Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos
6. De como Saber também é Amor
RESUMO: Este trabalho retrata o desenvolvimento da psicologia hospitalar no Brasil através da descrição do relacionamento pessoal do autor com a Psicóloga Dra. Mathilde Neder, uma das personalidades que mais contribuíram para a implantação e sistematização deste campo de atuação do psicólogo. Através das reminiscências deste relacionamento, emergem as qualidades pessoais desta desbravadora que certamente contribuíram para que ela assumisse a liderança que exerce no campo da Psicologia da Saúde: um interesse acolhedor e único por interlocutor, a capacidade de impor limites de forma conciliadora e construtiva, sua longa experiência acadêmica em que inúmeros trabalhos no campo da Saúde encontram orientação e, finalmente, sua modéstia que não inibe o crescimento dos profissionais que nela se espelhavam. O apontamento do valor da Dra. Mathilde Neder se faz necessário porque, alem de retomar a historia da configuração do campo da Psicologia Hospitalar, tenta reparar o registro desigual que existe sobre sua influência, já que, ocupada com a prática clínica e acadêmica pioneira em Psicologia Hospitalar, Psicossomática e Terapia Familiar, ressentimo-nos por existir pouca produção escrita em seu nome, até o momento.
INTRODUÇÃO
Foi-me solicitado um artigo sobre psicologia da saúde e uma de suas principais vertentes, a psicologia hospitalar. Ocorreu-me então que, ao invés de descrever algum trabalho realizado nas lides hospitalares ou mesmo acadêmicas, seria mais interessante e, muito mais inovador, escrever sobre uma das maiores mestras nessa área, e fonte de imensa ternura e generosidade.
E eis-me assim, novamente, escrevendo sobre Mathilde Neder.
Mais uma vez homenageio a nossa mestra com esse punhado de letras transformadas em artigo publicado numa revista especializada.
Perdoem-me aqueles que esperavam um escrito embasado nos princípios da ciência, ou mesmo de alguma descrição reflexiva de atuação do psicólogo na área da saúde.
O nosso trabalho é um soneto de amor, uma elegia da alma para decantar uma das mais brilhantes psicólogas brasileiras, seguramente uma das mais queridas em nossa realidade.
É um trabalho simples sem outra preocupação que apenas e tão somente mostrar uma outra Mathilde Neder aos olhos de seus admiradores, pessoa que se mostra de uma generosidade ímpar e que, no entanto, poucos têm o privilégio de conhecer e conviver. A trajetória profissional de Mathilde Neder foi por nós descrita no livro O Doente, a Psicologia e o Hospital (Angerami, 2003), onde seu pioneirismo está detalhadamente narrado, configurando-se assim na verdadeira história da prática da psicologia hospitalar no Brasil.
Este trabalho mostrará uma outra figura, distante do academicismo e da vivência hospitalar. Uma Mathilde Neder que tive o privilégio de conhecer e conviver. E a partir de convivências como essa é que tenho certeza de tratar-se de alguém muito especial, pois tal convívio só me fez crescer enquanto pessoa em todos os sentidos da minha experiência humana. Não é minha pretensão esgotar os detalhes que possam ser atribuídos a Mathilde, nem tampouco colocar-me como sendo o único que os conhecesse e que, portanto, se não estiverem aqui registrados não existem. Não, trata-se apenas de uma pequena descrição, reduzida em seu espaço de escrita, e estabelecida num tempo muito curto de trabalho em razão de minhas inúmeras dificuldades em ajeitar tantos compromissos profissionais. Enfim, um trabalho onde o amor é balizamento principal, onde o afeto de seu ser é a estrutura maior de seu bojo e de seu compromisso editorial.
DOCES REMINISCÊNCIAS
Ainda era acadêmico de psicologia e ela notória professora na PUC-SP, quando ouvi falar de Mathilde Neder pela primeira vez. Nesse período não podia imaginar que poderia conviver com ela de modo tão estreito, partilhando momentos dos mais diferentes matrizes. Ainda acadêmico comecei a despertar meu interesse para a área hospitalar, e por todos os lados para onde me direcionasse a proeminência maior de referência teórico-prática sempre era Mathilde Neder.
Nesse momento ela era para mim apenas uma figura mitificada pelo seu desenvolvimento acadêmico e por sua performance profissional. Alguém que veneramos, mas que acreditamos serem distantes daqueles que apenas estão começando a trilhar os primeiros caminhos em suas trajetórias profissionais. Frisa-se o termo "acreditarmos", pois essa é a verdadeira definição para expressar a redoma em que muitos acreditam que Mathilde Neder se encontra. A mitificação, na maioria das vezes, ocorre em nosso imaginário e nada tem a ver com a própria realidade de nossos personagens. No caso de Mathilde Neder é isso então o que mais surpreende quando a conhecemos em sua intimidade.
