegado" (Freud,1924, pág. 193). Ou seja, a criança é obrigada aceitar que terá que dividir a atenção de sua mãe com o pai. Quando nasce um filho, o homem revive este sentimento de invasão de um terceiro em uma relação, originalmente dual.

Nossa hipótese é que esta união de Bia com o filho foi demais intensa, pois além da aproximação normal que ocorre entre uma mãe e seu bebê, provavelmente se acresceu um cuidado redobrado de Bia pelo filho devido ao fantasma da morte, oriundo de sua experiência anterior.

Em uma das sessões Bia contou que com o nascimento de Paulo Luís ficou esquisito, e acrescentou que ele talvez tenha ficado com ciúmes. Ela disse que quando Paulo nasceu o marido não gostava que ninguém chegasse perto e ressaltou que ele segurava o bebê como se fosse "só dele''(sic). Quando ouviu Bia dizer isto Luís respondeu "claro, era meu".(sic). Pensamos que Luís pode ter sentido muita dúvida da capacidade desta mulher em cuidar de uma criança, uma vez que em sua fantasia foi ela a responsável pela perda da primeira filha.

Ainda outra hipótese é que Luís não conseguiu expressar a raiva relacionada ao sentimento de exclusão experimentado com o nascimento de Paulo. Relacionamos isto ao fato dele mais tarde ter falado em algumas sessões da sua dificuldade em "sentir". Ele alegou que "as coisas que ele fala depois não eram da forma como ele enxergava" (sic) e que ele tinha medo de falar sobre determinadas coisas e ressaltou: "o peixe morre pela boca" (sic). Desta forma diz que prefere não falar, como se tivesse que reter, junto com sua raiva, os demais sentimentos.

Luís disse em uma das sessões que tinha percebido que quando Bia se queixava de sua frustração, e de que se sentia mal-amada por ele, que sentia isso como uma "cobrança" (sic) e prosseguiu dizendo que certas situações o remetem aos sentimentos que teve em sua família e o quanto se sentia excluído. Em outra sessão Luís contou de outras situações que despertavam nele estes sentimentos e deu o exemplo de uma situação no trabalho em que um colega levou laranjas para outros dois colegas e nenhuma para ele. Acrescentou que este mesmo sentimento também estava presente quando sua sogra trouxe presentes para todos, menos para ele. Ele que em sua história individual já carregava um sentimento de exclusão devolve com ausência e falta de afeto, por se sentir rejeitado, e sente desconfiança de se aproximar novamente e de se entregar por se sentir traído. (Certamente esta é uma maneira de reagir frente a isso que não podemos ver como proposital, mas sua dificuldade em elaborar este sentimento de abandono e de traição o fazem reagir inconscientemente desta maneira).

A nosso ver, já a partir da perda de Maria o relacionamento dos dois parece ter assumido uma nova forma. Nossa hipótese é que eles passaram a idealizar um filho, que iria substituir Maria e também fazê-los vencer o "desafio" de se tornarem uma família. Ao mesmo tempo parece que ter um filho era também um desafio individual, para aplacar qualquer vestígio de um fracasso de cada um em não ter conseguido gerar. Um filho, teoricamente, vem aplacar a angústia de castração.

Gley Costa, citando Freud, diz que quando um filho nasce os pais tem a tendência a atribuir todas as perfeições a ele e esquecer de seus defeitos. É como se pudessem, através da criança, não sentir as faltas e as leis a que foram submetidos um dia. "A criança concretizará o sonho dourado que os próprios pais jamais realizaram. O menino se tornará um grande homem e um herói em lugar do pai, e a menina se casará com um príncipe como uma recompensa tardia para a mãe. O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é do que o narcisismo renascido dos pais, o qual, transformado em amor objetal revela sua natureza narcísica".

Será que com o nascimento de Paulo esta ferida não teria sido curada? Transar ainda teria função? Por um lado achamos que o nascimento de Paulo vem de encontro com a necessidade de amenizar a dor pela perda de Maria, além de restituir a ilusão de completude e perfeição desses pais.

Por outro lado, muitos conflitos se configuraram a partir do momento em que se tornaram pai e mãe, assim como toda a fragilidade do vínculo entre eles se intensificou.

O nascimento deste filho rompe a simbiose conjugal, um vínculo de exclusividade que havia até então entre Luís e Bia.

A entrada de um terceiro traz elementos novos e evidencia elementos que estavam encobertos e que eram a base para o funcionamento deles como um casal. Ao não poder mais funcionar como um casal, transar talvez não tenha mais função; talvez não haja mais espaço para o sexo. O que fica evidente é que passa a ser difícil transar depois do afastamento que o filho faz manifestar na relação deste casal.

