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13. Um Estudo da Transferência e da Contra-Transferência - Estudo de Caso
O presente estudo foi o resultado de um processo psicoterapêutico de orientação psicanalítica de, aproximadamente, um ano realizado com um menino, que chamo aqui de João, nome este fictício para que sua identidade seja preservada. Vamos conhecê-lo.
João é um menino de 9 anos hoje, 8 no início do atendimento e cursa a quarta série do Ensino Médio numa escola pública. É o segundo filho da família e mora com sua mãe e seu irmão mais velho, de 20 anos. Eles moram na periferia de São Paulo. Seu pai sumiu quando ele estava com seis meses de vida.
João é um menino alegre, comunicativo e inteligente. Desde nosso primeiro contato ele mostrou que era uma criança afetiva e que estabelece vínculos rapidamente.
Sua mãe veio procurar a Clínica Psicológica "Ana Maria Poppovic" da PUC-SP porque não "sabia mais o que fazer com ele" (SIC), segundo suas próprias palavras. As professoras reclamavam de seu comportamento em sala de aula e no Centro de Juventude, mas João apresenta bom rendimento escolar.
A situação financeira da família de João é muito delicada. Por algumas vezes, não só uma vez, durante o atendimento psicoterápico, faltou gás em sua casa e como não havia dinheiro para comprá-lo, João era levado por sua mãe para a casa da avó para fazer ao menos uma refeição mais satisfatória.
Durante nossa terceira sessão, João me pergunta, enquanto abre a massinha de modelar como se abrisse uma massa de pizza: Você tem filhos?" (SIC). Respondi que não. Ele pergunta a seguir se eu sabia fazer panqueca, e quando respondo que não, ele fala: "Quando você tiver filhos vai ter que saber fazer panquecas, assim como minha mãe faz para mim" (SIC). Eu pergunto se a mãe faz panqueca para ele e ele diz que quando não tem pão, quando eles não têm dinheiro para comprar pão, a mãe dele faz panqueca para ele.
Esse relato de João me fez entrar em contato com uma realidade social que apesar de ser noticiada diariamente na mídia, à qual eu não tinha ainda sido exposta tão dura e friamente. Não era eu não soubesse da miséria, mas a fome estava mais perto de mim do que eu antes tinha sequer imaginado.
Acredito que isso se deva, não a um desconhecimento da realidade social que enfrentamos no nosso país, mas provavelmente a um fechamento de horizontes , em que a fome não faria parte. Mas, como além do conhecimento científico que podemos nos apropriar na faculdade, ou dentro de escolas, eu pude experienciar um conhecimento da sociedade atual que não foi em nada teórico, mas visceral.
Antes de entrarmos nesse questionamento que será a base da minha exposição, precisamos saber um pouco mais de João. Conforme o procedimento padrão de fazermos uma anamnese, entrevistei sua mãe. João, já nos dando um importante dado sobre si mesmo, insistiu para estar na sala e fazer parte da entrevista.
Sua mãe contou que ele não foi um bebê planejado, que nasceu de "um namoro rápido e desprotegido" (SIC) e que seu pai só ficou sabendo que tinha um filho quando João nasceu, e depois de três meses, sumiu. Enquanto a mãe relata o fato, ele se coloca e diz que ela nunca lhe havia dito o nome de seu pai. Como João nem podia saber o nome do pai, nas sessões ele mostrava conteúdos de segredo, escondia-se no espelho para saber o que se passava dentro da sala e me deixava lá, para que eu experienciasse o que ele vivia.
Outro aspecto importante a ser considerado é que a gravidez de João, além de não ter sido planejada, não foi desejada. Sua mãe pensou por diversas vezes em abortar, chegando até mesmo a comprar remédio para tal. Disse que a escondeu do pai do menino porque ela mesma não queria a criança. Como negava a gravidez, não fez nenhum acompanhamento pré-natal. Diz não ter tido nenhum problema durante a gestação e que, quando resolveu procurar um médico, este decidiu realizar a cesárea no mesmo dia. Podemos pensar que João foi negado por nove meses, e que até hoje, continua tentando ser reconhecido por essa mãe.
A mãe, por outro lado, isto é, provavelmente impulsionada por seu inconsciente, procurou um médico, justamente quando já poderia fazer a cesárea. Apesar da negação consciente, seu inconsciente a levou a procurar ajuda no momento certo. João machuca-se muito e parece ser este o único meio que ele encontrou para ser cuidado por ela.
