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BOLETIM CLÍNICO - número 18 - setembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos



16. Trabalho sobre a Contra-Trasferência

A. é um menino de oito anos que atendi por três meses, de março à agosto, na clínica psicológica Ana Maria Poppovic da faculdade de psicologia da PUC-SP. Está na terceira série de uma escola particular, tem uma irmã gêmea. Seus pais são casados, a mãe tem origem oriental, enquanto que o pai é brasileiro, ambos são analistas de sistemas e moram num prédio vizinho à clínica.

Os pais procuraram a clínica pois perceberam que havia uma diferença entre o desenvolvimento do menino e o de sua irmã gêmea. A mãe relata na primeira consulta que se preocupa com o comportamento do menino, que geralmente é tímido e retraído, mas que por vezes explode de uma maneira agressiva. O pai relata que o menino tem dificuldades em acompanhar filmes com seqüência lógica, e que ele tem seu ritmo próprio de aprendizagem.

Esta foi a segunda vez que procuraram a clínica, sendo que na primeira, o menino reclamou para os pais que nada fazia aqui quando vinha. Eles telefonaram a psicóloga para que esta lhes esclarecesse o por que ela não brincava com o paciente. Esta por sua vez lhes respondeu que o menino iria abrir a caixa lúdica quando se sentisse à vontade para fazê-lo. Como o mesmo continuou reclamando, os pais solicitaram uma reunião na Clínica e compareceram no horário diferente do que foi proposto pela psicóloga. Desistiram do tratamento mandando uma carta de reclamação à instituição pois consideraram terem sido mal atendidos.

A maior preocupação dos pais parecia ser em relação ao desenvolvimento do filho, ambos se referiram as dificuldades que o menino tinha, enquanto que a irmã sempre era mais "adiantada".

Durante a entrevista a mãe pareceu bastante incomodada com minhas perguntas, apenas me respondia : "foi normal" quando eu lhe perguntava como era esse "normal", respondia: Como qualquer criança. Aliás, essa foi a palavra mais usada durante a entrevista ao se referir ao filho, normal. Ficou bastante claro que havia uma insegurança dos pais em relação ao filho, se este era ou não normal. Ficavam bastante defendidos quando lhes perguntava detalhes que pudessem denunciar alguma característica anormal do filho. Surpreendi-me muito quando a entrevista acabou eles se entreolharam e disseram: "Nosso filho é o máximo!".

Os pais se incomodavam muito com o fato de seu filho ser atendido por uma estagiária, que não era nem formada. Deixaram isso claro , repetindo essa frase por mais de duas vezes.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O SINTOMA

Durante sua gestação de A. sua irmã ocupou mais espaço, já que o menino ficou preso na costela da mãe, impossibilitado de se movimentar muito. Em vista disso, apresentou uma série de dificuldades de desenvolvimento: Teve flacidez muscular e em decorrência disso, alguns problemas Ortopédicos (teve de usar bota por algum tempo). Foi um bebê bem mole, segundo o pai.

Apresentou também dificuldades no desenvolvimento da linguagem pois tinha a boca muito "fechadinha" (palavras da mãe), por isso foi acompanhado por uma fonoaudióloga. Fez uma cirurgia na Garganta para retirar as amígdalas e usa aparelho dental. Ao dormir costuma ranger os dentes, e tem enurese há muitos anos. Demorou muito a tirar a fralda pois não conseguia ter controle de suas fezes e de sua urina. Foi tirá-la aos 5 anos.

A gravidez foi planejada e veio após dois anos de casamento. A mãe apresentou náuseas durante os nove meses, teve muito desejo de comer melancia.

O menino nasceu 2 minutos depois da irmã. O desmame de A. ocorreu aos 4 meses e foi abrupto, pois o leite de sua mãe secou. Quando perguntei para a mãe, durante a entrevista , sobre a amamentação , esta parecia não ter ficado muito atenta ao que estava acontecendo com o filho, pois não se lembrava se ele mamava rápido, se pegou bem o seio ou qualquer outro detalhe. Para Winnicott, a mãe suficientemente boa deve fornecer um setting no qual a constituição do bebê pode se mostrar, suas tendências de desenvolvimento se revelar e o bebê pode experimentar um movimento espontâneo e dominar as sensações iniciais.