Ao terminar a faculdade iniciei uma atividade junto a pacientes que tentavam suicídio e que eram atendidos no Pronto Socorro do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Depois de algum tempo nessa atividade houve uma unificação dos diversos serviços de psicologia existentes no Hospital das Clínicas, que estava sendo coordenada por Mathilde Neder. E aí ocorreu o nosso primeiro contato.
E desde então não mais nos largamos. A partir desse primeiro contato aprendi a respeitá-la e admirá-la principalmente pela humildade demonstrada em seus atos e até mesmo gestos triviais.
Fui procurado por ela para ser avisado das mudanças que estavam ocorrendo naquele momento no Hospital das Clínicas. A minha primeira reação foi a de que seria sumariamente escorraçado do hospital, pois não fazia parte de seu grupo de trabalhos. E com esse estado de espírito u encontrá-la. Eu, um principiante na realidade hospitalar, embora coordenasse um trabalho que começava a despontar e ter bastante projeção em níveis teórico-prático, e Mathilde Neder, a maior autoridade em psicologia hospitalar do Brasil, e alguém que estava reformulando os serviços de psicologia daquela unidade hospitalar.
Surpreendentemente, quando a encontrei, sua reação foi tão afetiva e amistosa que fiquei simplesmente atônito, completamente sem reação, pois me havia preparado para um encontro beligerante, do qual certamente resultaria um grande numero de perdas irreparáveis. Mas não, lá estava Mathilde Neder com aquele sorriso amigo e que inicialmente fez questão de reverenciar o nosso trabalho fazendo grandes elogios às atividades do nosso grupo.
Surpreso fiquei e surpreso permaneci por longos momentos, pois de fato estava simplesmente sendo elogiado pela maior autoridade na realidade hospitalar, elogios esses que repercutiram tão prazerosamente em meu ser que não tive como não me encantar por ela desde então.
Falamos, rimos, acertamos como seria nossa participação nessa reformulação e, principalmente, como seria a transição do nosso modelo de atuação para o que estava sendo implantado naquele momento. Tudo muito simples, muito natural, de tal forma que me senti também um grande nome da psicologia hospitalar que discutia com outro grande nome da área.
Corria então o ano de 1982. Nessa ocasião, por eu estar também coordenando o curso de especialização em Psicologia Hospitalar do Instituto Sedes Sapientiae, passei a convidá-la para ir falar aos nossos alunos sobre sua trajetória profissional. E durante muitos anos essa rotina foi inalterada, com ela falando para os alunos sobre a maneira como havia se desenvolvido na pratica hospitalar e como havia estruturado sua atuação profissional dentro dessa realidade.
OUTROS TEMPOS
Em 1988 ocorreu em Recife/Olinda o III Encontro Nacional de Psicólogos da Área Hospitalar. Levei o meu filho mais velho, o Evandro, na ocasião com 8 anos de idade, para que conhecesse aqueles cantos tão queridos.
Nesse momento, além da própria convivência comigo, a Mathilde conheceu o Evandro e desde então ela passou a fazer parte da nossa família até mesmo pela relação que passou a ter com os meus filhos, pois posteriormente conheceu a minha filha, a Paula, e igualmente não mais houve ruptura no estreitamento de nossas relações. Assim, bastava ter algum congresso fora de São Paulo, que imediatamente a Mathilde queria saber qual dos meus filhos iria comigo e se preparava para curti-los no verdadeiro sentido do termo. E não só em congressos, pois Mathilde passou a ser figura obrigatória nas festas que realizamos em casa, bem como em muitos almoços dominicais.
Mathilde deixou então de ser uma amiga querida para tornar-se alguém da família, alguém cuja presença é indispensável em todas as ocasiões especiais e até mesmo rotineiras. Uma presença forte, marcante e que antes de qualquer outra característica transmite uma humildade que torna muito difícil identificar na sua figura simples uma das maiores personalidades na área da psicologia. É difícil constatar que aquela pessoa de riso meigo e olhar doce e suave é igualmente a precursora tanto da psicologia hospitalar como até mesmo da psicossomática no Brasil. Como também é difícil estabelecer o paralelo de que aquela mulher sempre tão disposta a ouvir os mais diferentes interlocutores é, sem sombra de dúvida, uma das mais notáveis professoras de nossa realidade acadêmica, alguém que não sabe dizer de pronto o numero de orientações que possui na atualidade. E que seguramente dependerá de uma grande pesquisa bibliográfica para se apurar o número de teses acadêmicas escritas sob sua orientação. Mas certamente não será de sua boca que ouviremos qualquer eloqüência sobre a magnitude dos trabalhos que orientou ao longo de sua trajetória profissional. Como também, se não fosse o trabalho que organizamos relatando sua trajetória profissional na realidade hospitalar, certamente seus feitos e conquistas se perderiam ao longo do tempo e do espaço, pois ela não seria capaz de registrá-los ou ate mesmo de narrá-los de modo sistematizado.