Além da rejeição no período de gestação, a mãe de João o rejeitou no primeiro dia após o nascimento, mas disse tê-lo aceitado no segundo. Parece que a mãe não conseguiu assumir os cuidados maternos de João, enquanto relata não ter problemas com o outro filho. Ela se mostra continente a João em algumas situações, mas ele parece um pequeno adulto, tendo que cuidar de si mesmo e da sua família, como indo sozinho para escola e pegando latinhas de alumínio para vender. Fica claro que para a mãe, um filho só era suficiente e que o filho mais velho é ótimo , enquanto João lhe dá muito trabalho.
Quando perguntei sobre o desenvolvimento dele a mãe falou que ele mamou até os sete meses, e quando terminou seu período de licença-maternidade, João foi para uma creche próxima de seu trabalho e na hora do almoço ela ia até a creche amamentá-lo. Mas, o desmame aconteceu porque ela começou a amamentar uma outra criança, cuja mãe biológica a havia abandonado e João não quis mais mamar. "Mesmo com eu lavando o peito depois dela mamar, ele passou a não querer mais e ainda fazia cara de nojo" (SIC), disse a mãe.
Podemos pensar que o processo de desmame para João mostra mais uma vez sua independência e uma certa competitividade. É como se João, por não ter tido muitos cuidados maternos, nem mesmo no período gestacional, aprendesse desde muito cedo que teria que se cuidar sozinho.
A mãe foi encaminhada para a orientação de pais e um aspecto decisivo para essa indicação foi o quanto João se machucava. As várias doenças e os vários acidentes que a mãe relatou mostraram que ele se machucava para obter o cuidado materno.
Ao longo do processo, a importância da orientação da mãe foi sendo reforçada por outros aspectos, como a situação financeira da família. Num dado momento, a família não tinha dinheiro para comprar gás como dito anteriormente e, acionamos o Serviço Social da Clínica para que fosse feito um serviço multiprofissional. Mesmo que essa tentativa não tenha sido bem-sucedida, foi preciso fazê-la porque muitas vezes a orientação da mãe não tinha como acontecer sem ser atravessada por esse aspecto real e concreto das dificuldades sociais.
Num outro momento da orientação de pais foi tratada a questão da violência doméstica. Até mesmo foi cogitado um contato com o irmão de João, que segundo a mãe, estava batendo nele. No meu primeiro contato com a mãe, ela já havia dito que, por vezes, o irmão mais velho agia como pai de João e que até questionava a mãe sobre seu comportamento com o irmão. Foi possível conscientizá-la de seu papel de mãe de seus dois filhos, até mesmo do mais velho, que parecia ocupar um lugar de companheiro. Mas, por vezes, João ainda sofre violências por não se comportar da maneira esperada.
A terapeuta responsável da mãe percebeu que ela, apesar de ainda não ter conseguido um emprego, de não ter se firmado como a responsável pela casa, pelas contas, ela se mostrou mais ciente de seu papel materno. Ela parece não estar mais tão acomodada com a situação financeira da família e está buscando um emprego e ajuda.
Uma das mais importantes questões tratadas na orientação de pais foi a questão do pai de João estar vivo e o direito da criança em saber o nome de seu pai. Foi possível trabalhar a importância do pai e retirar as projeções da mãe em relação ao seu próprio pai. A mãe, mesmo com João pedindo para saber o nome do pai, não percebia a importância disso para o filho, porque o outro filho nunca quis saber o nome do próprio pai. A mãe também perguntava que importância tinha o nome se João não tinha o cuidado e o carinho do pai. Com o trabalho de orientação, a mãe, acho que até mesmo por conta da grande dificuldade financeira, resolveu contar a ele o nome de seu pai, e também procurar o Escritório Modelo de Direito da PUC-SP para acionar o pai de João judicialmente. Mesmo que tenha sido por outras questões e não só pela importância de João saber o nome de seu pai, ela contou a ele e está assegurando seus direitos.
Agora, depois de tê-los situado frente a características da personalidade de João, da situação família e do processo de orientação da mãe, darei uma breve definição de transferência e contratransferência para podermos falar desses dois processos presentes em qualquer psicoterapia, mas focado neste atendimento específico.
Segundo o Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis:
"Transferência é o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro da relação analítica. É a repetição de protótipos infantis vivida com uma sensação de atualidade" (pg. 668-669). "Contratransferência é o conjunto das reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e mais particularmente à transferência deste" (pg. 146).