Quando a mãe fornece uma adaptação, está protegendo seu bebê. Um reagir excessivo não produz frustração, mas uma ameaça de aniquilação. O "continuar a ser" depende que a mãe se sinta como se estivesse no lugar de seu filho, respondendo às necessidades do bebê. As necessidades corporais dele, gradualmente, tornam-se necessidades do Ego. Pela fala da mãe, vê-se que não havia muita preocupação em relação as reais necessidades do bebê e sim ao seu desenvolvimento comparado ao da irmã.

O desmame de A. ocorreu em no período de transição da posição esquizo paranóide para a posição depressiva . Lembrando que seu temor de aniquilação característico da primeira foi real, pois o menino esteve "sufocado" no ventre materno pela irmã gêmea. Penso que seu nascimento caracterizou-se mais por ter sido uma luta contra a morte, do que uma luta pelo nascimento. A mãe que lhe privou o seio também o dividiu com outro bebê. O fato de o menino sofrer de enurese noturna mostra que há uma questão do desmame que aparece com muita intensidade. Melanie Klein, quando menciona o assunto descreve:

"Parece que o ódio que as crianças sentem pelo seio da mãe por haver frustrado seus desejos, suscita nelas, em concomitância com os impulsos canibais ou logo depois, fantasias de lesar e destruir o seio com sua urina" (p.281)

Além disso, durante a noite o menino costuma ranger os dentes o que é um sinal de uma organização egóica fragilizada, de um Ego que está lutando contra um conflito. Possivelmente decorrente não só do trauma do nascimento sofrido por A., como também do abrupto desmame ocorrido durante o período de transição da posição esquizo-paranóide para a depressiva. O rangido de dentes está relacionado também com uma fixação oral na fase canibalística .

Parece que A. sentiu-se frustrado pela mãe, por ter que dividi-la, por esta não ter podido dar-lhe espaço em sua barriga e finalmente por ela ter lhe privado de seu seio. Podemos pensar também que não havia um afeto que desse "pele" para o Ego fragilizado do bebê, já que a mãe relata sua gravidez sem denotar qualquer mudança na expressão facial, sem reviver nenhum muito afeto.

Além disso, os enjôos que se perduraram pelos nove meses, podem nos dar pistas sobre uma possível rejeição a esses bebês, que lhe estufaram, lhe deixaram inchada, como a melancia que ela tanto desejou durante esse período.

Muitas vezes durante o atendimento, percebia que o menino estava me vendo como essa mãe má. Parecia muito magoado por estar vindo a terapia, por sua mãe ter "achado" mais defeitos nele. Durante o tempo de atendimento A. tinha muita dificuldade em abrir a caixa lúdica, por mais que eu tentasse estimulá-lo, dar lhe o "leite" que poderia ser dado por mim, A. mantinha-se resistente, respondia-me sempre com sim e não. Na primeira vez que abriu a caixa deu me a dica de como se sentia quando pegou a massinha, fez duas colunas, colocou-a na borda da caixa e quando lhe indaguei o que era ele me disse: São duas crianças que foram transformadas em poste por uma bruxa má.

Percebi a dificuldade que menino tinha em abrir a caixa, e isso me preocupava muito, pois sabemos que as fantasias persecutórias deveriam estar extremamente intensas e reprimidas. Logo no primeiro atendimento A. disse ter medo de picadas de abelha, compreendi essa picada como um medo de que eu penetrasse nele e colocasse veneno dentro dele. Se ele abrisse a caixa e brincasse, suas fantasias podiam aparecer, portanto era muito difícil para ele conseguir fazê-lo, tendo o feito muito poucas vezes.

Klein compreendia o brincar como uma expressão simbólica dos conflitos e ansiedades da criança, a dificuldade de A. em brincar falava claramente do quanto a terapia era fundamental para que ele pudesse encarar esses conflitos sem temê-los, sem temer que esses conflitos o envenenassem .