A sua humildade atropela a grandiosidade de suas realizações pois, por mais incrível que possa parecer, nem mesmo suas primeiras publicações ela manteve guardadas e conservadas. E isso posso afirmar sem sombra de dúvida, pois para escrever a história de sua trajetória profissional, tive que lapidar muito material que se achava misturado a outras tantas publicações, bem como garimpar trabalhos que se achavam perdidos nos lugares mais inimagináveis. Para se ter uma idéia da dimensão dessas colocações cito uma ocasião, por volta de 1991, quando estava trabalhando na descrição de sua trajetória e precisava de uma conferência que ela havia proferido no início de sua performance profissional. Fui até a sua casa e, depois de muito procurarmos e nada termos encontrado, levei-a comigo para assistir a um concerto que para mim era imperdível, após o que voltamos à sua casa e procuramos por toda madrugada até finalmente encontrá-lo.
E assim foi durante toda a elaboração desse trabalho, um incessante garimpo onde cada peca encontrada era fartamente comemorada devido às dificuldades que se apresentavam. E não pense o leitor de modo precipitado que isso possa ser evidencia de uma desorganização de sua parte, pois outros trabalhos indispensáveis à sua prática profissional estão devidamente guardados e com fácil acesso em seu escritório de trabalho. O registro de suas atividades é que foi deixado de lado pela sua característica de humildade, que impede de se reconhecer como sendo alguém cujos passos são de extrema importância para a própria história da psicologia no Brasil.
Em uma ocasião ela simplesmente falou: "quem vai se interessar por uma conferência que proferi no final dos anos 1950?!" E na verdade ela estava fazendo referência a uma conferência que registra a primeira participação de um psicólogo num evento organizado por médicos no Hospital das Clínicas e onde estavam registrados os seus primeiros passos, bem como o nível de aceitação ao seu trabalho por outros profissionais da saúde. Ou de outra situação onde simplesmente falou: "não sei para que você está interessado em saber os detalhes do meu trabalho no hospital". E novamente estávamos diante de uma situação onde tais detalhes colocavam em evidência um pouco da história da psicologia no Brasil.
E até uma foto de um congresso realizado na Europa, quando ainda era jovem, e que tinha grandes personagens da psicologia mundial, como Melaine Kein, e Ernest Becker entre outros, só é mostrada depois de muita insistência. Do contrário guardada está, guardada permanecerá. Imagino, de outra parte, que se essa foto pertencesse a inúmeros outros colegas estaria em destaque em duas salas de visitas, como sendo um dos maiores trunfos da própria trajetória profissional.
Uma das faces mais marcantes de sua generosidade é o modo como acolhe colegas de outros estados hospedando-os em sua própria residência. Assim, é muito comum encontrarmos colegas dos mais diferentes cantos que, ao passarem por São Paulo, são recepcionados por Mathilde, tendo então em sua residência o local de referência e proteção. E não pense que se trata apenas de notórios de outras localidades, mas de qualquer colega, acadêmico que seja, e que simplesmente necessite de uma acomodação por esses cantos. É como já ouvi de um colega de Maceió que lá estava hospedado: "além de tudo ainda tenho o privilégio de conviver com o dia-a-dia de Mathilde Neder".
Mathilde, em sua simplicidade, guarda hábitos de extrema valorização do convívio familiar. É freqüente ouvir-se dela sobre a necessidade de ir até o interior para cuidar de parentes. Ela também é muito religiosa, sendo que um de nossos últimos passeios foi justamente quando a levei para assistir uma missa de canto gregoriano no Mosteiro São Bento. E de qualquer maneira ela é sempre grata a qualquer gesto que façamos em seu benefício. Tudo é muito considerado e não há ação em que não se derrame em agradecimentos quando se sente acarinhada pelos nossos gestos.
Sem medo de errar é possível afirmar que o grande defeito de Mathilde é a sua escassez de publicações. Pela magnitude de sua vivência é uma perda irreparável ter publicado tão pouco. Embora esteja constantemente orientando os mais diferentes trabalhos acadêmicos, certamente teríamos uma grande contribuição se ela dedicasse um tempo de suas atividades para a publicação de sua vasta experiência profissional. Mas os ensinamentos que ela nos lega a cada encontro nos tornam responsáveis pela sua difusão. E também não podemos perder de vista que dois dos maiores pensadores da humanidade - Sócrates e Cristo - nada publicaram, chegando suas idéias até os dias de hoje graças aqueles dentre os seus discípulos que recolheram um vasto material de seus ensinamentos e os publicaram. Desse modo, uma imensa tarefa nos espreita, a publicação do ensinamento de Mathilde.
Serra da Cantareira, numa manhã de inverno.
REFERÊNCIA
Angerami, V. A. O pioneirismo e suas pioneiras. In: O Doente a Psicologia e o Hospital. São Paulo: Thomson; 2003.