Para Klein, durante o processo analítico voltaremos diversas vezes às flutuações dos objetos amados e odiados que fizeram parte do início da infância. Logo no começo da análise de João pude perceber o quanto a análise era um ambiente ameaçador e eu, como analista, um PitBull vampiro, que ele desenhou na primeira sessão.
Nas primeiras sessões, vejo que ele me coloca também num lugar de mãe, de cuidadora, aliás, ele quer saber se poderia me colocar nesse papel perguntando-me diversas vezes se eu tinha filhos. Devido à grande insistência dele respondo sua questão e me deparo com um processo contratransferencial muito forte. Quando digo que não tenho filhos, ele fala que quando eu os tiver, vou ter que saber fazer panqueca, porque sua mãe faz para ele quando eles não têm pão para comer. Eu consegui manter minha posição, mas isso desencadeou um processo contratransferencial significativo, até porque essa questão é de ordem social e não apenas subjetiva.
Por vezes, perguntei-me se não seria terapêutico trazer para João um pacote de bolachas em nossos atendimentos de manhã. Ele me disse que certos dias não tomava café da manhã antes de vir para nossos encontros. Mas, João, mostrando seus recursos intelectuais, rapidamente descobriu na Clínica a sala dos estagiários onde havia uma garrafa com café. Tomava um pouco e o resto guardava para dar à sua mãe.
Ao longo do processo, João foi se sentindo mais seguro nas sessões e isso desencadeou um processo de transferência, onde ele parecia querer descobrir comigo, na sessão, o que acontecia num relacionamento homem-mulher. As brincadeiras passaram a ser corporais e características do sexo masculino, onde se esperava que ele tivesse um desempenho melhor que o meu. Com o andamento da psicoterapia, os jogos tornaram-se realmente mais corporais, de exploração e isso se mostrava através do jogo de cabra-cega que João sugeria constantemente, mesmo tendo todo o conteúdo da caixa lúdica a seu dispor. Também durante esse movimento de erotização de nossos atendimentos, João me desenhou, não mais como um PitBull Vampiro, mas como uma mulher.
Essa questão erótica perdeu força quando João soube o nome de seu pai. Quando isso aconteceu, ele ficou muito inquieto nas sessões, não ficava na sala, não queria brincar. Gostava muito de ir para a sala de espelhos e de lá olhar o que eu fazia na sala. Ao mesmo tempo que ele me falava indiretamente de segredos, seu comportamento despertou em mim um grande incômodo. Toda sessão eu tinha que ser mais severa com João para ele voltar à sala, ou então, eu ficava esgotada ao final de seu atendimento por causa das inúmeras vezes que íamos buscar as bolas que ele, propositadamente, jogava para fora da sala.
Para ele, parecia insuportável ficar naquele ambiente, é como se ele não pudesse ser contido e o que ele desejava era uma mãe que falasse com segurança e firmeza. Como a raiva atuou fortemente em meu processo contratransferencial nesse momento, não sei se fui a figura de autoridade e de continência que meu paciente pedia, mas quando essa parte do processo ficou menos contaminada por meus sentimentos, pude interpretar e João pode ficar mais na sala.
Por inúmeras vezes, ele realmente não conseguiu receber os cuidados e a atenção que eu representava, mas foi muito importante que, de uma maneira ou de outra, eu pude conter essa sua impossibilidade. Durante algumas vezes, João foi embora da sessão antes do fim de seu horário, mas eu sempre esperava o horário de sua sessão terminar e, por vezes, voltou à sala e se assegurou que eu estava ali. Isso foi de vital importância para o processo, para a comprovação da base segura que João tanto precisava durante seu atendimento.
Ao ler o texto sobre a técnica psicanalítica no período de latência, de Melanie Klein, pude perceber que realmente as dificuldades que eu encontrava para chegar ao material do meu paciente eram causadas pelo mecanismo do recalque. Isso faz com que as crianças que estão no período de latência tenham uma imaginação restrita, dificultando o processo.
Com João não foi diferente. Logo na primeira sessão, pegou o revólver e quis brincar com ele. Como não havia outro revólver, João me deu a espada para ser minha arma. Ao longo das sessões o revólver voltou à cena mostrando-se como símbolo fálico. Nas primeiras sessões, a questão da diferença entre homens e mulheres foi um tema repetitivo e trabalhado como ele queria sempre ser melhor que eu e escolhia jogos tipicamente masculinos.