A criança e seu núcleo familiar

Percebia que muito do desprezo que A. mostrava ter por mim, vinha de seus pais. Durante a primeira entrevista ambos pareciam muito descrentes no tratamento e chegaram até a me perguntar: Você acha que isso aqui funciona? Temia que ocorresse comigo o que ocorreu com a outra terapeuta, pois desde o começo percebi o quanto ambos estavam projetando em mim toda sua desconfiança de que o menino fosse anormal. Ficava então numa posição de "aquela que vai ver o que fizemos de errado", e deveras lhes parecia uma figura muito persecutória, que podia estragar o filho deles, assim como provavelmente essa mãe sentiu que seu corpo fez durante a gestação.

Solicitei orientação de pais pois percebi a importância de que ambos percebessem que eu não era tão ameaçadora assim, que eles sim estavam muito ameaçados pelo desenvolvimento do menino. Essa ameaça vinha em forma de muita hostilidade em relação a mim e a psicóloga que fez a orientação.

Havia uma ambivalência e uma resistência dos pais que estava interferindo no andamento da terapia de A. ao mesmo tempo que compareciam, pagavam e traziam o paciente hostilizavam e desprezavam a terapeuta.

Por vezes o paciente me relatou que a mãe sempre lhe perguntava se ele havia ou não brincado na terapia. Logo, podemos inferir que esse não brincar era uma agressão a essa mãe, se ele brincasse estaria fazendo a vontade da mãe. Se ele brincasse comigo, estaria brincando com sua mãe.

Durante a orientação de pais a mesma ameaça que eu senti, a outra terapeuta relatou ter sentido. Provavelmente essa sensação de estar sendo ameaçado pela psicóloga, vinda dos pais, estava tão intensa que era projetada na minha figura. Sentia essa ameaça vinda dos pais, o que creio ser uma identificação projetiva, feita por eles afim de que eu contivesse todo o medo que ambos tinham do menino ser "diferente".

Durante todo o processo de orientação de pais, os pais mantinham um comportamento que consistia em criticar minha postura como terapeuta, e dizer que se o menino não gostava de vir aqui era por que eu não sabia brincar com ele, não era boa o suficiente. Depois que a orientação de pais começou, percebi que meu paciente começou a falar ainda menos, e parecia estar se sentindo muito cerceado e de "mãos atadas", como um poste. Foi ficando cada vez mais agressivo comigo e calado.

Exigiram que fosse feito um atendimento a quatro, eu, a orientadora, e os pais. Como lhes foi negado esse pedido a mãe solicitou uma entrevista comigo. Para que não atrapalhasse minha relação com A. perguntei-lhe se ele gostaria de estar presente, ele respondeu afirmativamente.

No dia da entrevista, a mãe chegou com 40 minutos de atraso e nem se deu conta, tive de lhe avisar. Começou dizendo que eu não brincava com seu filho, por isso a terapia não funcionava. Expliquei-lhe que não era só brincando que A. estava falando de si, que ele o fazia de outras formas. A mãe me diz menino havia lhe dito que eu chorei pois ele me disse que não gostava de vir aqui. Digo que provavelmente havia nele um desejo de me fazer chorar, de ser muito importante para mim. A mãe ri ironicamente e me responde: Não ele não gosta de você mesmo. Passa a entrevista toda me atacando. Diz que o filho quer parar a terapia, e eu coloco que na verdade quer gostaria que ele parasse era ela, ela fica bastante incomodada e diz: Eu não vim aqui para lhe atacar. Quando pergunto a ele se ele quer sair ele fica quieto, envergonhado, olha para mãe e responde afirmativamente, como se não pudesse traí-la.

Coloquei para ambos que estes poderiam pensar durante as férias, ambos concordaram. Mas ao voltar das férias a mãe me telefona dizendo que ele não iria mais, e nem queria vir a última sessão. Transferência e Contra-transferência

No dicionário Laplanche e Pontalis a transferência é designada em psicanálise como: processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente no quadro de relação analítica.

Trata-se de uma repetição de protótipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada. É um terreno em que se dá a problemática de um tratamento psicanalítico, pois são a sua instalação, as suas modalidades, a sua interpretação e a sua resolução que caracterizam este.

Por sua vez, a contratransferência seria o conjunto das reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e, mais particularmente à transferência deste.