De acordo com Gley P. Costa pode ocorrer uma mudança na vida sexual do casal após o nascimento de um filho, e que isto pode ser explicado, pois o casal deixa de ser apenas marido e mulher e se tornam pai e mãe. Essa mudança leva algumas pessoas a uma importante inibição sexual cuja origem são as fantasias incestuosas inconscientes. Manter relações com a mulher seria "roubar" momentaneamente a mãe do filho. Além disso, o sentimento de exclusão vivido pelo homem pode despertar sentimentos inconscientes de hostilidade para com o filho.

Levando em conta que um casal torna-se uma família a partir do nascimento do primeiro filho, podemos começar a refletir sobre o que ocorreu com este casal ao ter que olhar para si como família, considerando que tiveram uma tentativa anterior muito desastrosa e carregada de muita culpa. No caso deles, ter se tornado família parece ter reeditado os conflitos relacionados às suas famílias de origem.

Parece que para Bia foi muito difícil fazer parte de uma nova família. Sua dificuldade em lidar com sua feminilidade parece ser um dos aspectos que contribuiu para isto, ainda um histórico de compulsão por drogas em sua família de origem também a amedronta com relação ao futuro de seu filho. Somado a isso, o pavor narrado por ela em repetir com o filho o tipo de relação de muita ausência que sua mãe teve com ela. Ela chegou a dizer "não entendo essa coisa de família, isto só estraga. Queria outro nome para isto" (sic). Ela sugeriu que poderiam ser algo próximo de uma comunidade, ao invés de uma família.

Meyer afirma que "Nesse sentido, o grande aporte da terapia de família, sua grande novidade, é postular que existe um aspecto do sujeito que só é conhecido quando se reúne a família (seja na sua totalidade ou em partes). Aqueles aspectos identitários, que tem a ver com a vida familiar, são assim ativados nesse meio específico: a família." (Meyer, 2002, pág. 33) A partir dessa idéia podemos inferir que, talvez, com o nascimento de Paulo tenham percebido que se tornaram uma família, o que trouxe à tona o que cada um conhecia e concebia sobre ser uma família, e isso parece tê-los assustado.

Também no caso de Luís parece se atualizar, na relação com sua família atual, a experiência que teve em sua família de origem. Ele nos fala de um vínculo muito forte entre Bia e Paulo do qual ele parece sentir-se de fora. Luís chegou a nos dizer que quando Paulo nasceu é que se deu conta do quanto vínculo de uma mãe com o filho é forte. Parece que a dificuldade, que nos disse que tinha, de marcar sua presença na família de origem, se repete numa dificuldade dele de se fazer presente na família atual.

Bia em uma sessão relatou que sempre que ela e Luís estão abraçados ou deitados na cama, que o filho entra no meio tentando separá-los. Luís diz que ainda é muito difícil para ele colocar limites nestas "aproximações" de Paulo. Bia conta que quando Paulo se aproxima Luís se afasta. Luís diz que prefere deixá-los "curtirem" um ao outro, como se o filho e ele não pudessem conviver juntos: onde um está, o outro não pode estar também; o que parece apontar a presença deste sentimento de exclusão que Luís diz vir desde sua infância, em sua família de origem.

Gley Costa nos fala que o nascimento de um filho pode levar tanto ao crescimento uma relação, quanto à estruturação patológica do casamento, fato é que provoca uma crise vital.

No caso deste casal, dificuldades latentes foram ativadas ao tornarem-se pais. Cada um deles à sua maneira indicou ter sofrido com a vida que tiveram em casa com os pais e irmãos. Os conflitos que viveram em suas famílias de origem, portanto, parecem ter feito com que não quisessem reproduzir os mesmos padrões, e talvez os tenha paralisado no processo de tornarem-se família. No entanto, é uma idéia da qual eles começam a se aproximar através do processo terapêutico pelo qual eles estão passando.

As dificuldades surgidas com o nascimento do filho parecem tê-los feito de uma vez por todas desistirem de repetir a experiência de gerar que parece ter sido "traumática". Para evitar um novo filho só mesmo deixando de transar, já que transar traria este risco, ainda que apenas simbolicamente.

BIBLIOGRAFIA

COSTA, Gley. CONFLITOS DA VIDA REAL. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1997.

FREUD, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIX - A Dissolução do Complexo de Édipo (1924). Rio de Janeiro, Editora Imago, 1996.

MEYER, Luiz. A FAMÍLIA DO PONTO DE VISTA PSICANALÍTICO. In: Sanchez, Maria (Org.). Família: conflitos, reflexões e intervenções. São Paulo, Editora Casa do Psicólogo, 2002.

RAMOS, Magdalena. INTRODUÇÃO À TERAPIA FAMILIAR. São Paulo, Editora Ática, 1990.

VILHENA, Junia de. ESCUTANDO A FAMÍLIA. Rio de Janeiro, Editora Relume Dumara, 1991.

WILLIS, J.. LA PAREJA HUMANA: RELACIÓN Y CONFLICTO. Madrid, Ediciones Morata, 1978.