Em todas essas sessões o recalque estava trabalhando, mas à medida que eu verbalizava nossas diferenças, interpretando, o seu material recalcado veio à tona de outra maneira, como Klein coloca que a criança se "empenha em fortalecer sua posição, colocando todas as suas energias a serviço das tendências repressivas". (p.96)
Depois de algumas sessões, ele resolveu entupir o revólver com a massinha, mostrando o quanto suas energias estavam voltadas para a repressão. Nesse momento, eu já estava estabelecendo contato com as fantasias inconscientes dele e pude interpretar seu material, relacionando à sua culpabilidade e angústia.
Mais adiante do processo, mais precisamente após as férias do meio do ano, João resolveu brincar comigo de cabra-cega. Parece que o material reprimido veio à tona e ele pôde expressar suas fantasias. Sempre interpretei seu material como uma forma de contato físico, em saber como se dava um relacionamento homem-mulher e depois de muita repetição, João pôde elaborar.
Percebi que isso se deu quando, depois de muitas sessões e de um grande período de tempo, ele resolveu desentupir o revólver, isto é, conseguiu recuperar a função fálica e paralelamente a isso, sua mãe contou a João o nome de seu pai e foi à sua procura.
Depois dessa restituição pela mãe do pai perdido de João, mesmo que ele só tivesse o nome de seu pai, as brincadeiras durante nossas sessões se modificaram. Ele, por algumas vezes, pediu espadas para que pudéssemos brincar de luta. Fez uma bola de papel e, mesmo usando todos os papéis coloridos que haviam em sua caixa, o amarelo foi o último, foi o que embrulhou a bola.
Essa bola foi utilizada durante muitas sessões, até que eu interpretei o quanto ela se parecia com a figura do sol e isso me remetia à sua figura paterna. A princípio, João nada entendeu, mas aos poucos, esse sol foi o meio pelo qual pude falar com ele sobre o pai de maneira indireta, até que pudemos falar abertamente sobre o pai.
João fala pouco sobre isso. Certo dia, sua mãe pedia para conversar comigo e ele escutou nossa conversa atrás da porta e descobriu que o pai receberá uma notificação a seu respeito. João falou na sessão seguinte comigo sobre isso, mas diz não ter perguntado nada à mãe. Parece que ele sente que trairá a mãe se desejar muito o pai, agora que ele é uma possibilidade real. Sente também que poderia perder o amor materno interessando-se pelo pai.
Pouco pudemos trabalhar sobre isso até agora, já que isso se deu após a volta das últimas férias. O problema é que tanto João quanto eu como terapeuta tivemos que nos confrontar com uma outra realidade, com uma perda. Estou impossibilitada de continuar o atendimento. Desde a volta das férias, João mostrava-se muito agressivo nas sessões devido a interrupção da psicoterapia e provavelmente, ficará ainda mais angustiado com o término da nossa relação terapêutica. Não será fácil para nenhum de nós.
Para mim, como terapeuta foi uma decisão muito difícil de ser tomada devido ao vínculo que se estabeleceu entre nós.
Ao longo do processo de João, por muitas vezes, senti-me muito perdida. Avaliei meu processo contratransferencial para poder trabalhar sem uma grande contaminação tentando trazer à consciência certos aspectos inconscientes meus.
Mas, percebi que não era uma questão tão forte de contratransferência que me paralisava. O que me fazia não ter voz para interpretar certos conteúdos era a dificuldade real e concreta de que João não tem o que comer em muitos momentos.
Esse atendimento me fez confrontar uma realidade social muito difícil de ser aceita. Esse atendimento colocou em cheque meu comportamento como uma cidadã brasileira. É muito difícil trabalhar e cuidar de questões emocionais quando o corpo pede comida, pede alimento. Não o alimento da alma, mas "o pão nosso de cada dia".
Não tenho como resolver problemas sociais, mas posso me deparar com eles e encará-los, ao invés de ignorar cada vez que uma pessoa bate à minha porta pedindo comida, por exemplo.
Mesmo que deixando João tomar café da sala dos estagiários da Clínica, mesmo que refletindo sobre isso e mesmo que dando alimento para sua alma, eu pude fazer algo. Pude me doar mais, pude me conscientizar mais e pude alimentar.
E isso já fez uma grande diferença para mim, para o João e para a sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABERASTURY, A. A Psicanálise da Criança: Teoria e Técnica. Ed. Artmed, Porto Alegre, 1992.
KLEIN, Melanie. A Análise no Período de Latência, In: Psicanálise da Criança. Editora Mestre Jou, São Paulo, 1969.
LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J. - B. Vocabulário da Psicanálise. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1983 ( 7ª ed.).
SOIFER, R. Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1992.