Em meu atendimento, a transferência durante as sessões dava-se no silêncio de A. Este era uma resposta a sensação de ser visto como anormal pela mãe. Parecia que ele me via como aquela que vê coisas anormais nele, por isso ele deveria estar quieto. Eu seria então transferencialmente, a bruxa má que o transformou em poste. Sentia-me bastante incompetente com o silêncio do menino, o fato dele não brincar me deixava por vezes ansiosa, e muitas vezes preocupada com toda a angústia que poderia estar por trás de tamanho silêncio. Creio, que talvez estivesse me sentindo como ele se sente frente ao olhar da bruxa má, no caso a mãe má que valoriza sua irmã gêmea e não o valoriza: Um incompetente.

Em algumas sessões o menino ficava cutucando feridas em sua mão. Numa sessão ao ver aquela cena me afligi, ele então dizia: Eu gosto quando sai sangue . E quando eu lhe interpretei que ele tinha medo que eu cutucasse suas feridas ele me respondeu com hostilidade: Medo de você, Hahahahaha, eu não brinco com criancinha. Nessa sessão, fiquei realmente assustada, com muito medo dele e dessa violência que eu havia percebido em seu olhar. Foi então que pensei que esse meu medo foi na verdade, uma identificação projetiva. Senti na verdade o medo que ele sente de sua violência interna. Colocando em mim o medo da mesma, era uma forma que ele usava para eu poder sentir seu próprio medo.

Não foi compreender a recusa do menino em abrir a caixa como uma dificuldade dele. Muitas vezes me perguntava se não era mesmo uma dificuldade minha, pois afinal eu não tinha experiência, esse era meu primeiro atendimento.

O menino está no período da latência, quando resistência é bastante forte e o brincar é substituído pelo jogo. O Ego da criança nesse período, segundo Klein, ainda é pouco desenvolvido, e por não possuir a consciência de sua doença, pensam que a cura não é necessária, logo não possuem incentivo para vir a análise. Além de A. não possuir incentivo próprio, percebia a ambivalência dos pais em relação á terapia, portanto, era muito difícil para ele estar ali. Porém numa sessão, quando lhe disse que eu podia ver não só coisas ruins nele, como também coisas boas, ele me disse: Eu sei, é por isso que eu venho aqui. Nessa sessão, ele jogou futebol comigo, e fez vários gols, comemorando muito quando vencia. Parecia que ele queria me mostrar seus talentos, a força de seu pênis. Foi uma das poucas vezes em que houve uma colaboração desse paciente.

O atendimento desse paciente me fez pensar na questão da onipotência do pênis. Klein colocava que o menino, em sua imaginação dota o pênis de poderes destrutivos, assemelhando-o à uma arma mortífera. A. sofre de enurese noturna, o que segundo à autora é uma ataque aos pais em coito. Um coito do qual ele não pode participar, e que o incomoda pois o exclui. Há uma certa relação, a meu ver entre essas fantasias e as circunstância reais em que se deu sua gestação, uma gestação que o excluiu, dando apenas espaço para sua irmã. Considerações finais

O que me chamou atenção nesse caso, é como a colaboração dos pais no tratamento psicoterápico do filho é fundamental. Vimos que freqüentemente os pais desvalorizavam tanto sua própria orientação de Pais como a análise do filho. Certamente, isso influiu muito para acentuar a resistência e hostilidade do paciente em relação á mim. Não pode usar de seus impulsos construtivos para amenizar esta hostilidade. Esse sentimento foi a meu ver o responsável pela interrupção do trabalho.

Bibliografia consultada

KLEIN, M. Primeiros estádios do Conflito Edipico e da Formação do superego. In: Psicanálise da Criança. Ed. São Paulo: Mestre Jou, 1969.

KLEIN, M. Os efeitos das primeiras situações de angústia sobre o desenvolvimento dexual da menina. In: Psicanálise da Criança. Ed. São Paulo:Mestre Jou, 1969.

SEGAL, H. A técnica de análise de crianças de Melanie Klein. In: A obra de Hanna SEGAL: uma abordagem Kleiniana à prática clínica; tradução de Eva Nick. Hanna Segal Rio de Janeiro: Imago, 1982.

WINNICOTT, D .W Desenvolvimento Emocional primitivo (1945). In: Textos selecionados da Pediatria à Psicanálise.