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BOLETIM CLÍNICO - número 19 - novembro/2004

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos


8. O Sonho e a Ação - Depoimentos - Ângela

"Meu nome é Ângela de Almeida Ribeiro, sou primeiro anista do curso de Comunicação e Artes do Corpo.

Hoje no dia 17 de setembro de 2003 vou relatar um sonho que tive em que através dele consegui aflorar a minha sensibilidade para aprender o Braille. Acerca de mais ou menos duas semanas atrás eu tive um sonho em que eu falava com um presidente da associação ADEVA (Associação de Desafiantes Visuais Amigos) de nome marquiano, e em uma sala em que costumamos ensaiar para o coral dessa associação, eu o olhei intensamente e escutei a seguinte pergunta:

- Ângela, você sabe o Braille?

Eu olhei para ele e disse:

- Não, não sei.

Nesse mesmo instante eu pude ver nitidamente a expressão dos olhos, do rosto dele como um todo, ele virava contra mim, dando as costas numa atitude de profundo lamento e tristeza, falando:

- Ai, que pena, você não sabe... você não sabe o Braille.

E ficando de costas para mim. E eu de repente me vi nessa sala vazia, estávamos só eu e ele mas por alguns instantes eu me senti sozinha, isolada.

No dia seguinte eu comecei a sentir uma grande vontade de recomeçar um curso de Braille; foi quando no final de semana eu arrumei um tempinho especial para sentar, pegar a reglete: um tipo de prancheta em que a gente escreve em Braille com uma punção e uma régua especial, afixada numa folha de sulfite. Eu dediquei aqueles momentos para rememorizar tudo aquilo que eu já tinha aprendido e que até então no dia daquele sonho eu tinha verdadeira aversão, tinha problemas mesmo pra ler o Braille, eu ficava tensa, nervosa, a emoção vem sempre à tona, eu começava a chorar, não conseguia me concentrar dizendo que não tinha habilidade para aprender o Braille. Eu sempre dizia isso para todo mundo insistentemente, e as pessoas sempre insistiam: - Ângela você também tem que aprender o Braille, o Braille também é um método, é uma forma de aprendizado, uma forma sua de independência.

Então toda essa minha negação. Toda essa aversão que eu tinha pelo Braille, sempre afirmando que eu não tinha habilidade, não tinha o dom para isso, desapareceu completamente depois do sonho, e quando eu sentei naquele final de semana em seguida do sonho, para treinar o Braille, eu não senti nenhum tipo de sentimento negativo, eu senti muito carinho, muita paz, muita alegria, eu cantava enquanto escrevia o Braille.

E na semana seguinte, durante o ensaio do coral da ADEVA, nessa mesma sala em que eu tive o sonho, várias letras em Braille foram distribuídas e eu pedi uma letra para mim, quando então colocando os dedos sobre o Braille, sobre a escrita da canção "Caçador de mim" de autoria de Milton Nascimento eu pensei: "como eu vou fazer se eu só sei escrever de A a Z, não sei as letras acentuadas", no mesmo instante um raciocínio lógico e rápido me veio à tona e me disse: "Não, as letras que você não conhece ainda, você vai identifica-las com o tato pela posição dos pontos e você vai pesquisar e vai aprender lendo, praticando", foi quando então colocando as mãos em cima da letra eu comecei naturalmente, com uma sensação muito boa de conquista, de quebra de mais uma barreira imensa na minha vida que eu nunca pensei que ia derrubar, e eu comecei a ler o Braille e descobrir outras letras por mim mesma pelos códigos, pelas posições dos pontos, articulando uma letra com outra. Eu me senti muito feliz naquela hora porque eu estava conseguindo derrubar uma grande barreira que era de que mesmo sendo hoje uma desafiante visual eu não estava totalmente integrada à eles, estava me sentindo num mundo meio à parte, nem lá nem cá, em cima do muro e isso me afligia muito. Por eu não conseguir mais ler em tinta e também não conseguir ler em Braille, isso me fazia sentir distanciada deles, daquelas pessoinhas com os mesmos desafios visuais que eu, mas que tinham uma dependência pura, peculiar.

Então através desse relato eu posso dizer que hoje eu sou uma mulher que me sinto realmente incluída dentre todas as pessoas, tendo elas o desafio que for, porque eu estou na minha vida, durante a minha evolução com a minha força de vontade e persistência, eu estou enfrentando esses desafios e quebrando todas as barreiras. Essa transformação foi em nível físico, psíquico e espiritual, através desse sonho que foi pra mim uma canal de afloramento dessa linda habilidade que é de ler com as mãos,

Amém."